O Garoto Da Minha Turma escrita por LittleR


Capítulo 4
Segundo ano part. 3


Notas iniciais do capítulo

Notas sobre um garoto quebrado



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Tinha pedaços de um garoto na minha turma do segundo ano. Fragmentos brilhando pelo chão da sala, mas ninguém podia ver. Só eu. E nas tardes onde todos saíam, eu punha-me a catá-los como se fossem tesouros, mas nós sabíamos: eram pedaços irreparáveis. Sem concerto e sem devolução. Já não pertenciam ao seu dono original. Não pertenciam a mais ninguém.

Coloquei a música em repetição pela décima vez. É uma terça-feira. Não que isso importe. Nenhum dia da semana parece importar mais. Coloco a música em repetição pela décima primeira vez e me pergunto quantos segredos ainda cabem em minha cota.

Ao meu lado, Castiel solta uma baforada densa de fumaça e chuta a parede já duramente castigada. Não conversamos. Não trocamos palavras desnecessárias. Ele desconta sua fúria e eu repito a música pela décima segunda vez, fingindo-me alheia ao fato de que estou prestes a beijá-lo.

Meus instintos eram fáceis de controlar antes, mas agora ele não tem mais namorada e estamos numa terça. Eu suspiro e tiro um dos fones de ouvido. A música ainda está tocando. Perdi a conta de quantas vezes. O cheiro de cigarro está começando a me irritar. Considerando que o porão não tem janelas, eu vou acabar com um câncer de pulmão quando sair daqui. Suspiro mais uma vez e me levanto do chão frio. Pego minhas coisas e caminho despreocupadamente na direção das escadas.

Antes que eu ali chegue, porém, uma mão forte se agarra ao meu pulso e eu paro. Preparo meus reles 1,60m para encarar os 1,80m que me refrearam, mas ainda não me viro.

— Aonde está indo? — ele pergunta. Sua voz está mais rouca que o normal, deve ser culpa da fumaça. Eu eu inalo seu timbre para dentro de mim.

Viro-me e o encaro. Castiel parece exausto. Seus olhos são ácidos e queimam sobre os meus, como nunca antes e os cabelos escuros parecem bagunçados, como se ele não se importasse em penteá-los.

— Está tarde — eu atalho, serenamente. — Já nem deve ter mais ninguém na escola.

— E? — Ele ergue uma sobrancelha, nada convencido.

Castiel está distante. Seu jeito de agir é tão... ruim... pra mim.

— Você devia ir pra casa também, Cass. Eu olho pra você e parece que você não dorme há três dias.

— Quem você é agora? Minha mãe? — Ele me solta e dá alguns passos para trás, alcançando sua mochila jogada sobre o sofá. — Eu não vou pra casa, não tem nada lá.

Eu jogo minha mochila de volta no chão, desistindo, pelo menos momentaneamente, de ir embora. Eu não quero ir embora realmente. Não é como se tivesse alguma coisa pra fazer em casa também.

— Então talvez você devesse arranjar um Dragão — suspiro ao dar alguns passos adiante.

Castiel me olha com um rosto franzido por sobre seu ombro.

— O quê?

— Desculpe. Eu quis dizer cachorro. — Embolo-me nas palavras, sentindo minhas bochechas esquentarem. Desde quando eu sou tão patética? Deve ser culpa da fumaça.

Castiel solta uma risada, mas sei que ele não está contente. Não vejo sentimentos em nada que ele faz. Já não há mais a espontaneidade da qual ele era composto e isso me deixa triste.

— Você é doida.

Não. Eu não sou. Mas isso é segredo.

Observo enquanto ele ainda vasculha a bolsa. De lá, ele tira uma garrafa muito bonita de whisky. Eu ergo uma sobrancelha.

— Onde conseguiu isso? — pergunto, meio que involuntariamente. As palavras estão apenas deixando minha boca antes que eu me dê conta, como tem acontecido muito recentemente.

Cass revira os olhos ao responder, forçando seus dedos ao redor da tampa.

— Existe uma coisa chamada bar. É onde você compra bebidas alcoólicas.

Eu suspiro, afetada. É, foi uma pergunta idiota. A pergunta que eu deveria ter feito era: como foi que Castiel foi acabar assim? Não, essa pergunta é idiota também. Todos sabemos, ele amou demais e isso o destruiu.

— Não devia ir tão rápido — eu murmuro ao vê-lo virar a garrafa sobre a boca e despejar álcool dentro da própria garganta. Castiel faz uma careta ao engolir.

— Bancando minha mãe de novo. Quer que eu mostre meu certificado de emancipação pra você? — resmunga, irritado como sempre. Pelo menos, como sempre desde recentemente. Então estende a garrafa para mim. — Tome e pare de ser chata.

Eu encaro feio a garrafa antes de pegá-la. Meu estômago se embrulha. Não porque é uma bebida alcoólica, não tenho nada contra bebidas alcoólicas. E não tenho nada contra ficar bêbada em um ambiente fechado e escuro na companhia do garoto que eu gosto, mas... eu não gosto da situação. Eu não gosto da bebida. Eu não gosto da forma como Castiel se irrita até com o vento, incapaz de aceitar que a vadia da namorada dele lhe deu a porra de um pé na bunda porque não queria ficar amarrada à merda um namorico adolescente sem futuro. Sinto-me mais acelerada e eu não gosto disso.

E ele não quer se dar conta de que tem pessoas com doenças arteriais lá fora, que tem pessoas que sofrem agressões de seus pais, pessoas que foram atropeladas e outras que estão sendo ameaçadas por um maníaco com fotos íntimas, mas Castiel está bebendo porque a namorada o deixou. Eu penso nisso e, quanto mais penso, mais chego à conclusão que beber o whisky não era realmente má ideia. Então, eu o meto em minha boca. O álcool rasga minha garganta, mas não faço careta. E o bebo novamente. Antes de dar-me conta, metade da substância acobreada que enchia a garrafa jaz em meu estômago, ácida e voraz. Volto a me sentir lenta como sempre e isso me agrada.

— O que está ouvindo? — Castiel se aproxima e pega um de meus fones, inclinando-se na minha direção para colocá-lo em seu ouvido. – Ah, essa música é boa.

A proximidade de seus 1,80m faz meu rosto esquentar. Deve ser culpa da... fumaça. Consigo sentir o cheiro de álcool, menta e cigarro de seu hálito enquanto ele murmura a música. Eu ainda tentava me recuperar da súbita onda de tontura que me adveio quando sinto os braços de Castiel deslizarem por minha cintura. Eles me aconchegam forte contra seu peito.

— Vamos dançar — ele ronrona, preguiçoso, apoiando a testa sobre meu ombro. — Vamos dançar como se fosse a última vez.

Resvalo meus braços finos, mas ainda gentis, ao redor dos ombros de Castiel. Encosto meu rosto, letárgica e vagarosamente, contra sua cabeça. Fecho os olhos com deleite, um suspiro tênue preso em algum lugar entre meu diafragma e pulmões, e acompanho Castiel nos passos que ele dá. Ele já não pisa mais em meus pés, pois nossa sincronia é perfeita. Por um instante, sinto falta dos desastres que nos guiaram a esta amizade, mas, então, lembro-me de seus cabelos negros e macios afagando-me a bochecha enquanto dançamos.

Pela primeira vez em todos os meus longos 16 anos de vida, eu não me sinto lenta ou rápida demais. Estou no ritmo certo.

— Por que última vez? — As palavras saltam por minha boca, arrastadas e preguiçosas. — Algum de nós vai morrer, por acaso?

Castiel solta uma risada abafada e aconchega seu rosto em meu pescoço. Nossos cabelos se misturam um ao outro, de forma que nem sei mais quais são os meus e quais são os dele.

— Eu não — ele responde, depois de um segundo. — Você vai?

Eu suspiro. O álcool em meu organismo começa a fazer efeito. Tontura, tontura, dormência... uma risadinha. Mas eu estou lúcida. Tão lúcida como nunca antes.

— Eu vou — sorrio com divertimento. E uma risada. Breve. – Mas não vai ser agora, então não precisa se preocupar.

Castiel sorri novamente. Porque eu sabia exatamente como provocar isso nele. Um pouco de sarcasmo, alguma piada infame e o jovem guitarrista se esqueceria por um instante que seu coração estava em cacos pela escola.

— Você disse uma vez que vermelho combina comigo. Acho que vou tingir o cabelo. — ele diz. As palavras saem abafadas contra minha pele. Eu fecho os olhos e absorvo sua voz com meus poros. Ele se ergue e me olha. — Pode fazer isso pra mim?

Eu abro os olhos e sorrio com cumplicidade. Posso sentir o deleite e a satisfação estampados em meu rosto, jorrando como lágrimas em forma de sorriso em um tom patético de vermelho-constrangido. Deve ser culpa da... ah...

— Claro. Farei qualquer coisa que quiser — aceno como se aquilo não fosse nada demais. Não era nada demais.

Castiel, porém, continua olhando-me dentro dos olhos, como se desejasse saber quantos e quais segredos eu poderia manter. Ele não sabe que assim está expondo todos os seus próprios segredos à minha lentidão que tudo vê.

— Você sabia, não é? — pergunta-me. Sua expressão não parece com nada que ele já tenha feito antes. Não parece nada que eu já tenha visto antes. E, mesmo assim, seus pés se movem junto aos meus com uma sincronia incrível. — Sabia que ela ia embora. Você sempre sabe de tudo.

Eu desvio meu olhar enquanto ele fala. Olho para o lado, para baixo, para os cantos. Em minha mente levemente alterada, as palavras "eu sabia" ecoam. Desde o momento em que tropecei e Cass me amparou, eu sabia. Agora, eu sei também. Eu sempre sei. Mesmo quando não sei, eu sei. Você talvez não entenda o que quero dizer, mas eu sim, porque sei.

— Sim — aceno com ternura.

Castiel solta uma risada forçada que rasga sua garganta e perfura seu peito. Ele quebra nosso contato visual e encara alguma coisa atrás de mim. Ele parece tão frustrado.

— Eu não a culpo — diz. — Debrah. Eu não a culpo.

Não. Porque você está ocupado demais culpando a pessoa errada.

Foi nesse instante que a música acabou. Deslizo meus braços para fora dos ombros de Castiel e me preparo para desfazer nosso abraço, mas ele me aperta com ainda mais força contra seu peito. Sento seu rosto deitar-se novamente contra minha clavícula, enquanto seu corpo lentamente cede até estarmos sentados no chão.

Castiel não me largou. Envolveu-me com tanta força, como se eu pudesse pegar seus medos e lançá-los longe. Eu não podia. Mas queria muito. Com todo o prazer do mundo, eu mataria um milhão de pessoas se isso fizesse Castiel um pouco mais feliz. Eu pegaria Debrah pelos cabelos e a traria de volta numa quinta-feira, se isso fizesse Castiel mais feliz. Nada disso faria Castiel mais feliz. Castiel estava triste e ponto.

Afaguei seus cabelos com muita gentileza enquanto ele afogava suas mágoas contra minha pele. Afaguei não com o amor de uma adolescente encantada por um garoto rebelde. Com o amor que uma vela tem pela chama. Um amor que dá à ela um sentido para sua existência, mas que a consome lentamente enquanto queima. Afaguei com o amor que levaria comigo para o túmulo e até depois dele.

— Você vai encontrar um amor novamente — eu sussurro. — Um amor que não seja uma represa. Um amor onde caiba o mar que você é. E você vai cantar uma canção para ela. E quando fizerem amor, será como se estivessem entre as estrelas. Acredite em mim, eu sei dessas coisas.

Em meu fone, a música volta a tocar. Está em modo repetição. Castiel ergue-se e me olha, os olhos escuros semicerrados pela falta de sono. Não há vestígios de lágrimas, mas posso ver que o álcool já faz efeito nele. Tontura, tontura, decadência... insanidade.

Eu ofereço a ele meu mais sincero sorriso. Mas Castiel me beija.

Fecho os olhos quando ele envolve meus lábios com os seus. Primeiro, o de baixo e, depois, o de cima. Meu rosto se move e o beijo se afunda em mim, mais forte, mais rápido. Tento não pensar na mão que sobe por minha nuca, seu atrito suave e íntimo, e na que desce por minha cintura, de textura sexual e exploradora.

Eu digo a mim mesma que estamos bêbados. Digo a mim mesma que ele acabou de levar um fora da mulher que amava e digo a mim mesma "pare agora". Eu ignoro a mim mesma. Sempre soube que eu era uma criminosa. Castiel e eu somos parceiros de crime.

Mal me dou conta quando o celular escorrega de meu bolso. Ouço o baque do metal contra a madeira e o aparelho rola para longe de mim, apartado brutalmente do fone de ouvindo em minha roupa.

A música ecoa pelo porão, alta. Mas Castiel continua me beijando com vontade, respirando ferozmente através de minha boca, como se meus lábios fossem água para sua sede.

Meus cabelos se espalham pelo piso, como migalhas de pão pela trilha, quando sou deitada de costas no chão. Castiel se mantem sobre mim. Olha-me. Seus olhos numa penumbra peçonhenta e indubitável diziam que ele estava convicto. Eu, por minha vez, sorri amavelmente para o amigo que me amparou quando eu quase caí, um ano atrás. E ele volta a me beijar, nos lábios, no pescoço, nos ombros, clavícula, colo do seio... meu corpo era mais extenso do que eu havia previamente imaginado. Sua boca sedenta alimentando-se de meu corpo consumiu também minha lucidez. Que doce, doce pecado

A mão de toque íntimo e suave ergue minha coxa até seu quadril. Os ombros largos se aproximam e eu os envolvo com meus braços, finos e ainda gentis, explorando a extensão dos músculos retesados em suas costas já desnudas. O maravilhoso relevo do corpo de um homem à sensibilidade de meus dedos virgens.

Suas mãos fortes, que uma vez me salvaram, agora deslizavam por minha pele, tirando minhas roupas com toda a gentileza do mundo.

O corpo de homem me fez dele no chão mofado do porão. Em meio ao cheiro de fumaça e o gosto de álcool, afogamos aquilo de bom que ainda houvesse em nós. E as enfermeiras e os atendentes de bares nunca saberiam que aquilo estava ali.

Recebi o mar na represa que eu era. Por um pouco de tempo, ele caberia em mim. Até que transbordasse e eu já não fosse o suficiente. Até que encontrasse um amor apropriado.

Até que outra, mais doce que eu, remontasse os cacos do garoto da minha turma do segundo ano.


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Notas finais do capítulo

Até!