Questão de Sorte escrita por Hakiny


Capítulo 77
Um Caminho Até Shima




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Catherine seguia com cautela o barulho estrondoso, inclinou-se para frente, enquanto se apoiava em uma árvore. Vislumbrou uma espécie de lago, cercado de outras árvores. Se aproximou mais alguns passos se escondendo atrás de outra árvore, dessa vez conseguiu ver mais de perto o lago, que apresentava uma cor avermelhada.

“Sangue” A bruxa levou a mão a boca. O rugido alto e repentino fez com que ela tropeçasse e rolasse pelo pequeno relevo que cercava o lago. De frente para uma criatura que desafiava seus piores pesadelos, Catherine gelou. Um rugido ensurdecedor explanou seus cabelos e lhe deu forças para correr dali aos tropeços. Ela montou em seu cavalo e seguiu a toda velocidade em direção ao portal que a havia levado até ali.

— CINDY! — Catherine esmurrava a parede — CINDY!

— O que houve? — A mulher abriu o portal imediatamente e assistiu Catherine se jogar para dentro em total desespero.

— T-tem uma criatura lá fora… — A jovem bruxa tremia.

Ela conversou com Cindy até se acalmar e em seguida voltou para o seu quarto. Até mesmo seu medo de Denize havia ficado em segundo plano, devido ao susto daquele dia.

Já eram 9 da noite e por isso ela se deitou e tentou dormir, no entanto a imagem da criatura não saía da sua cabeça. Embora assustadora, ela estava ferida. 

— Todo aquele sangue… — Catherine estava inquieta — Deve estar doendo muito, não é? 

Tommy, em sua forma de roedor, a encarava sonolento.

A bruxa se levantou de sua cama e começou a se trocar.

— Você não deveria vir comigo… — Disse enquanto amarrava o cadarço de seu tênis — Pode ser perigoso e…

Tommy pulou para dentro da roupa da garota e ela não mais protestou.

Caminhou cautelosamente pelos corredores, com a esperança de que Denize ainda estivesse ocupada. Viu algumas bruxas andando aqui e ali, já se preparando para deitar e tentou se misturar. Cindy havia lhe explicado um pequeno feitiço de transporte que a ajudou a chegar até o subsolo, sem mais precisar despencar escada a baixo.

— Você tem certeza? — Cindy a encarou — Estava tão assustada da última vez, o que a fez mudar de ideia?

— Não consigo dormir… — Catherine encolheu os ombros — Ela estava machucada… Estava sentindo dor…

— Ela? — Cindy a olhou com curiosidade.

— Sei lá… — A jovem bruxa estava sem graça — Parece ser uma garota.

— Que bom… — A mulher sorriu — Siga seus instintos Catherine, algumas bruxas são muito sensitivas e isso pode ser essencial para decidir seu destino.

Depois de se despedir da bruxa, Catherine montou em Tommy e seguiu rumo ao lago. Estava escuro, por isso a bruxa usou suas mariposas douradas para iluminar o caminho. O lago estava vazio e isso causou certa aflição na garota. Uma parte dela acreditava que a criatura poderia apenas ter se levantado e ido embora, e isso seria bom. Por outro lado, ela poderia ter sido levada pela correnteza ou mesmo… Estar a espreita querendo atacá-la.

Uma respiração quente soprou a nuca de Catherine, num movimento desesperado a bruxa se jogou no chão. A criatura saltou para cima dela, como quem estava pronta para um golpe fatal, mas foi brutalmente bloqueada por um corpo muito maior do que o seu e em seguida foi rendida. Ela se debateu inutilmente, até o momento que foi ameaçada por um rugido ensurdecedor.

— Você parece bem enérgica para quem está com uma ferida aberta no abdómen — A garota saiu de trás do imenso corpo escamoso de Tommy, enquanto ajeitava o vestido.

A criatura tinha um olhar tão assustado, que Catherine foi incapaz de culpá-la por aquela reação.

— Você está machucada, sozinha e provavelmente faminta… — Catherine colocou a mochila que carregava em suas costas no chão, retirando dela alguns alimentos — Eu também não estaria de bom humor no seu lugar.

Tommy liberou sua prisioneira, mas manteve seus olhos atentos nela. Aquele híbrido poderia estar desconfiado das intenções de Catherine, mas sua fome era grande demais para rejeitar aquele jantar, por isso apenas comeu sem hesitação.

— Sabe, o Josh me falou um pouco sobre os híbridos… Você é meio humana não é? — Catherine perguntava com curiosidade.

A criatura continuou comendo sem se importar com os questionamentos da bruxa.

— Eu coloquei sonífero na sua comida — Catherine disse com tranquilidade — Resolvi falar isso depois que você comesse, porque imaginei que você pudesse me entender.

O híbrido parou de comer no mesmo instante.

— É… — Catherine o observou — Você me entende mesmo.

Não demorou muito para que o doente perdesse a consciência.

— Você tem noção de que horas são? 

A criatura ouvia vozes abafadas.

— Ela ia morrer! — Catherine resmungava — Você é médico Marcos!

— Não sou veterinário! — Retrucou.

— Tecnicamente se essa criatura é um híbrido, ela é humana! — Trevor argumentava.

— Você também não!

Mesmo se esforçando para levantar, o híbrido apagou mais uma vez.

— Não tem como ser mais rápido? — Catherine sussurrava — Se nos pegarem aqui, eu vou ser expulsa sem sombra de dúvidas!

— Você está sendo positiva, considerando a presença do Trevor, você pode ser facilmente presa ou enforcada!

Se passou algum tempo, até que a besta despertasse e Catherine não estava mais ali. Já era dia e havia uma fogueira que a manteve confortavelmente quente, uma lona forrada no chão com alguns bolinhos de arroz e um casaco sobre suas costas que miseravelmente não foi capaz de cobrir nem metade delas. A ferida na barriga estava cuidadosamente suturada e não mais apresentava sangramentos e nem dor. O híbrido respirou profundamente e mais uma vez deitou sua cabeça sobre seus braços. Sua mente estava confusa e era constantemente assolado por dores de cabeça. Sabia distinguir formas e cores, mas não conseguia atribuir nome a nada. Estava cercado de coisas marrons com folhas verdes mas não sabia qual nome poderia dar aquelas coisas.

“Folhas..”

Se fosse capaz de sorrir, com certeza o faria naquele momento. Folha agora era a sua palavra favorita no mundo, pois era algo que ela conhecia nesse mundo. Abriu a boca e expondo suas enormes presas, tentou expor aquele sentimento. Mas diferente do que esperava, ouviu apenas um rugido amedrontador.

— As coisas vão ser difíceis para você nessa forma, criança.

A criatura levantou sua cabeça de forma brusca e buscou em todas as direções a origem daquela voz, mas estava completamente sozinho.

— Se olhar para fora, não vai me encontrar, você precisa olhar para dentro de si — A voz era extremamente gentil.

— Você sou eu? — A criatura pôde então ouvir sua própria voz e por isso se assustou— Eu posso falar?

— Sua cabeça começa a ficar em ordem então acho que podemos chamar isso apenas de pensar… Você pode pensar.

Aquele diálogo acontecia apenas dentro da ordinária mente daquela criatura.

— Eu não sou você. mas sou parte de você e por isso estaremos juntas até o fim.

— Por que eu sinto que sei todas as coisas, mas ao mesmo tempo não sei sobre nada?

— Acho que no fim todos nós somos assim.

— Nós quem?

— As pessoas.

— Eu sou uma pessoa?

— Sim.

— Você é uma pessoa?

— Sim.

— Somos iguais então?

— Não. Eu sou uma bruxa e você é uma humana.

— De onde eu vim? Qual é o meu propósito?

— Essa pergunta eu não sei responder.

— Acho que ninguém sabe! — Uma terceira voz surgiu naquela conversa e isso fez com que a besta se levantasse assustada.

— Tem gente demais conversando nessa cabeça, hem? — A autora da voz, era uma garota ruiva de cabelos cacheados e longos presos em uma trança, uma pele bronzeada e olhos castanhos claros.

Ela era bonita como uma pintura, embora aquela criatura não soubesse bem quando havia visto uma.

— Eu me chamo Abigail — A garota se curvou educadamente — Você parece perdida.

No dormitório, Catherine despertava lentamente. Havia dormido bem durante aquela noite, estava feliz por ter ajudado sua mais nova amiguinha. Devia um favor para o lorde das trevas, mas esse não era o maior dos seus problemas e isso era preocupante. Levantou-se disposta e preparou uma pequena marmita para a criatura que acabou ficando maior que sua mochila habitual e isso a levou a trocar de bolsa. Caminhou sorrateiramente pelos corredores do santuário e finalmente chegou até Cindy.

— Porque eu não ganho comida? — Cindy protestou como uma criança frustrada.

— Porque você pode produzir a sua própria comida! — Catherine respondeu indignada.

— Você sabia que o que vale mesmo é a intenção?

— Aqui — Catherine estendeu um pacotinho de comida — Está bem temperado.

— Obrigada! — Cindy recebeu com animação.

Catherine caminhou habitualmente até o lago e calmamente procurou pela sua companheira, mas tudo o que encontrou foi uma garota ruiva portando uma vara de pescar.

— Quem é você? — Cat estava assustada — O que está fazendo?

— Como pode ver, estou pescando.

— Entendi… — Catherine se balançava de um lado para o outro, enquanto buscava disfarçadamente pela besta.

— Está procurando pelo híbrido?

— O que fez com ela?! — Catherine perguntou com desespero.

— Então você sabia que era uma garota? — A menina ruiva sorriu para Cat — Você conseguiu falar com ela?

— O que..?

— Acho que não… — A estranha desviou o olhar — Eu me chamo Abigail!

Catherine não sabia de onde aquela garota havia saído, mas ela parecia ser do santuário, por isso não confiava nela. A dura lição que aprendeu em seus primeiros dias ali, é que ninguém do santuário era confiável.

— O híbrido que estava aqui, seguiu pelo rio. Acho que ela pretende chegar ao mar e em seguida ir para casa — Abigail explicava.

— Casa? — Catherine estava confusa — Do que você está falando?

— Ela me disse que…

— Olha… ela não podia falar até ontem… — A bruxa do azar se mostrava impaciente.

— Bom… O nome do seu bichinho é Tommy, não é?

— Como você sabe disso? — Catherine estava assustada, com as informações vindas daquela possível stalker.

— Bem, eu sou uma bruxa, assim como você e a minha habilidade natural é a comunicação — A garota explicava calmamente — Eu tenho facilidade para aprender idiomas e métodos de comunicação e optei por me especializar em zoologia.

— Entendo… — Catherine estava receosa 

— Você é Catherine não é? — Abigail estava empolgada — A bruxa do azar de quem andam falando por aí.

— Então, andam falando de mim? — Catherine tinha um olhar desanimado.

— Claro que falam de você! — Abigail dizia com tranquilidade — Falavam de mim quando eu cheguei também “A esquisitona que fala com os mosquitos”. As pessoas comentam sobre o que não conhecem e tendem a ser maldosas, mas o estranhamento com o desconhecido é normal, se quer saber! Eu sei que machuca, mas não podemos resolver isso pedindo para que os cupins destruam as roupas mais caras de todas as pessoas que nos ofenderam.

Catherine permaneceu em silêncio.

— As pessoas acabam se acostumando com o tempo! Estamos no santuário afinal de contas. Tem bruxos de dentro e fora do continente, nobres, camponeses, hétéros, LGBTs… Se não nos acostumarmos com a presença um dos outros provavelmente estaríamos em guerra e o principal alicerce que nos sustenta é a união. — Abigail tomou fôlego e se levantou para sair — Tenha fé, um dia você vai sentir que está em casa.

— Espera… — Catherine impediu que a garota fosse embora — Eu trouxe muita comida para o híbrido, mas ela não está mais aqui… 

— Eu estou com muita fome.

Abigail era interessante e a primeira pessoa que havia tratado Catherine de forma educada até aquele momento, ela era aluna do santuário e talvez uma futura amiga.

Fora dos muros interdimensionais protegidos pelas bruxas, um inquérito já havia sido aberto. “A bruxa do azar não poderia frequentar o santuário, a bruxa do azar é um perigo para a sociedade” Blanc dava uma entrevista na televisão.

— Esse desgraçado devia estar na cadeia! — Ivan desligou a TV.

— Esse desgraçado deveria estar morto, se você não fosse tão bonzinho — Lya resmungou.

— Eu não entendo… — Hendrick estava pensativo — Centenas de híbridos no campo de batalha, e aqueles monstros... e as bruxas? Tínhamos testemunhas… Mas parece que nada pode abalar esse cara!

— Ele tem apoio popular — Kai se manifestou — É quase um deus. Não importa do que possam acusá-lo.

— E ainda não conseguiram capturar um único híbrido para testemunhar! — Lya esmurrou a mesa de centro da sala.

— Os caçadores do Statera não se manifestam, as bruxas não querem se envolver… — Ivan levava as mãos aos cabelos — Eles são mais rápidos, mais fortes e a maior parte se escondeu no Minus novamente. Estamos de mãos atadas.

Bem distante dali, na cidade de Montis, Josh estava rastreando um pequeno grupo de híbridos. A maior parte deles havia conseguido voltar para a sede do Minus, mas muitos ainda estavam escondidos na esperança de conseguir uma oportunidade para voltar ao esconderijo de onde haviam saído. Essa provavelmente era a ordem recebida, todavia Josh estava no encalço desses pobres remanescentes, afinal, o julgamento de Catherine se aproximava e aquelas testemunhas eram cruciais para tirar a credibilidade de Blanc no tribunal e diminuir sua aprovação pública.

Os três adolescentes estavam escondidos em um estábulo de uma fazenda muito próxima do limite da cidade, provavelmente esperando a noite para a fuga.

— Vocês precisam vir comigo! — Josh entrou pela porta da frente.

— Quem é você coroa? — A garota do grupo se levantou de forma brusca.

— Coroa? — Josh sentiu uma pontada em seu coração e na coluna.

— Não seja estúpida, Yasmin! — Um rapaz tocou seus ombros — Esse é o filho mais novo do nosso general.

O rapaz que estava em silêncio avançou a toda velocidade em direção a Josh e o derrubou com um empurrão. Ainda em cima do inimigo ele usou uma adaga que carregava consigo para tentar atingir o caçador no rosto. Josh usou as pernas para dar impulso e tomou o controle da situação, se pondo por cima do garoto. Josh preparava-se para socá-lo no rosto quando foi surpreendido por uma corda em seu pescoço. O caçador foi arrastado para longe do garoto enquanto era enforcado. O terceiro híbrido preparava para atacá-lo, quando de repente tudo cessou e os três adolescentes caíram desacordados no chão.

Um pequeno redemoinho negro surgiu do meio daquela pequena fazenda e dele saiu a imagem de Trevor, arrastando duas outras adolescentes pelo braço. 

— Esses híbridos estavam se escondendo na minha floresta — Ele largou os dois corpos desacordados no chão — Cuide do seu lixo.

O bruxo sumiu em seguida.

Embora não gostasse muito da presença daquele homem, até porque estar perto dele arrepiava até os cabelos do pescoço, sabia que aquela era a maneira de Trevor ajudar Catherine.

Era fim de tarde e Masumi meditava nas proximidades do imenso mar amarelo que cercava Shima. Ele acreditava que o porto era um ótimo condensador de energia e sempre que tinha oportunidade se isolava ali. O som das ondas eram calmantes para o turbilhão de pensamentos que assombravam aquele jovem monge.

“De alguma maneira, o bem eo mal, a verdade e a mentira, a esperança e o desespero se misturavam” Masumi escrevia na areia da praia.

— UM MONSTRO! — Um grito feminino ecoou.

— Monge! — Um homem se aproximou de Masumi — Tem uma criatura gigantesca saindo da praia! Ela vai nos devorar! Por favor, faça alguma coisa monge!

Masumi correu em direção ao local da movimentação excessiva, alguns grupos de pescadores corriam em pânico rumo a cidade, para se abrigar da fera que a pouco havia aparecido.

Ao aproximar-se da praia, Masumi se preparava para nocautear aquela criatura antes que ela tivesse chance de machucar os moradores. Entretanto, embora uma energia absurda emanasse dela, a besta caminhava cambaleante pela areia. Tinha uma ferida ainda sangrando no abdômen e um olhar entristecido.

— Chamem o exército! — Um pescador gritou.

Masumi caminhou calmamente diante da fera e a cercou com um escudo de água.

— O que você quer? — O monge estava confuso e estranhamente tocado.

Os olhos vacilantes da criatura, que antes não fixavam em nada, pousou por alguns segundo sobre Masumi. Os rugidos cansados e incertos de repente pareceram formar uma palavra:

— Casa.


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