Cactos & Girassóis escrita por Sali


Capítulo 16
Quinze


Notas iniciais do capítulo

Capítulo quinze aí pra vocês. Espero que gostem ♥



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Sexta-feira | 5 de Agosto

Helena estava em silêncio, em contraste com a altura exagerada da música nos fones de ouvido, e, com o olhar perdido nos dois band-aids em seus dedos, divagava. Naquela manhã, surpreendentemente, o ambiente externo parecia mais irrelevante e inofensivo que os pensamentos que povoavam a cabeça dela.

No entanto, e ela precisava admitir, a turma estava curiosamente calma, apesar de alguns pontos isolados de conversa. Por isso, naqueles minutos que antecediam a chegada da professora, quando a sala já estava quase cheia, mas ainda não tinha dado o horário, a garota ─ em seu canto habitual, no fundo da sala ─ se permitiu apenas dar vazão ao que lhe passava pela cabeça.

Apesar de o muay thai lhe proporcionar um bom condicionamento físico, seu corpo ainda doía um pouco. Talvez não tivesse sido a melhor ideia, afinal, passar praticamente todo o tempo livre da semana na varanda, lidando com a nova estante de plantas ─ que, por causa de um problema de umidade, precisou ser completamente desmontada, envernizada e, então, remontada. Mas o trabalho manual realmente afastava sua mente da realidade, e aquilo era ótimo quando a realidade era o começo do novo semestre e a súbita falta de assunto que, ao longo da semana, criou muitos momentos de silêncio na já habitual troca de mensagens entre ela e Marina.

A quietude, estranha e aparentemente não proposital, ainda se prolongava, de forma que, naquela manhã, quando a novata entrou na sala, ela trocou com Helena somente um cumprimento sucinto antes de se sentar. E, daí em diante, não houve mais interação.

Quando, enfim, Lena viu o professor de Física deixando suas coisas sobre a mesa da frente, percebeu que sentia uma familiar, embora desconfortável, sensação de pressão sobre o esterno, que lhe deixava com a respiração difícil.

─ Bom dia, gente… ─ a voz incômoda dele invadiu a sala e fez Helena arrancar os fones, já meio desanimada. ─ Só lembrando, as inscrições para as monitorias vão até amanhã, ok? Às terças tem pra linguagens e humanas, e às quintas, pra exatas e natureza.

Lena, apesar de desanimada, fez questão de anotar aquelas informações na agenda ─ e, por alguns instantes, sentiu o impulso de se voltar para Marina, apenas para lembrá-la de se inscrever também.

─ Mas então, todos animados e com foco total para o Enem? Agora só faltam mais dois meses e 24 dias… ─ o professor voltou a falar, de uma forma que parecia querer assustar, mas de uma maneira caricata demais para isso, que só o tornava irritante.

Enquanto tirava o caderno da mochila, Helena soltou um suspiro. Àquela altura, nem sabia mais indicar a razão para tudo que sentia dentro de si.

─ ─ ─

No banco do pátio, sob a árvore grande, era possível ver as folhas secas rodopiando no mesmo ritmo que dançavam os arbustos e flores do jardim perto do parquinho. O vento era forte e frio, inclusive contra os casacos de moletom de Helena e Marina, e parecia quase querer cantar entre as duas, como que para afastar o silêncio que preenchia aquele espaço.

─ Nem acredito que já é sexta. Parece que as férias começaram semana passada… 

Lena havia acabado de comer um pedaço de seu sanduíche de pão australiano e soltou uma risada ao ouvir a frase.

─ Né?! Nossa, a pior parte de ter férias legais é que acaba passando rápido.

Marina, mordiscando calmamente uma maçã, parecia meio distraída com a dança do vento, porque apenas riu pelo nariz.

─ Pois é.

Helena espanou as migalhas que caíram em seu colo e concordou com a cabeça, mas logo voltou a morder um pedaço do lanche ─ e, dessa vez, ele lhe desceu esquisito pela garganta. Ela, que estava acostumada a ser a pessoa mais silenciosa das conversas, se sentia estranha e meio exagerada com aquela interação.

E, no entanto, manter um diálogo parecia menos incômodo do que o silêncio, que alimentava em sua cabeça uma série de pensamentos pouco divertidos. Por isso, ela voltou a tomar a palavra.

─ A sala tá quieta hoje, né?

Outra risada baixa balançou os ombros de Marina, que tinha agora a atenção direcionada para a maçã. E, com esse pequeno movimento, Lena teve a sensação de que, momentaneamente, voltara para o clima tranquilo das férias. 

─ Pois é, essa semana toda… será que eles finalmente assustaram com o Enem?

A resposta natural de Mari, com ainda um rastro de sorriso nos lábios, veio como uma surpresa boa, quebrando o padrão do comportamento dela até então. Helena abriu um sorriso pequeno também. 

─ Podia continuar assim, né? O Marcos tava até mais sério hoje… 

Marina concordou com a cabeça e parecia querer voltar a sorrir, mas o som exageradamente alto do sinal invadiu todos os ambientes do colégio de uma só vez e interrompeu a conversa. Lena, ao ouvi-lo, soltou um suspiro exageradamente sofrido.

─ E lá vamos nós de novo… 

Apesar de ter durado pouco, o som estridente pareceu despertar as duas para a realidade. A garota nova deu uma risada menor, mais silenciosa, e concordou brevemente antes de se levantar. Helena também se levantou, e, depois de uma parada estratégica na lixeira, as garotas voltaram para a sala sem trocar muitas palavras.

─ ─ ─

Após uma aula de História e uma de Matemática, Helena, se dependesse de sua vontade, já daria o mês ─ o semestre, o ano letivo ─ como encerrado. Aquela sexta-feira, na realidade, estava sendo um daqueles dias chatos, em que cada horário de aula parecia se arrastar, multiplicando-se em vários. 

Assim, na altura da metade da aula de Sociologia ─ que estava se mostrando, sem nenhuma surpresa, tão chata e parada quanto as demais ─, Lena já havia até mesmo ficado sem espaço para rabiscar na última página do caderno. Até que, sem mais nem menos, o tema da aula resvalou de globalização para direitos sociais. E, antes mesmo que a garota pudesse entender o que estava acontecendo, a voz de Caio, coberta de deboche e cinismo, se fez ouvir na sala toda, seguida de uma pequena explosão de risadas:

─ Não tem que ter essa bobagem aí de casamento gay, não… a opção sexual da pessoa tem que ficar no quarto. Hoje em dia esse movimento gay tá querendo é ter privilégios.

Vanessa, a professora de Sociologia, ensinava muito bem; o único problema era que, por ter posicionamentos políticos fortes e muito bem-definidos, acabava se tornando um alvo preferido para as provocações dos garotos da sala. E, por ignorar ─ ou não perceber ─ o cinismo nas afirmações que eles faziam durante as aulas, acabava rendendo discussões que, na opinião de Lena, não precisavam durar tanto assim.

─ Na verdade, Caio, a principal pauta do movimento LGBT hoje em dia é a busca por igualdade de direitos, e não privilégios. Ninguém fala a um homem hétero para beijar sua namorada entre quatro paredes, por exemplo… ─ a professora explicou, paciente, mas àquela altura, o rapaz nem prestava mais tanta atenção assim.

─ Sei lá. Só acho que tem que ter um respeito. Eu não me sentiria confortável convivendo de perto com uma lésbica, por exemplo… vai que ela tenta dar em cima de mim ─ Isabella tomou a palavra, e sua última frase foi pronunciada com uma expressão meio enojada, que fez Helena revirar os olhos.

Na verdade, era de certa forma surpreendente que aquele grupinho tivesse demorado tanto, desde o início do semestre, para retomar suas pequenas provocações e alfinetadas. No entanto, agora tudo estava de volta, inclusive o pequeno sorriso debochado de Isabella enquanto ela cravava o olhar no canto do fundo da sala.

Lena já sentia o habitual embrulho no estômago, aquela agitação que lhe deixava com as mãos tremendo um pouco, uma vontade de rebater, de discutir ─ ainda que seu senso exacerbado de autopreservação, no fim das contas, sempre falasse mais alto e a silenciasse. 

Dessa vez, porém, para sua surpresa, a resposta não veio da frente da sala, onde a professora ainda se mantinha, o livro didático em uma mão e a caneta de quadro na outra. Veio de bem mais perto.

─ Sei lá, Isabella, eu entendo que sua autoestima seja bem alta, e que você ache que absolutamente todo mundo no mundo quer ficar com você, mas… não precisa preocupar. Você nem faz o tipo das lésbicas que eu conheço.

A voz de Marina, como sempre, era limpa, clara e tranquila, apesar da pitada de ironia que perpassava as ênfases em suas palavras ─ e, ao ouvi-la, Helena sentiu uma pontada de satisfação e quase deixou escapar um sorriso. Mas, logo em seguida, ao som dos gritos, exclamações e risadas dos alunos “neutros” da sala, começou a se perguntar o que, exatamente, aquela tomada de posição significava ─ sobretudo, no que dizia respeito ao estranho equilíbrio da relação das duas no momento.

─ Ok, agora chega. ─ A professora elevou a voz e, aos poucos, abafou a algazarra. ─ Futuramente, na disciplina, vamos abordar mais profundamente as questões sociais e aí a gente discute melhor essa parte, combinado? Agora vamos voltar pra globalização.

Lena, em sua carteira, não teve coragem o suficiente para voltar o olhar para Marina ─ até porque, a bem da verdade, não fazia ideia do que dizer à garota, se fosse esse o caso.

Ela, enfim, respirou fundo, tentando acalmar o pulso ainda acelerado, e abriu o caderno na página certa, torcendo para conseguir preencher a cabeça com a matéria, no tempo que ainda restava da aula.

─ ─ ─

Quando o último sinal tocou, Marina já estava com a mochila praticamente toda arrumada ─ e, logo que Vanessa liberou a turma, ela saiu da sala, depois de trocar com Helena uma despedida tão sucinta quanto o cumprimento da manhã.

Aquilo não fugia do padrão da semana, mas, mesmo assim, ainda deixava Lena com uma sensação estranha. Ela ainda sentia falta do clima do fim do primeiro semestre, quando as duas, quase todo dia, deixavam a escola juntas.

No entanto, Helena tinha de admitir que havia passado muito mais tempo, naquele colégio, fazendo as coisas sozinha ─ e sabia que era questão de tempo para se reacostumar.

─ Então vocês brigaram ou não?

Lena continuou concentrada, guardando os cadernos, quando ouviu a voz de Isabella, incomodamente próxima. Até o ocorrido da aula de Sociologia, havia quase esquecido da existência da garota ─ apesar de, às vezes, sentir seu olhar quando cruzava com ela, vez ou outra, na escola.

─ … Porque eu reparei que você não tá mais grudada nela, igual semestre passado. Mas ela continua te defendendo...?

Helena revirou os olhos, ainda com a cabeça baixa. Terminou de enfiar os cadernos de qualquer jeito na mochila e fechou o zíper com certa brusquidão. 

─ Bom… ─ Isabella continuou. ─ Ela não tá errada… só achei que demorou demais.

Lena, enfim, ergueu a cabeça e jogou a mochila nas costas.

─ Vai se fuder, Isabella ─ respondeu, com uma voz firme e séria, de uma só vez. E abandonou a sala o mais rápido que pôde.

Enquanto caminhava na direção do portão do colégio, porém, sentiu suas mãos tremendo outra vez.

Agora, pelo menos, Helena entendia melhor por que diziam que a adolescência era um período conturbado. Afinal, ela mesma não se lembrara de um dia ter se sentido mais confusa em relação a absolutamente todos os aspectos de sua vida.


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