Nada em mim sou eu escrita por Unknown


Capítulo 3
Capítulo 3 - Alma animal




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A casa era velha. Não velha do tipo centenária, acabada, com o piso e o telhado degradantes. Era velha simplesmente porque sua alma era. Os móveis, apesar de bem cuidados, tinham jeito e cheiro de estarem na família havia anos. Os infinitos quadros na paredes eram do gosto de uma avó de 70 anos.

O espaço era tão entulhado e tão absorvido no meio de detalhezinhos que se torna impossível de descrever perfeitamente. Para onde quer que eu olhasse, onde quer que houvesse uma prateleira ou um  armário, havia coisas dispostas metodicamente por todo o espaço, coisas que se adquirem em lugares onde as pessoas passam suas vidas inteiras.

Sei disso porque não cresci num lugar desses.

São pequenos objetos que deixam esse ar de casa que abriga 150 anos de família. São as agulhas espalhadas em cima do criado-mudo, são os laços que enfeitam a madeira escura das intermináveis estantes, são as estatuetas de cerâmica postas em lugares de extremo mau gosto, são as senhoras sentadas na sala de estar, comentando sobre uma novela fútil qualquer.

 É no guarda-roupas abarrotado que vejo que eles nunca fizeram uma mudança sequer. É nos copos de vidro escuro, no cheiro forte de coisa guardada e nos eletrodomésticos quebrados e antigos em que construo a minha angústia.

Porque não suporto a ideia de ser condenada a viver num ciclo eterno. Para mim, é isso que esse tipo de vida representa. É uma pequena prisão de convívio familiar e excesso de bens dos quais não preciso. Porque são essas pessoas que entram num estado de conformismo repulsivo, e são elas as que mais me enojam.

Passando o mês contando os centavos para sustentar o nosso parasitário sistema capitalista, gastando os seus salários para manter vivos parentes centenários semimortos. Aplaudindo feriados e promoções, vivendo de emoções artificiais feitas por pílulas, apodrecendo em suas cadeiras acolchoadas de 1920.

Esse é o tipo de existência mais insuportável.

Esse é o meu completo oposto.

Pra quem cresceu numa casa de militar, a mudança é constante. Nunca permanecer numa cidade por mais de dois anos, nunca se apegar demais. Apenas sair por esse mundo, como uma criança com alma animal. Não pertenço a lugar nenhum. Não pertenço à essa vida.

Tampouco vou apodrecer junto dessas paredes e desses móveis. Sou maior que essa casa, maior que meus ossos. O mundo é o meu quintal e não há sistema ou dinheiro ou material que me prenda.

Quando eu morrer, não quero ficar presa nesse chão. Joguem minhas cinzas na terra e plantem em meu pó, para que quando as plantas floresçam, vocês me colham e me tirem desse chão de novo e de novo.

Pra mim, é isso que significa ser uma alma animal, e é isso que eu sou.


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