Dos ritos, das palavras e das magias escrita por Lyn Black, Indignado Secreto de Natal


Capítulo 2
A Filha De Cailleach


Notas iniciais do capítulo

Opa, vamos lá!

Esse capítulo tem algumas boas e queridas referências a lendas e mitos da região da Grã-Bretanha, em especial a Escócia e a Ilha de Skye, onde o conto se passa. Nas notas finais colocarei os detalhes sobre as lendas que inspiraram o conto, okay? E também vale mencionar que as localizações são reais!
Outro adendo: altas influências de As Brumas de Avalon quando se tratando da Deusa e de suas faces!

DICIONÁRIO GAÉLICO-ESCOCÊS - PORTUGUÊS:
* Màthair - Mãe
* Nighean - Filha

Um beijo e boa leitura!



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PRIMEIRO CONTO: A FILHA DE CAILLEACH

 

A história a seguir é a compilação de relatos e fragmentos de sussurros obtidos das bocas das contadoras de estórias da Ilha de Skye, da Região das Hébridas, da não tão distante Escócia. Tanto as matriarcas das famílias bruxas moradoras da região, quanto às senhoras trouxas contaram em detalhes a história de Deoiridh e, curiosamente, as versões trouxa e bruxa não se diferenciam muito, sendo possível, assim, trazer uma síntese das duas. 

 

 

         

A FILHA DE CAILLEACH

 

Diziam que entre os largos troncos das Colinas de Cuillin, nas Terras Altas da Ilha de Skye, morava uma estranha mulher, reclusa em sua cabana. Ela possuía longos cabelos acinzentados, conversava com árvores e era a guardiã de infusões potentes, como se fossem mágicas. Ninguém parecia se lembrar de quando ela havia surgido, ou se sua presença nas terras era tão antiga quanto às rochas que rodeavam a pequena comunidade. Deoiridh, entretanto, era a segunda bruxa a ocupar o casebre nas colinas. 

A primeira, sua mãe Evhe, havia chegado à Skye com uma recém-nascida nos braços e uma trouxa de roupas amarrada em seu corpo. Fugia de outra ilha após o assassinato do pai de sua filha, a pequena Deoiridh, uma bastarda, e todos sabem o destino de bastardas em clãs após a morte de seus protetores. Chegara lá em uma noite de chuvas torrenciais, na qual o mar decidira se revoltar como uma mãe diante de um filho perdido. Desembarcara de um barquinho que já se desfazia pelo rugir das ondas, olhando temerosa para os céus e para a sua menina.

Agarrada à infante, encontrara abrigo na casa de uma companheira trouxa, que tentava acalmar a sua própria criança. Ao ver a mulher mais velha encharcada na sua batente, acolheu-a e dividiu sua comida e seu teto. Em troca, recebeu os cuidados de Evhe, aprendendo, também, sobre os tônicos e cânticos que ocultavam uma magia muito antiga.

Logo, a moça trouxa entendeu como a mulher, mesmo já não sendo mais uma menina, sustentava com saúde aquela bebê: bruxas, aparentemente, vivem mais do que humanos comuns. A desconfiança dos outros trouxas, entretanto, fez com que a forasteira ficasse acuada no vilarejo – algumas famílias diziam que ela havia enfeitiçado a mulher que a dera abrigo –, e, não querendo colocar a amiga em risco, refugiou-se nas densas colinas.

Essa parte, contudo, é de conhecimento apenas dos bruxos, pois segundo a lenda trouxa, Deoiridh surgiu do pó das montanhas após uma tempestade. Apenas era vista, contavam os anciões da vila, quando o inverno atingia seu ápice e sua sombra fazia-se presente sobre todos os moradores da ilha. Foi por isso, e pelo que ainda iremos contar, que após um dos piores invernos de Skye, passaram a chamá-la de filha de Cailleach. A reverência e medo ao redor do título circundavam a antiga divindade do inverno, mãe de todas as bruxas, presente ainda nas preces desesperadas de Skye.

Evhe, contudo, continuou vivendo pelas colinas com sua filha ao seu lado, ensinando a pequena Deoiridh sobre os mistérios das poções e da magia que as cercava. Elas cresceram e prosperaram juntas por muitos anos, vivendo da floresta e para ela, ajudando trouxas perdidos e aqueles corajosos o suficiente para atravessar as Colinas buscando a ajuda de Evhe.

O ano maldito, entretanto, chegou com uma colheita escassa e um frio mortífero. Foram muitos os trouxas que caíram, e havia pouco que Evhe e sua filha, já uma bruxa adulta, pudessem fazer. Algumas vezes, ocultas por feitiços, trilharam o caminho até Portree para tentar ajudar os convalescentes, mas não poderiam interferir profundamente no que aparentava ser um desejo da natureza. Vocês sabem, não é mesmo, que existem demandas da magia que apenas as feiticeiras mais poderosas podem escutar completamente e transformar, e aquele, sem dúvidas, aparentava ser um desses casos.

Pareceu para a nossa bruxa, dessa forma, que quando sua própria mãe adoeceu, ficando acamada por semanas a fio, havia algum tipo de sinal no ar. Ela observou os ventos, tentou escutar as árvores e seus segredos, mas a natureza mostrava-se muda naquele período, apenas uma espectadora passiva da sua dor. Deoiridh caminhou de riacho a riacho, e fez diversos encantamentos, mas, apesar de todos os seus esforços, o estado de sua mãe perdurava, agravado pela velhice que já carregava há anos. Coincidentemente, ela passava pelo seu último teste de devoção à Magia, mantendo-se em silêncio de dedicação à Deusa há já quase vinte e quatro luas.

Em uma manhã de inverno, ela preparava-se para uma próxima busca pelas colinas quando escutou fracas e descompassadas batidas na porta da cabana. A sua mãe, que não falava há dias, pareceu despertar.

— Atenda a porta, filha — disse em um tom arrastado e quebradiço.

Deoiridh, pega de sobressalto pela voz que havia decaído ao longo das semanas, levantou-se do chão, onde arrumava uma espécie de mochila feita de folhas trançadas. Limpando as mãos na saia costurada por sua mãe, andou apressada até a entrada. Após murmurar um feitiço e balançar as mãos, uma senhora encurvada invadiu a sua visão.

— Graças a Briggita — sussurrou a senhora de cabelos já com vários fios prateados —, você deve ser a filha de Evhe, minha criança.

Deoiridh assentiu levemente, embora há incontáveis verões não fosse mais uma menina, e abriu passagem para que a senhora saísse da friagem, indicando o interior da cabana, onde uma lareira aquecia o ambiente. A velha, contudo, ignorou o fogo e dirigiu-se para a cama em que a mãe de Deoiridh descansava. Segurando a mão da convalescente, ela deixou seu corpo cair ao chão, revelando entre seus braços um bebê ainda avermelhado, recém-nascido.

— Preciso de um último favor, querida amiga, um retorno por quando abriguei você e sua criança tantas e tantas eras atrás — falou, revelando uma rouquidão da voz semelhante àquela que Evhe apresentava. — Minha filha, Gaele, foi encontrar as Deusas após dar à luz a essa menina.

Evhe balançou a cabeça e murmurou:

— Lamento sua perda, Gaele está em paz entre as bençãos das Deusas, saiba disso.

A senhora beijou as mãos da outra, e continuou a falar:

— Estou morrendo, minha amiga, posso sentir, e a pequena não terá ninguém, o pai morreu em uma caçada há duas luas minguantes – sussurrou enquanto agarrava a bebê.

— Nós duas estamos — respondeu com um suspiro. — Temo que tenha havido algum desequilíbrio e as Deusas estejam cobrando... Mas posso estar errada.

As duas encararam a criança no colo da mulher trouxa. Sem desviar os olhos, Evhe direcionou-se à filha:

— Seu tempo está começando, minha filha. O voto de silêncio que fez se finda hoje — decretou.

Deoiridh caiu de joelhos no chão de pedra construído pela matriarca, apoiando a sacola no chão.

— Obrigada pelas dádivas, mãe — falou.

Juntando as poucas forças que lhe pareciam restar, ergueu-se da cama, e tomou gentilmente o bebê dos braços da amiga.

— Cuidará da pequena como se fosse a sua própria e, se for necessário, perpetuará o nosso legado nela. – Finalizou sua sentença colocando a criança no colo da filha.

— Que assim seja, màthair*.

Dizem que após pronunciar essas palavras, um raio despencou perto demais da cabana, e a já vivida Evhe encontro o Mundo dos Mortos, ou como quer que prefiram chamá-lo. Deoiridh, respeitando os ciclos e os desígnios, acolheu por mais algumas noites a avó da menina, até ela também desfalecer no sono profundo, e enterrou ambas nas proximidades da cabana.

Após esse dia, sua magia expandiu-se como nunca, tanto para proteger e nutrir a criança, como também em reação ao fim de seus votos de silêncio. Dessa forma, a pequena Brighde cresceu acompanhando Deoiridh pelas suas incursões pelas altas colinas e grutas da Ilha de Skye. A menina era bem grudada na bruxa e, apesar de saber que sua mãe havia ido há muito ao encontro das Deusas, chamava-a de màthair e tentava ao máximo aprender sobre as mágicas da mestra. Era, entretanto, uma trouxa, o que a entristecia bastante.

Màthair, por que não consigo fazer magias como a sua? – questionava no auge de suas onze primaveras ao observá-la transformar uma flor em passarinhos apenas com as mãos.

Deoiridh pousava a mão na face da filha e advertia-a:

— A Deusa encarga-se de espalhar sua força de diversas formas, Brighde. Todos os seres, inclusive você, possuem magia, ela apenas tem seus modos de se manifestar. Agora venha, podemos ajudar os outros sem usar nenhum feitiço e você precisa aprender todos os jeitos para assumir meu lugar quando eu partir. 

E assim elas passavam seus dias. O vilarejo de Portree, onde ambas apenas haviam permanecido pouco tempo, quando ainda bebês, logo passou a comentar sobre a velha sábia das montanhas e, ao longo dos anos, cada vez mais jovens arriscavam-se até lá em busca de proteção, especialmente antes de tentarem cruzar os mares por muitos meses. A presença de Brighde, entretanto, não passou despercebida, uma vez que, com o passar dos verões, ela tornava-se uma jovem e potente mulher.

Os invernos, entretanto, parecem ter sido a sina da linhagem de Evhe, pois quando a garota Brighde já tinha trinta primaveras, o pior inverno que Deoiridh já havia presenciado assolou a Ilha de Skye. O mar se revoltava, invadindo as praias com uma força pouco costumeira, mesmo para os pontos com menor calmaria, e os peixes estavam cada vez mais longe das redes. O frio e a fome, duas senhoras do terror para o povo, começavam a dar as suas sombrias caras, roubando recém-nascidos dos braços de pais e tomando o último suspiro dos mais velhos.

Foi nesse contexto que um jovem trouxa, que teve o nome esquecido através dos relatos, recorreu à magia de Deoiridh. Alguns dizem que ele era de uma das famílias de pescadores, já outros falam que o homem era, na verdade, um enviado dos Deuses para salvar os camponeses, tamanha a sua determinação em lutar contra as mazelas da natureza. O que se lembram bem, porém, e de seu porte alto, de sua voz musical e da cicatriz que carregava no rosto, atribuída às mais diversas aventuras.

Na primeira vez que ele subiu as Colinas, foi cerimonioso e gentil. Contou sobre sua família e apenas pediu tônicos para fortalecer a todos no vilarejo. As duas, de prontidão, acataram o pedido e passaram a produzir a partir dos galhos secos e de murmúrios baixos as poções pedidas. Tudo, entretanto, exige um preço, falou a velha bruxa, e avisou ao jovem para que não desse mais de uma dose para cada um. Ele falou que cumpriria as orientações, e retornou para a casa acompanhado de Brighde, quem o ajudou a carregar as bacias com os tônicos. Após ajudar a distribuir a bebida, a mulher retornou para a sua mãe, evitando despedidas. Nunca havia vivido entre muitas pessoas, e os trouxas, apesarem de serem como ela, desconfortavam-na. O homem, porém, amargurou-se ao vê-la partir sem olhar para trás.

Na segunda vez que ele buscou o auxílio de Deoiridh, poucas semanas depois, carregava no colo uma menina pequena, que parecia mais próxima das Deusas do que qualquer um ali. O inverno estava adensando-se e a sua sobrinha desfalecia em febre e feridas. A bruxa usou de unguentos nos machucados e tentou salvá-la, mas não houve solução. Após isso, o rapaz, antes solícito, endureceu-se e acusou-a de não ter feito o suficiente. A senhora, entretanto, entendia o luto pelo qual ele passava, e apenas recebeu as ofensas sem alterar-se, não imaginando que muito mais sucederia da raiva momentânea.

Quando ele voltou pela terceira vez, entretanto, carregava um rosto marcado por dor — outros parentes haviam sido levados pelas enfermidades —, e não desejava nenhuma ajuda.

— O inverno não deixa essa terra por sua culpa, feiticeira — sibilou, apontando um machado para a senhora, que o recebera com a mesma amabilidade de todas as outras vezes.

Era a vez de Brighde estar em seu período de silêncio, e Deoiridh encontrava-se sozinha na cabana. A sua menina estava isolada em uma gruta, dedicando-se à Deusa e às suas faces.

— Não tenho poder nenhum sobre a natureza, meu filho — falou com calma, não se atemorizando com a agressividade do homem.

Ele balançou a cabeça com veemência.

— Tal como Cailleach você mantém a primavera presa e atormenta-a, lançando seu inverno sobre nós, tolos mortais, que caminhamos até aqui para pedir o seu auxílio. — Elevou o tom, os olhos arregalados. — Onde está a moça que vive contigo, o que fez com ela, com a doce encarnação de Briggita?

Olhando curiosa para a figura que projetava uma longa sombra sobre o chão, Deoiridh não pareceu se abalar muito mais, e negando-se a dar mais respostas, pediu que se retirasse de sua casa. O homem, com raiva nos gestos e nos olhos, porém, jurou retornar lá uma quarta vez para salvar a mulher que, dizia, incorporava a primavera, e para fazer dela sua esposa, salvando-a para sempre das garras da senhora. A bruxa, devemos dizer, apenas sorriu para ele, sustentando descrença quanto aos seus rugidos, apesar de se preocupar por dentro.

Após isso, conta-se que o inverno atingiu seu ápice e as energias de Deoiridh começaram a falhar levemente, um dos muitos sinais que a Grande Mãe dá quando deseja ter com suas filhas. Ao mesmo tempo, o homem tentava, cada vez mais, suscitar no vilarejo alguma revolta contra a misteriosa figura das montanhas. Ele recontou o conto por incontáveis vezes até que todos, mesmo os céticos, passaram a questionar a possibilidade de haver, realmente, uma causa de toda aquela desgraça tão perto.

Na sua cabana, porém, Deoiridh conseguia sentir que as energias no sopé das colinas agitavam-se gradativamente. Preocupada com seu estado, a chamada filha de Cailleach, buscou Brighde. Temendo enormemente pela mulher, que embora conhecesse todas as raízes, plantas e curas, não era versada em magias de defesa e ataque, Deoiridh tomou uma decisão difícil.

Sentindo que seu fim estava próximo, as contadoras de histórias relatam que ela sentou com Brighde ao lado da lareira e contou o que sua mãe comentara sombriamente com ela poucas luas antes de morrer: como, se as Deusas concordassem, ela poderia passar a sua magia para uma descendente não-bruxa, ligada a ela por um amor profundo, daquele do mais mágico, intenso e abençoado pela própria Magia. Dessa forma, Brighde, com sua juventude, poderia evitar a morte da aldeia e se defender tanto do homem do vilarejo, como de qualquer outro.

A filha recusou prontamente aceitar a dádiva, mas a mais velha afirmava claramente sobre como, em breve, estaria partindo, e precisava deixar esse último presente. Contam que ela teria, também, conversado com as Fadas de Skye, as próprias descendentes do povo mágico de Avalon. Através delas, ela teria tido a certeza de que a menina trouxa já possuía toda a magia dentro de si e aquele ritual seria apenas o necessário para impulsioná-la, enfim. Sobre isso, nem mesmo as antigas bruxas de Skye parecem concordar.

As duas choraram juntas, e Brighde acatou o último desejo da mãe. Suas lágrimas, contam os trouxas, converteram-se em chuvas e ventanias. Bruxa e trouxa, contudo, apressaram-se para alcançar a Piscina das Águas na noite do Solstício de Inverno, onde, em noites de Lua Cheia, dizia-se ser possível tentar usar da Visão mágica para enxergar nas águas a vontade das Deusas. É sabido, especialmente nas Hébridas, que o dom da visão perdeu-se ao longo dos séculos na medida em que a descrença e a desconexão invadiram e tomaram o mundo, usurpando das mulheres o domínio de seus poderes, inclusive no mundo bruxo.

Em passos lentos, elas atravessaram a ilha, fugindo dos olhares dos trouxas e sendo ocultas pelas sombras das árvores e de outros seres mágicos.

— Esteja pronta, querida, para abraçar a magia, caso A Deusa o permitir.

Brighde tremia sob o vento gelado, apesar da magia de aquecimento que a senhora havia posto sobre seu corpo.

— Nós não precisamos fazer isso, màthair, deve haver outro jeito – apelou em um melancólico tom, temendo pela vida daquela quem a havia criado e ensinado a escutar as estrelas, lágrimas pelo seu rosto.

Deoiridh suspirou, e estendeu os braços, acolhendo a garota, que soluçava nas suas roupas.

— Esta ilha precisa de uma guardiã, minha querida, e cabe a mim coroá-la com os galhos da Deusa, para que o inverno possa ser conduzido para longe. Meu tempo já está escorrendo para longe, pouco de mim ainda pertence a esse mundo. Não faço isso só por temer pela sua segurança, mas pelo ódio que aquele homem está alimentando na aldeia. A magia tende a florescer no desequilíbrio e as crianças precisam de suas orientações para que encontrem mais dos seus.

A jovem agarrou-se na senhora, e beijou suas mãos.

— Nunca fui uma bruxa, afinal, como serei uma sem a sua ajuda? Como encontrarei mais dos seus? — questionou, externando, enfim, as suas inseguranças para a mentora.

Ao escutar as palavras da mais nova, ela sorriu.

— Mais dos nossos. Minha mãe me contava, nighean, sobre uma Escola de Magia, da qual ela só havia ouvido falar rumores deslumbrados. Ela foi a única bruxa que conheci, mas a magia não está nos bruxos, ela está no mundo. Você só precisa escutar com atenção, querida.

Limpando as lágrimas, Brighde assentiu.

— E como faremos o ritual? — perguntou.

E, assim, um dos processos mais delicados da magia aconteceu. Não se sabe onde Deoiridh aprendeu os passos. Talvez as fadas tenham sussurrado as palavras naquela noite ou, quem sabe, a magia tomou uma de suas muitas formas e realmente visitou ambas mulheres. O lago era grande e estava congelado, as cachoeiras praticamente interrompidas em suas quedas. Luzes mágicas acompanhavam as duas, iluminando o caminho que havia escurecido com o cair da noite.

Deoiridh estagnou e levantou as mãos, fechando os olhos e puxando o ar de seus pulmões. O fogo surgiu com um clarão ao redor das águas, e a jovem trouxa encontrou-se rapidamente inconsciente, quase hipnotizada, numa transe, flutuando levemente. O vento começou a se agitar e a água mostrou sinais de descongelamento à medida que a filha de Cailleach adentrava às geladas águas. Com suas mãos, ela pareceu desacelerar o tempo enquanto afundava plantas mágicas no lago.

De olhos semiabertos, encurvando sua já desgastada coluna, ela parecia recitar uma música antiga, que não ousamos reproduzir em texto algum. Eram palavras sagradas, passadas de geração em geração para sacerdotisas e devotas da magia, encerradas nos olhos brilhantes das bruxas de outrora. É bem possível que algumas ainda carreguem o retumbar característico na dobra de suas línguas, apenas esperando para ser desperto, mas cabe à nós esperar o chamado.

O ar foi evocado. O fogo estava presente. A água inundava a bruxa. A terra, por fim, fez-se presente com um ruído: uma rocha despencava do topo de uma das cachoeiras. A magia parecia se alinhar e, no momento de maior escuridão daquele Solstício, Deoiridh queimou as folhas mágicas, que tinha coletado na última primavera, misturadas com o sangue das duas. Olhando uma última vez para as sombras bruxuleantes, sentindo novamente o cheiro do ódio que se esquentava no vilarejo próximo, afundou-se no lago, fincando os pés na terra lamacenta.

Quando sua cabeça finalmente submergiu, atrás dela, Brighde, que flutuava levemente com os olhos abertos e opacos, perto da dançante luz do fogo, pareceu ser empurrada acima das chamas. Uma luz azulada atravessou o corpo da bruxa, iluminando o lago por alguns segundos e fazendo todo o corpo de Brighde tremer. Ao se levantar das águas, a bruxa tinha os olhos prateados e nada parecia enxergar.

— O sacrifício foi aceito, que a vontade d’Ela seja cumprida — falou em uma voz cavernosa, metálica, que não parecia a sua própria, em uma língua inteligível para a maioria dos bruxos de agora.

Brighde, brilhando como uma estrela cadente despencou no chão após a sentença sair de sua mãe, o fogo cessando no instante que tocou o solo. Olhos abertos e enxergando tudo com mais clareza, ela correu até a mulher, que agora boiava na beira do lago, sem vida aparente. O seu mundo escurecia, entretanto, agora que o brilho do ritual cedia.

Os olhos de Brighde cintilaram com lágrimas e, numa tentativa chorosa, ela balançou as mãos, sussurrando as palavras que escutara tanto da mulher que segurava inerte nos braços, na vã missão de reanimá-la. Lentamente, luzes azuladas surgiram ao seu redor, como se fossem fadas circundando-a. Brighde, filha de Deoiridh, agora com cabelos acinzentados como os de sua mestra, lá ficou agarrada à mulher até o fim do solstício.

As contadoras dizem que ela partiu da ilha pouco tempo após o ritual, desolada com a realidade que agora enfrentava. O homem que fizera as ameaças morreu numa incursão à cabana da Filha de Cailleach pelas mãos de Brighde, e a paz foi restaurada em Skye. O corte no tecido mágico, entretanto, foi sentido por todos presentes em Skye e nas suas proximidades, atraindo a atenção de outras feiticeiras, que chegaram à ilha não muitos anos após o ocorrido. O lago, pouco tempo depois, foi batizado de Piscina das Fadas, em razão do estranho brilho que parecia estar entranhado em suas águas após aquela noite. 

Brighde retornou para Skye algumas luas depois, munida de encontros e magias antes desconhecidas. Virou curandeira do vilarejo, encaminhando os jovens bruxos e bruxas que encontrava em Skye e nas Hébridas, após o seu próprio treinamento, para a escola de magia mencionada por sua mãe. A Ilha de Skye preservaria seu ar místico pelos séculos seguintes...

 

 FIM

 

          

 

 

Não muito após quando se estima que o conto tenha ocorrido, nota-se o surgimento de uma comunidade bruxa em Portree, mesclada com os trouxas pelos séculos seguintes, provavelmente associada à atenção que foi voltada para Skye após o ritual de Cailleach. A sua história foi repassada por gerações, sendo contada, inclusive, no banquete realizado em 1292 em comemoração a fundação do time de quadribol Pride of Portree.

A jovem para quem ela transferiu seus poderes, ritual que provavelmente foi razão para os desabamento e movimentações rochosas relatados pelos trouxas pela tradição oral, ao que tudo indica teve uma filha bruxa, dando continuidade para a linhagem mágica das chamadas Filhas de Cailleach. Sabe-se que as descendentes costumavam guiar bruxas numa peregrinação entre Glastonbury – onde as brumas de Avalon ainda são visíveis – até a Piscina das Fadas nos séculos XV e XVI no período do Solstício de Inverno, no Samhain

 

 


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Notas finais do capítulo

COMENTEM GALERA

Observações, curiosidades etc:

QUANTO AOS NOMES:
* Deoiridh, do gaélico-escocês, significa Peregrina, o que se encaixa com a trajetória de sua mãe, Evhe, que foi até Skye para lá viver com ela.
* Brighde leva o seu nome para estabelecermos uma relação ainda mais profunda com a própria deusa Briggita. Porque...

A LENDA DE CAILLEACH
Cailleach, também conhecida como Cailleach Bheur[2], ou Buí é uma figura mitológica que aparece na Irlanda, Escócia e na Ilha de Man, sob o nome de Caillagh-ny-Faashag. Na Escócia, ela personifica o espírito do inverno, aprisionando a deusa Bríde (Briggita) em sua montanha no final do outono, anunciando o início do seu reinado. Junto com suas serventes, montadas em cabras pretas - as Cailleachan, Cailleach é a responsável pelas tempestades.
Beinn na Cailleach, situada na ilha de Skye seria um dos seus refúgios favoritos, como o são, pela sua vez, outras montanhas chamativas na paisagem que são abaladas por fortes tormentas de água e neve e chuvas, destruindo o terreno monte embaixo.
(fonte: Wikipédia)
Outra crença dos celtas sobre esta deusa é que "nasce" velha no início do Inverno e depois vai rejuvenescendo sem se converter em pedra nem viajar até Avalon, mas pela autoria de um processo natural. Esta tradição estava difundida, sobretudo, em Gales e na Inglaterra. Cailleach também prediz o clima, protege os druidas e transforma-se em grou para salvar grandes distâncias. A Rainha do Inverno, título que lhe adjudicavam os celtas, buscava guerreiros e heróis nas florestas pedindo amor, e quando o recebia transformava-se numa formosa mulher jovem.
Em algumas versões, ela torna-se Brigita.

SOBRE A ILHA DE SKYE:
* A Piscina das Fadas realmente existe, e é bem bonita, minha gente! Vcs podem acessar esse link:
https://www.google.com/search?q=piscina+das+fadas+skye&sxsrf=ACYBGNSSEd24wH5TOMZ6Jq5BT79RZZPRJA:1577237878533&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwi2tOf71M_mAhWLE7kGHYrACLUQ_AUoAXoECAwQAw&biw=1517&bih=736
ou jogar no Google "Piscina das Fadas Skye" que dá no mesmo! Mas a razão pelo nome fui eu quem criei aqui mesmo. Deoiridh e Brighde teriam caminhado das Colinas de Cuillin até as Piscinas, o que dá pelo Google Maps umas 2-3 horas de viagem a pé.

SOBRE PORTREE:
Pride of Portree realmente existe e foi citado pela JK! Você pode achar mais sobre o time de quadribol aqui:
https://harrypotter.fandom.com/wiki/Pride_of_Portree

ACHO QUE É ISSO, MINHA GENTE! BEIJOS E ATÉ O PRÓXIMO!



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