Assim que o sol se pôs, Ryu começou a montar acampamento. Ele decidiu que os dois não iriam pagar um lugar para dormir aquela noite, pois precisavam economizar mais o dinheiro.

Catherine juntou alguma lenha e depois se sentou encostada no tronco de uma árvore próxima dali, para ler uma revista que ela havia trazido de Otium. Naquela manhã, após passar alguns minutos em busca de novidades ela havia descoberto que naquela cidade não vendia esse tipo de produto. Essa informação foi suficiente para que Catherine concluísse que aquele era o lar de selvagens. Talvez esse fosse o motivo de ela nem sequer protestar sobre acampar na floresta. Pensar sobre essas coisas fez com que Ryu risse um pouco sozinho.

— O que foi? — Catherine estranhou a atitude do rapaz.

— Nada! — Ele desconversou.

Depois de terminar o que estava fazendo, o garoto parou por alguns segundos e comentou:

— Não pense que eu vou arrumar a sua barraca. Posso te ensinar como fazer isso, mas eu não sou seu empregado.

Com um pouco de desinteresse Catherine, apenas olhou para o garoto por cima da revista.

— Não esperava que você fizesse algo tão legal.

No decorrer da noite, Ryu preparou seu jantar na fogueira e Catherine comeu chocolates. Por um instante passou pela sua cabeça o que Ryu havia dito mais cedo, mas a lembrança fez com que ela ficasse irritada e talvez para contrariar o companheiro, ela comeu mais chocolates.

Depois do jantar, Ryu deitou em seu saco de dormir e esperou que o sono chegasse.

Catherine o observou por alguns segundos e em seguida caminhou até ele.

Um sorriso largo estampava o seu rosto e isso fez com que o Ryu se sentisse intimidado.

— Posso dormir com você? — Catherine perguntou com uma voz infantil.

— Não tem espaço… — Ryu estava tímido — Além do mais eu não acho isso muito apropriado.

Um flash de luz iluminou a floresta e em um instante Catherine assumiu a forma de um felino.

— Claro… — Ryu revirou os olhos — É tão difícil arrumar o próprio saco de dormir?

Em silêncio Catherine caminhou até Ryu e se deitou em seu peito.

— Parece muito que você está tentando se aproveitar de mim. — O garoto disse com um sorriso cínico no rosto.

No momento em que o gato ouviu aquelas palavras despencou no chão e assumiu a forma humana.

O rosto de Catherine estava vermelho como um tomate e seus olhos estavam arregalados.

— Co-como você pode dizer algo assim? — Catherine se afastava engatinhando para trás — Que grosseiro!

Ryu teve uma longa crise de risos que se estendeu até o fim daquela noite.

Catherine armou sua barraca e não saiu de lá até o momento em que ele pegou no sono.

Nem havia amanhecido o dia quando Ryu se levantou bruscamente de seu saco de dormir. Seu corpo estava coberto de suor e sua respiração ofegante. Após alguns segundos em crise, ele recuperou a razão e se deu conta de que havia tido um pesadelo. Apesar de ainda estar muito cedo, ele decidiu não dormir mais aquela noite. Caminhou um pouco pela floresta, cuidando para não se afastar muito de Catherine e refletiu um pouco sobre o sonho que havia tido. Era na verdade lembranças de acontecimentos passados que se repetiam em sua memória de forma tão realista que ele era capaz de sentir a mesma dor que sentiu no momento em que tudo aconteceu.

Aquele sonho foi o gatilho para uma espécie de retrospectiva de tudo o que ele havia vivido na sua infância. Desde a vida humilde na cidade de Griseo, até a sua chegada na fortaleza de Otium. O passado em Griseo, Ryu lutou para esquecer, mas a imagem de seu irmão sendo morto por uma bruxa era algo difícil para uma criança superar, mesmo depois de adulta.

Jimmy era o irmão mais velho de Ryu, ele foi congelado até a morte por uma bruxa que atacou a pacata cidade onde eles moravam.

“Vamos para Otium, lá a vida será melhor para nós.” Foi o que o seu pai disse depois da tragédia. Eles foram para uma das cidades com maior concentração de bruxas dos sete reinos, aquilo parecia uma ofensa para aquela criança traumatizada.

Ryu foi forçado a estudar na academia de guardiões pelo seu pai. Ele dizia que o garoto deveria estar agradecido com tamanha honra, que era raro que crianças pobres fossem alfabetizadas, muito mais raro ainda que isso acontecesse em uma academia tão renomada.

Morar na terra das bruxas e estudar em um local que se dedicava a protegê-las… proteger aquilo que havia matado Jimmy. Por muito tempo Ryu sentiu como se só ele tivesse perdido alguém, que o seus pais estavam completamente anestesiados. Mas esse sentimento só durou até o dia em que sua mãe saiu de casa no meio da noite e nunca mais voltou. Seu pai se tornou um alcoólatra violento e então aos 15 anos, Ryu se mudou definitivamente para a fortaleza e apenas decidiu deixar o velho se afundar sozinho.

O guardião respirou fundo e tentou deixar aquilo novamente oculto no seu coração, oculto até dele mesmo.

— A bruxa que está acompanhando, preciso levá-la comigo.

Um voz desconhecida fez com que Ryu se levantasse bruscamente com uma espada curta já em punho. Do meio de algumas árvores, surgiu a imagem de um homem alto, trajando roupas pesadas e em tons escuros. Ele usava um chapéu grande e um lenço negro cobria parte do seu rosto, possibilitando que apenas os seus olhos castanhos ficassem a mostra.

— Bom — Ryu o encarou — Infelizmente nossos desejos entram conflito e eu não costumo ser do tipo complacente.

— Se não recuar, você irá cair aqui mesmo. — O homem também retirou uma espada curta de sua bainha.

Ryu sentiu um frio na barriga, aquele homem parecia falar com a confiança de um guerreiro poderoso. Seria aquilo uma espécie de blefe de batalha? Ele se lembrou que nos treinamentos Kai fazia isso com muita frequência. Quanto mais em desvantagem o bruxo estivesse, mais confiante e desafiador ele se mostrava.

Sem hesitação, o homem avançou,  mas pouco antes de alcançar Ryu, tropeçou e caiu no chão.

Uma expressão de incredulidade misturada com decepção estava estampada no rosto do guardião. Ao olhar para atrás, pôde ver Catherine saindo de trás de uma árvore e caminhando até ele.

“Eu não sei para que eu treinei por tantos anos.” Ryu pensou.

Alguns minutos se passaram até que o estranho recuperasse a consciência e se visse amarrado ao tronco de uma árvore, sendo observado de muito perto pelos olhos curiosos de uma bruxa.

— AFASTE-SE DE MIM DEMÔNIO DA DESTRUIÇÃO! — O grito do homem fez com que Catherine saltasse para trás de susto.

— Que grosseiro! — A garota se recompôs.

Ao perceber que o prisioneiro estava acordado, Ryu se aproximou:

— Você tem bastante material de caçador com você.

— Vocês mexeram nas minhas coisas? — O estranho estava visivelmente irritado.

— Você tem raízes de laranjeira com você, muitas! — Ryu o ignorou e voltou a especular — As suas roupas são velhas e até o seu sapato tem buracos. Esse tipo de raiz é cara, mas você não parece poder pagar por tanto.

Um olhar de descontentamento surgiu no rosto do homem e ele resmungou:

— Você não deveria julgar os outros pela aparência… — Ele deu uma boa olhada em si mesmo e suspirou — Não estão tão velhas assim.

— Você parece um mendigo! — Catherine completou.

Ao ouvir a voz da bruxa o homem tremeu e forçou as pernas para frente como se tentasse se afastar da garota, mesmo estando amarrado a uma árvore.

Ryu observou essas reações e percebeu que o homem tinha um medo muito grande de Catherine.

— Cat, vai arrumar suas coisas daqui a pouco vamos continuar a viagem. — Ryu informou.

Catherine apenas acenou positivamente com a cabeça e fez como pedido.

Assim que notou o afastamento da garota, Ryu se sentou de frente ao prisioneiro e perguntou:

— Você é um Minus?

— Statera. — O homem respondeu sem olhar para Ryu.

— Não faz sentido! Catherine está registrada no Grande Livro como uma bruxa neutra e não cometeu nenhum crime.

— Ela é uma bruxa impura! — O prisioneiro encarou Ryu — Ela é um dos piores tipos que poderia haver.

— Qual o seu nome?

— Eu me chamo Josh Lag… — O homem parou por alguns segundos, refletiu sobre a suas palavras e concluiu — Lancelot!

— Lancelot? — Ryu arqueou uma das sobrancelhas — Tipo o da távola redonda?

Josh parou por alguns segundos e uma expressão de decepção surgiu em seu rosto:

— Conhece esse Lancelot?

— É claro que eu conheço! — O guerreiro estava incrédulo — Quer dizer… Todo mundo já leu sobre isso!

Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, até que Ryu se levantou e se afastou do prisioneiro.

— Ela é perigosa! — Josh disse enquanto observava o garoto caminhar — Quando você irritá-la, ela vai te atingir com um meteoro!

— A Cat é uma boa garota. — Ryu respondeu depois de parar seus passos.

— Ela é o Apocalipse! — O homem carregava uma expressão séria em seu rosto.

— Já acabei! — Catherine voltou em passos rápidos para Ryu.

Ao observar a expressão contente no rosto da garota, ele pôde perceber que ela não havia ouvido as palavras do estranho.

— Cat… — Ryu pôs as mãos sobre os ombros da garota — O nome dele é Josh e ele é maluco...

Ao ouvir as palavras de Ryu, o prisioneiro se mostrou ofendido.

— … então não deixe se abater pelas coisas que ele pode dizer sobre você. — O guardião completou.

Catherine sorriu de forma gentil para Ryu enquanto retirava uma mecha de cabelo que cobria parte do seu rosto:

— Não sou nova nisso de ser ofendida Ryu! Não se preocupe, meu pai me criou para ser forte!

Apesar da postura firme que a garota demonstrava, ele sabia que Catherine era tão frágil em seu interior que qualquer palavra mal dita poderia destruir a sua felicidade.

— Fique de olho nele, qualquer movimento em falso me grite. — Ryu também sorriu para a bruxa.