Curto-Circuito escrita por Biazitha


Capítulo 3
Explosão




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Os minutos pareciam passar com uma lentidão torturante, se arrastando cada vez mais, como se zombassem da ansiedade da mulher e tivessem combinado de demorar o triplo. Mesmo assim ela se mantinha sorrindo e falante com todos os pacientes que aguardavam na recepção.

Era o vigésimo, talvez vigésimo primeiro, encontro que teria com Neji. Depois daquele primeiro encontro com um final fracassado começaram a passar mais tempo juntos com um clima mais leve. Tenten pedia desculpa sempre que se lembrava daquele dia, e ele ria tentando fazer com que ela parasse de se sentir tão culpada. Já era passado e os dois estavam em outro estágio do relacionamento, mais íntimos um do outro.

O Hyuuga se esforçava para deixar os medos e as inseguranças de lado quando estavam juntos. A Mitsashi se empenhava para entender as próprias limitações e parar com todos os prejulgamentos que fazia sobre ele. O sentimento não havia mudado para nenhum dos dois, sentiam-se cada vez mais bobos e... Apaixonados.

A morena suspirou quando tornou a ficar sozinha no ambiente. Passou os dedos sobre os lábios sem batom e lembrou do beijo que trocaram no quinto encontro. Estavam assistindo a um filme chatinho de super heróis que havia acabado de lançar, e aconteceu. Foi desajeitado e as bocas até doeram de tanta força que aplicaram, desesperados por um contato. Depois pegaram o jeito um do outro e os beijos foram ficando cada vez melhores, aqueles que deixam sem fôlego e com as pernas bambas. As mãos exploravam o corpo alheio, apertando e massageando onde podiam, aproveitando cada centímetro pelo contato.

Sentia saudade dele, por mais que tivessem se visto há dois dias. Estava preocupada também; Neji não parecia muito bem quando a convidou para irem a uma cafeteria naquela tarde. A voz estava mais agitada do que o normal, no entanto em certos momentos parecia até perdido em outro mundo. Ela sabia que o período de licença estava acabando e logo ele voltaria à delegacia. Será que aquilo o estava fazendo mal? Não haviam comentado muito sobre o assunto, ela não queria o forçar a ter lembranças desagradáveis; Tenten torcia para que ao menos para o doutor Collins ele se abrisse.

Neji realmente estava estranho, mesmo depois da sessão de terapia daquela tarde. Durante todo o caminho até o destino deles foi com a música ligada e conversava com cuidado, parecia ter medo de falar de alguma coisa errada. Segurava entre os dedos livres a mão da morena, massageando e fazendo carinho a todo instante. Tenten inventava mil assuntos para tentar distraí-lo, cada vez mais angustiada com a situação. Ele sentia-se agradecido pelo cuidado dela e ao mesmo tempo incomodado por não ser capaz de disfarçar. Queria poder silenciar os seus pensamentos impulsivos e negativos. Estava deixando o seu temor falar mais alto, enchendo-se de limitações acreditando que ela e ele não dariam certo.

E por que não dariam? Já não estavam dando?

Quanto mais se perguntava isso mais pesada a sua consciência ficava. Não devia nem pensar naquela possibilidade. Hinata havia gritado ao telefone pedindo para que ele parasse de ser besta e agisse com o “coração”. Como se fosse fácil assim!

Os outros relacionamentos não haviam sido tão intensos, ele nunca havia sentido tamanha vontade de proteger, cuidar e mimar outro ser vivente quanto sentia com a morena. Trocavam mensagens o dia todo, mesmo se há poucas horas houvessem se encontrado. Davam presentes um para o outro sem razões especiais, apenas porque queriam ver o sorriso no rosto alheio. Dormiram abraçados uma única vez, em um piquenique no parque, mas Neji queria que aquilo se repetisse até o fim dos seus dias. Sentir o calor humano, a respiração calma e os batimentos cardíacos dela tão próximos de si.

Estava tão nervoso naquele dia porque queria dar um grande passo na relação e não sabia como ela reagiria. Seria muito cedo para pedi-la em namoro? Hinata achava que não e ainda ameaçou que se o moreno não pedisse, ela mesmo voltaria para Detroit e pediria por ele. A literatura dizia que o momento precisava ser oportuno e as intenções entre o casal precisavam ser claras. Será que ele havia demonstrado o suficiente? Não seria uma surpresa desagradável para a Mitsashi?

Ele não tinha muita experiência, ultimamente estava assistindo muitos filmes de romance e lendo muitos livros também. Querendo ou não, humanos e androides eram diferentes. Estavam se igualando aos poucos, mas ainda eram diferentes. Tinha receio de ser uma relação tão intensa que o deixaria em pedaços, mas... Sentia-se tão bem ao lado dela que era capaz de se reconstruir com todo o carinho que ela o dava. Isso bastava, não?

A cafeteria estava movimentada, em seu horário de pico, no entanto era como se os dois estivessem sozinhos em uma bolha própria.

Em seus mundinhos particulares apenas o outro tinha espaço suficiente para ficar.

— Você envelhece? — Tenten jogava as perguntas como se fosse uma máquina preparada para tal. Não tinha filtro nenhum, o que surgia ela perguntava. O Hyuuga respondia todas com prontidão, algumas vezes se enrolando um pouco com as palavras tamanho o seu nervosismo em tentar parecer normal.

— Mais ou menos. Eu fico ultrapassado, mas tenho alguns códigos que me permitem ter a aparência modificada ao longo dos anos como se envelhecesse.

— Isso parece interessante. Até os seus cabelos ficam brancos?

— Acho que sim. Provavelmente a CyberLife vai lançar alguma atualização do tipo em breve.

— Será que lançarão algo para que você possa ter filhos também? — era uma curiosidade genuína. A Mitsashi sabia que ele tinha uma estrutura anatômica igual a um humano, ou seja, tinha um pênis.

E mesmo que ainda não houvessem tido relações sexuais, tinham essa liberdade para fazer as perguntas sem causar constrangimento.

O sexo não era uma prioridade na sua vida. Por mais que tivesse 27 anos e alguns poucos namorados na conta, não conseguia se entregar para alguém sem o conhecer de verdade. Devia ter feito sexo umas sete ou oito vezes durante toda a vida, pelo que se lembrava.

Não havia tido a oportunidade de fazer algo com o Hyuuga, mas sentia muita vontade e muita segurança de se entregar para ele.

— Essa eu não sei. Creio que seja inviável e até impossível para androides terem filhos.

— Nada é inviável ou impossível para a tecnologia. — retrucou certeira, enlaçando o braço em volta do dele. Estavam sentados lado a lado e ela não tardou em encostar a cabeça no ombro do homem. — Fico imaginando como seriam os bebês iguais a você. Teriam cabelos maravilhosos..

— Se tiverem o seu rosto serão bebês perfeitos.

A mulher sorriu, concordando convencida. Neji emanava um calor agradável que a deixava bem, o que fez com que a frase seguinte escapasse dos seus lábios como um segredo:

— Às vezes eu penso em como é estranho eu ter me apaixonado por um androide. Estranho, mas bom.

O Hyuuga arregalou os olhos, sentindo cada parte do seu sistema pifar por alguns segundos. Levou uma mecha do cabelo para trás da orelha, sem saber como agir. Havia passado o dia todo nervoso, pensando na relação dos dois, mas com poucas palavras a Mitsashi havia conseguido acalmar qualquer bobagem que estava pensando. A brecha havia chegado. 

— Sobre isso... Nós estamos mesmo apaixonados, certo?

— Pensei que isso... Isso estivesse claro.

Perdiam-se nas frases como duas crianças incapazes de falar com coerência, o que lhes causava um tanto de ódio pela reação boba que tinham. Eram adultos bem resolvidos ou não?

Neji respirou fundo e a afastou com delicadeza. Virou o corpo para que estivessem de frente e segurou as mãos dela entre as suas, frias e inquietas. Se fosse capaz de suar com certeza estaria encharcado da cabeça aos pés.

— Não leve como uma ofensa, por favor. Eu não duvidei dos seus sentimentos em momento algum, só não sei como começar o assunto. — explicou-se agitado, se martirizando pela escolha errada de palavras. — Desculpe por estar tão distante hoje, mas estive preocupado com a nossa relação. Achei que seria impossível algo entre nós, por mais que sejamos tão compatíveis, e vejo que fui bobo por ter pensado nessa possibilidade. Eu tenho certeza do que quero e precisamos conversar sobre isso: você aceita tentar algo mais sério comigo?

Tenten juntou as sobrancelhas pensando no sentido da frase. Naquele momento resolveu deixar para trás toda a bobagem de vida adulta e caiu de braços abertos no conto de fadas que começava a se construir na sua frente. De novo.

— Você quer dizer namorar?

— Sim, eu quis dizer isso. Mas podemos ir com calma nessa parte. — o moreno respondeu sem jeito, desviando os olhos dela por alguns segundos, tentando se acalmar. Havia pensado tanto naquele momento que esquecia as palavras e definições mais simples.

— É claro que eu aceito!

A mulher jogou-se no androide capturando os seus lábios. Pouco importava se alguém os olhava, o momento merecia um beijo de verdade. Era tão novo e tão gratificante para os dois como as coisas estavam acontecendo. Descobriam-se e redescobriam-se juntos, aprendiam muito sobre infinitas coisas e os sentimentos que carregavam quase não cabiam no peito. Era nítido o quanto se gostavam e faziam bem um para o outro, se completavam.

Um androide e uma humana.

Neji sentia-se um verdadeiro besta por ter pensado que não dariam certo, por ter deixado a sua insegurança falar mais alto. Estava tentando mudar e sabia que conseguiria. Enquanto a tinha em seus braços, com a boca doce e macia grudada na sua, sentia-se completo e capaz de fazer qualquer coisa.

Agora que eram namorados queria dedicar os seus pensamentos e lembranças somente a ela, nada mais o impediria de ser feliz. 

O celular da Mitsashi tremeu em cima da mesa, descontrolado. Um alarme constante soava oscilante, ora baixinho ora estourando. Ela se afastou do moreno com pesar, torcendo os lábios ao olhar para o aparelho barulhento. Precisou de alguns minutos persistindo até que todo o escândalo cessasse, porém não demorou muito para que tudo se iniciasse novamente.

— Não é melhor irmos embora?

— É só o alarme de sempre, não é nada urgente.

— É urgente sim, só vai desligar quando o sensor no seu corpo se normalizar e identificar os remédios que você precisa tomar. — ele argumentava com clara preocupação. Não sabia muito sobre a doença, no entanto não arriscaria nem por um segundo o bem estar dela. — Vamos!

— Não, é bobagem. Alguns minutos não vão me matar, ele só é muito escandaloso mesmo.

— Kikyou, eu te levo, não se arrisque dessa forma. — fez menção de levantar da mesa, contudo ela o segurou com delicadeza, o fazendo voltar a cadeira. Pela primeira vez em muito tempo se sentia livre e dona da própria vida, queria aproveitar aquilo ao máximo. A sua felicidade tinha nome e sobrenome – e estava sentado ao seu lado –, ela não deixaria que escapasse naquele momento.

— Por favor... Não vai acontecer nada, Neji. Eu prefiro ficar aqui com você mais um pouquinho.

— Eu te avisei! Você pensa demais quando não precisa. — dizia Hinata ao telefone. Assim que avisou que havia voltado para o apartamento ela logo o ligou e insistiu que ele contasse tudo nos mínimos detalhes.

— Não é como se eu tivesse um botão na cabeça que desligasse os pensamentos. 

— Daqui para frente é só alegria, meu bem. Trate de expulsar essa insegurança e focar na sua bela namorada.

E o moreno não conteve o sorriso. Estava namorando Mitsashi Tenten, a mulher mais linda, doce e esforçada que já havia conhecido. Logo voltaria ao trabalho na polícia também e as coisas se encaixavam com tamanha naturalidade que ele nem percebia. Sentia-se vivo, muito vivo, mais vivo do que já se sentira antes.

Queria tentar tudo o que não havia tido coragem de tentar antes, pois sabia que teria alguém o apoiando e o ajudando a todo instante, o incentivando na caminhada de ser mais humano.

O alarme em seu celular apitava como se estivesse à beira de um colapso; no meio de uma explosão e berrasse por ajuda. Havia atrasado em uma hora e meia os seus remédios e suas vitaminas, não era como se fosse grande coisa. Ficaria bem, por mais que uma dorzinha de cabeça irritante estivesse surgindo.

Revirou os olhos quando o alarme foi substituído pelo toque comum de uma ligação. Já sabia quem era e sentia-se como uma criança quando era tão vigiada daquela forma.

Os seus pais não gostavam de comentar sobre a sua doença, ela pouco sabia sobre o que havia acontecido. Sabia que havia ficado de cama por um bom tempo e que alucinara sem parar durante semanas, contudo era como se uma grande nuvem cobrisse essa parte da sua vida. A única coisa que tinha certeza era que os dois a protegiam como se fosse feita de cristal.

— Mitsashi Tenten! Por que não tomou os seus remédios ainda? E por que não me atendeu quando te liguei das outras vezes? — esbravejou a sua mãe assim que aceitou a chamada. O celular da mais velha apitava no mesmo tanto que o da filha, acusando com desespero a falha da mulher.

— Eu já estou indo. Tive um compromisso e durou mais do que imaginei.

— Você sabe que precisa seguir à risca. Vou ficar esperando você tomar, depois desligo. Anda logo, minha filha!

A morena parou em frente ao seu balcão e ficou observando os frascos gigantes no cantinho dele. Todos os dias, de manhã e à noite, precisava tomar tudo certinho. Não tinham gosto de nada, porém eram como mágica, sentia-se outra pessoa logo que os tomava.

Esticou a mão livre para pegar o de vidro verde escuro, mas parou o trajeto no meio do caminho.

— Mãe, eu... Qual é o remédio mesmo?

— O quê? Leia o papel, está do lado.

E estava mesmo, porém as letras se embaralhavam. Era como se não entendesse aquela língua ou não soubesse mais ler. Franziu o cenho e tentou focar a visão.

Azul, verde e amarelo. Olhou de novo para os remédios e não sabia qual cor eram. O que era azul? O que fazia ali? Onde os seus pais estavam? Por que estava sozinha? Que casa era aquela?

Os seus lábios tremerem e um som desconexo saiu da sua boca, quase como um choramingo.

— Filha? Fala com a mamãe, por favor. O que está acontecendo?

— Eu... Ir... Casa... Embora! — a voz estava trêmula e gaguejante, as palavras jogadas tentando formar uma frase. A morena se esforçava, contudo era como se não soubesse mais falar. Nem ler. Nem andar. Nem compreender.

Ela começou a esquecer de tudo e lembrar de tudo. A mente subia e descia como um elevador descontrolado. A cabeça estava embaralhando, pesada e ao mesmo tempo leve. Como se estivesse presa em um sonho, a visão ficou embaçada.

Uma pontada na cabeça a fez soltar um grito alto, puxou o cabelo com a mão livre e uma série de frases pulou na sua frente, como se estivessem sendo escritas em uma tela de computador.

“Alzheimer”

“Ela é muito nova”

“Tem que ter uma saída”

“Vocês aceitam mudar o rumo da ciência e da tecnologia?”

Alguns pontinhos vermelhos e pretos subiam e desciam, pareciam números e letras, ela não tinha certeza.

Estava com frio. Estava com medo.

Viu uma luz azul brilhar na frente dos seus olhos, turvando a visão de vez. Antes de derrubar o celular, a voz da sua mãe soava desesperada e longe. O corpo foi caindo aos poucos; primeiro de joelhos e depois de bruços, a dor aguda se espalhando por tudo.

Foi a última coisa que sentiu antes de desligar-se do mundo.


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