Curto-Circuito escrita por Biazitha


Capítulo 4
Brasa




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O corpo da mulher estava inerte em cima da maca fria, oito pessoas com jalecos brancos a rodeavam e escreviam cada sinal que brilhava no grande computador ao seu lado. O casal de idade já avançada observava atrás de uma janela de vidro tudo o que faziam, aflitos e com um grande desespero estampado no rosto.

— Boa tarde, meus caros. — saudou o homem de aparência despojada e um pequeno birote no topo da cabeça. Elijah Kamski, o próprio. — Creio que devem estar temerosos, mas eu não falho em minhas criações. Vocês sabem que estão em boas mãos.

— Por favor, tem alguma informação concreta sobre o que aconteceu? — a mulher segurava as duas mãos contra o peito como se protegendo de um mal invisível. O vestido florido e colorido contrastava com a palidez de sua face. O medo de que a filha perdesse a memória mais uma vez era demais para suportar, aquele homem excêntrico era realmente a sua última esperança.

— Ela se desligou porque faltou thirium em seu sistema. O atraso quase custou o bom funcionamento do projeto, mas já estamos estáveis. — entregou para o casal uma prancheta cheia de papéis sobre Tenten. — O próximo passo será implantar um sistema digestivo ainda mais eficiente capaz de destruir a comida com mais naturalidade, sem danificar nenhuma outra parte. Enquanto isso continuem salientando que a dieta dela deve ser leve e com alimentos moles, fácies de mastigar.

Os três voltaram instantemente os olhos para aquele corpo sintético e branco, o que antes era Tenten Mitsashi agora revelava a sua verdadeira essência, àquela que ela não imaginava ser ou ter. Não haviam cabelos longos e sedosos em volta da cabeça, muito menos lábios rosados e macios. Os olhos parados. Os pelos do seu corpo não estavam há vista em lugar algum e as unhas das mãos eram de um tom sem vida. O peito estava aberto, escancarado como o capô de um carro, e as pessoas se debruçavam sobre ele fazendo milhares de anotações.

Era apenas uma carcaça mecânica – o esboço de um ser humano – repleta de fios elétricos e componentes de cobre.

Uma androide.

— Os sinais de esquecimento... — foi a vez do pai de Tenten falar ou pelo menos tentar. Doía ver que a sua filha tão querida não era mais a mesma, mas também jamais permitiria que a doença a levasse sendo tão nova. Nunca se perdoaria se não tivesse tentado outra saída.

— Não se preocupem com isso. — tão seguro e cheio de si, Elijah rebatia cada medo daquele casal como se não fosse nada. Para ele não era mesmo; máquinas poderiam alcançar a perfeição, contudo precisavam de tempo para tal. O mesmo acontecia com Tenten, aos poucos iam fazendo modificações e atualizações que a deixavam cada vez mais próxima do que desejavam. — Foi um erro em uma das sequências de códigos que já foi corrigido, ela está apta a voltar com a vida normal. Os dados estão tão funcionais quanto o de um adulto da idade dela. As memórias humanas estão intactas, o Alzheimer não chegou nem perto de corroer a memória robótica.

A mulher levou uma das mãos à cabeça, suspirando com grande alívio. Lembrava com exatidão do dia em que havia recebido a notícia de que Tenten estava desenvolvendo a doença de uma forma mais cruel, rápida e precocemente. Viu a filha definhar diante dos seus olhos em pouco tempo. Começou com pequenos apagões, a menina só tinha 16 anos e se perdeu na rua várias vezes ao voltar do colégio, confundia o próprio nome e chamava pelos pais quando os mesmos estavam na sua frente. Depois começou a ter falhas na escrita e leitura, por fim na fala. Comunicava-se como um bebê, repetindo palavras e sílabas inaudíveis. Há tempos não reconhecia mais os familiares, nem mesmo nos poucos momentos de “lucidez”.

Em alguns meses caiu de cama, não sabia se alimentar mais e o corpo padecia aos poucos. Os pais esconderam a situação da filha do resto do mundo, abatidos e desacreditados demais em tamanho sofrimento.

O mal de Alzheimer era comum em idosos, pessoas que já haviam vivido muito. Ver a pequena tão jovem e cheia de vida perder tudo era doloroso demais.

A luz no fim do túnel estava começando a se apagar, até que Elijah apareceu na porta da casa da família com uma proposta milagrosa. Depois da revolução pouco se ouviu falar dele, as más línguas diziam que havia feito os androides para se tornarem divergentes desde o começo. A reclusão havia sido a melhor saída para o homem, além de permitir que criasse e aperfeiçoasse ainda mais outros projetos.

Ele não se recordava como a história da família Mitsashi chegara aos seus ouvidos, mas foi como uma benção enviada diretamente do céu. Deus dava asa às cobras, afinal.

Prometendo fazer download da memória da garota para transferir em um cérebro robótico, ele e sua equipe trabalharam por quase um ano no projeto, não poderiam haver falhas na fase inicial. Enquanto isso Tenten definhava cada vez mais, o tempo estava contra eles, precisavam agir rápido para conseguir salvar o que ainda era saudável da mente dela.

Foi difícil recuperar as memórias boas e não acabar esbarrando no eterno esquecimento, o cérebro já fraco e esburacado. O Alzheimer era como um vírus de computador e eles não podiam deixar que o novo sistema fosse corroído por ele também.

Eles queriam que ela fosse o mais normal possível. As memórias e os sentimentos eram de sua vida humana, porém o corpo e todo o seu sistema interno eram de uma nova androide. A CyberLife ainda não poderia saber que Tenten existia e que se camuflava na multidão sem precisar se esforçar, com funções humanas perfeitas; a naturalidade e espontaneidade intrínsecos em suas configurações.

Ela era perigosa se utilizada para o mal, precisava ser descoberta no momento certo.

A junção da ciência e da tecnologia; um experimento proibido e pecaminoso, que apenas pais desesperados poderiam ter aceitado realizar. Um segredo que não pretendiam revelar a ninguém, mascarando o sumiço da menina por um grande tempo quando ainda tinha 16. Eles tinham o apoio certo para que tudo fosse bem acobertado, estavam seguros e queriam a sua filha única o mais segura possível também. Ela não fazia ideia do que era, a sua vida havia continuado com tranquilidade depois da “doença misteriosa”.

Quanto menos soubesse sobre a sua condição, maior a eficácia do seu funcionamento.

— Até o momento podemos afirmar que o experimento é um sucesso. O que acham de TM1010 para o nome do modelo dela? — o sorriso soberbo no canto dos lábios de Elijah e a pergunta irônica fizeram com que os dois mais velhos saíssem do transe em que estavam.

— Ela sempre será Tenten Mitsashi. — retrucou o pai sem tirar os olhos do corpo sintético e sem cor em cima da maca. Ainda era a sua amada filha.

— Obviamente. — o maldito sorriso nos lábios estava presente mas uma vez. Ele gostava de ver o caos e a confusão nas pessoas, queria ver o limite delas frente à dilemas diversos. TM1010 lhe parecia um nome adequado para a mulher-robô.

— Vocês sabem quem é Neji Hyuuga? — antes que outra provocação pudesse ser feita, uma senhora presente na sala junto com eles perguntou enquanto olhava uma tela de computador gigante contendo algumas memórias de Tenten.

— É um androide com quem ela anda saindo. Não pude conversar muito com ele, mas me parece alguém bom. Eles estão bem próximos, ela me disse estar... Apaixonada. — respondeu a mãe, de repente se sentindo aflita. — Vocês acham que haverá algum problema nessa relação?

— Oh, quem poderia imaginar tal encontro esplêndido? Dois seres vivos e ao mesmo tempo não vivos apaixonados um pelo outro. — Kamski foi ligeiro na observação, afastando-se dos dois e indo até o computador, onde uma foto com informações variadas sobre o androide apareciam. Uma em especial o fez ficar um tanto mais sério. — Nós precisamos conversar com Neji o quanto antes. Ele é um dos pouquíssimos androides que ainda tem scanner instalado e trabalha na polícia, se resolver utilizar nela verá a estrutura robótica. É melhor que saiba quem é Tenten agora e mantenha este segredo em segurança conosco.

— Eu nunca imaginaria isso! E se eles acabarem terminando? Não é perigoso? Nunca contamos para os outros namorados dela, isso me parece precipitado. — a cada segundo a mãe ficava mais nervosa, imaginando infinitas possibilidades onde tirariam a filha de si para fazer atrocidades ou a desligariam.

— Os outros não eram androides. Eu confio nas minhas criações e Neji Hyuuga parece uma peça rara, é melhor o terem por perto. Apenas expliquem a situação e o tragam aqui na próxima visita.

Uma batidinha no vidro fez com que a conversa chegasse ao seu fim. Todos sabiam o que aquilo significava.

— Senhor Kamski, estamos prontos.

Elijah acenou positivamente e a senhora sentada ao computador digitou com rapidez em seu teclado.

O corpo inerte começou a se transformar na frente dos olhos de seus telespectadores. A textura branca e sintética foi dando lugar a um tom de pele claro, com pequenos pelos e marquinhas. Os cabelos escuros reapareceram na cabeça, caindo como longas cascatas em volta de toda a maca. O peito se fechou sozinho, começando uma respiração lenta e tranquila.

Tenten Mitsashi estava ativa de novo.

A morena abriu os olhos e encarou o teto metálico e bem conhecido da máquina em que estava deitada. Sentia-se um pouco confusa, como sempre ficava depois da ressonância magnética. A sua consciência voltava aos poucos, era sempre muito nublado e esquisito.

Ela logo foi ajudada a sair do equipamento e levada até a outra sala, onde o médico conversava animado com os seus pais. O homem de cabelos já brancos tinha um grande sorriso no rosto e gesticulava abertamente. Sentou-se na poltrona vazia, analisando com leve confusão a roupa que usava. Não lembrava de ter vestido aquela blusa listrada, mas também não se lembrava do que havia comido no café da manhã. Só lembrava de ter chegado em casa depois de ser pedida em namoro por Neji no dia anterior, da sua mãe brigando por ter tomado os seus remédios mais tarde e... O que mais? Havia dormido muito, isso com certeza.

As últimas horas eram como um borrão estranho, a sua cabeça estava demais na lua, precisava descer o quanto antes. E com certeza havia se desligado daquela consulta por estar cansada da viagem, os seus 27 anos começavam a cobrar, então.

A sua mãe, como se percebesse o seu embaraçado, segurou uma de suas mãos com força. Os olhos escuros e sempre tão acolhedores lhe fitavam com carinho.

— Está tudo bem? — cochichou discreta para a filha enquanto o marido e o médico conversavam.

— Estou cansada.

— Nós já vamos embora. Você dormiu praticamente o caminho todo.

— Senhorita Mitsashi... — o velho doutor a chamou com afeição na voz, organizando algumas imagens e exames em cima da mesa. Ele era formado em medicina de verdade, contudo não exercia a função há anos. Era um contratado de Elijah que era chamado para fingir as consultas quando necessários, como se fosse o médico pessoal da família para o acompanhamento da “doença misteriosa”. Tenten o fascinava de maneiras inexplicáveis, era uma revolução para a ciência. — Tenho boas notícias: você está ótima.

— O senhor sempre fala isso. — riu sem graça. — Mas “estar ótima” não significa que preciso parar de vir aqui quase todo mês, né?

O velho acenou negativamente com a cabeça e abriu uma das gavetas, pegando vários frascos coloridos. Tenten suspirou fundo assim que todos foram empurrados na sua frente e um papel listando todas as alterações dos remédios foi entregue para ela.

Em cada cápsula havia uma dose de thirium e apenas isso. Era o que a mantinha funcionando no dia a dia, disfarçado em comprimidos médios e insossos.

Ela não sabia disso, claro.

— Todo cuidado é pouco, precisamos que a sua saúde permaneça estável. Adicionei mais algumas vitaminas e aumentei a dose de dois remédios. Siga à risca!

— Estaremos de olho nela. — o pai olhou-a com severidade e a mulher sentiu-se como uma criança de novo.

— Então não me estenderei mais no assunto. Nos vemos daqui dois meses.

O carro estava silencioso e Tenten observava as ruas pouco movimentadas com interesse. Toronto era realmente linda, ela torcia para que um dia fosse conhecer a cidade como turista e não como paciente.

O celular tocou dentro da bolsa e ela segurou um sorriso ao ver quem era. Haviam algumas chamadas perdidas do dia anterior e mais outras do presente dia. Um par de mensagens de texto também. Todas de Neji.

Não percebera que havia sumido tanto daquela forma. Realmente estava muito desligada, que péssima namorada estava sendo.

Será que havia avisado na clínica que faltaria? Precisava conferir depois.

— Kikyou, está tudo bem?

— Oi! Eu estou bem e você?

— É um grande alívio ouvir a sua voz. Agora estou bem melhor. Recebi uma ligação da sua mãe explicando que você precisou ir para o médico de repente.

A morena arqueou as sobrancelhas, tentando compreender aquela frase. Parando para pensar, não se recordava de ter uma consulta marcada naquele dia, com certeza estava mais distraída do que o normal. Ia cutucar a mãe, porém o homem continuou a falar:

— Ele reajustou a agenda, não é? Achei que tinha acontecido algo, mas a sua mãe foi bem agradável ao explicar a situação. Espero que eu não esteja soando como um louco desesperado, só fiquei preocupado. — Neji completou após o silêncio dela, incentivando-a a conversar com ele. Estava anestesiado de preocupação, precisava ouvir a voz dela o máximo que pudesse. Era também o seu primeiro dia de volta na polícia, o dia estava sendo agitado por si só. — Ela também me perguntou se eu sabia o motivo pelo qual você atrasou os seus remédios ontem.

— Espera... Por que ela te disse tudo isso? E como ela tem o seu número?

— Ele parecia tão preocupado, filha. — explicou a mulher no banco da frente, sorrindo divertida ao olhar para trás. — Você falou tanto dele nessas últimas semanas que não resisti em atender a ligação dele no seu celular.

A morena revirou os olhos, rindo. Agora que estava namorando não via mal algum na interação entre sua família e ele. Aliás, não via a hora de poder apresentá-lo corretamente aos pais.

— Eu não quero mais ser o motivo dos seus atrasos. Nada do que você fale vai me convencer do contrário, a sua mãe foi bem eloquente ao dizer que eu devo ficar de olho em você. 

— Oh não, mais uma babá não! — reclamou, tentando esconder um sorriso. Às vezes era um tormento ter tanta gente em cima de si, porém sentia-se amada e protegida também. Ela escutou barulhos altos ao fundo da ligação e imaginava que o departamento devia estar lotado; esperava poder encontrar o namorado mais tarde para saber nos mínimos detalhes como havia sido a sua volta. — Você está se sentindo bem?

— Sim, melhor do que achei que me sentiria. Posso passar mais tarde na sua casa?

— Você sabe que sim! Não quero te atrapalhar muito, então nos vemos mais tarde. Se cuida.

O moreno sentia que sorria como um bobo, mas não se importava.

— Até, kikyou.

“Eu te amo”. Neji pensou naquelas palavras, entretanto não as disse. Não queria soar muito piegas. Estava contente com as coisas como elas estavam no momento, sem pressa e sem ansiedade. Sentia uma brasa no peito que o aquecia por inteiro, por um momento o distraindo do caso longo de investigação que teria pela frente.

A porta fez um barulho estranho e a figura esguia de Neji entrou em seu campo de visão vestindo um casaco preto e com metade do cabelo preso. O cheiro cítrico perfumou todo o ambiente e Tenten sentiu o coração acelerar. Ele sorriu com carinho para ela, que terminava de arrumar o balcão em seu final de expediente.

— Vamos?

Ela retribuiu o sorriso e puxou com rapidez a blusa apoiada atrás da cadeira, andando até o namorado. Neji estendeu a mão direita e a morena não demorou para entrelaçar os seus dedos nos dele, saindo para a rua e deixando a clínica para trás. Antes que pudessem caminhar até o carro estacionado, o moreno abaixou-se até estar na altura do rosto dela e trocaram um beijo doce, sem pressa. Matando a saudade daquele dia longe e liberando todo o estresse do trabalho. Apenas um beijo e todas as energias estavam restauradas.

Estavam juntos há dois meses e finalmente poderia conhecer a família dela. Logo que voltou à delegacia os seus dias foram tomados por casos e mais casos infinitos de busca, pesquisa e apreensão. Parecia que aquele jantar com os Mitsashi nunca daria certo, mas mesmo assim todos os dias ele dava um jeito de encontrar a namorada, nem que fosse por breves minutinhos ou para dormir ao lado dela.

— Os meus pais estão ansiosos para te conhecer. A minha mãe vai te encher de perguntas.

— E eu responderei a todas com prazer.

— A noite vai ser bem longa. — Tenten disse divertida, apoiando a cabeça no braço dele.


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