Lá E De Volta Outra Vez escrita por Pacheca


Capítulo 82
Mais Ciclos se Encerram


Notas iniciais do capítulo

O capítulo ficou grande, mas imaginei que nesse ritmo era melhor eu acabar de vez esse ciclo. Estou aqui um caquinho depois de relembrar esse episódio. Aproveitem!



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Eu ainda estava digerindo a companhia de Kentin, quando o silêncio entre nós pareceu incomodá-lo. Bom, na verdade me incomodava também, eu só não sabia o que dizer.

— Sabe… – Eu indiquei que ele podia continuar, mas um vulto se aproximou de nós e ele ficou quieto, até que ele reconheceu a sombra. – Evan?

Ele nos alcançou debaixo de um dos postes, quase nos atropelando. Foi Kentin quem o apoiou de leve, enquanto ele ainda dava um sorriso torto, ou tentava. Eu evitei fazer contato visual, mas o pouco que eu tinha visto já era o bastante. Alguém tinha acabado com ele em uma briga, com direito a tudo, olho roxo, cortes, nariz sangrando e roupas rasgadas.

— Evan, você está bem? O que aconteceu? – Eu perguntei, finalmente criando coragem para encará-lo de novo. O estado dele estava realmente deplorável.

— Isso? Relaxem, não foi nada. Você devia ter visto ele. – Ele tentou dar mais uma risada, mas qualquer força que ainda sobrava parecia querer fugir dele.

— Evan, é sério, você está péssimo, com todo o respeito. – Respondi, mas ele ainda não queria ceder de que tinha tomado uma surra.

— Você está num estado lastimável e quer falar que está bem, conta outra. – Kentin resmungou. Evan estava escorado no poste, de frente para mim. Ele estava mal, dava para ver. Eu ia sugerir que Kentin o apoiasse, mas antes que eu falasse as pernas dele cederam e ele foi direto pro chão. – Evan!

Kentin correu para ajudá-lo a ficar de pé, o que parecia pouco provável, então eu corri para o outro lado para ajudar. Não sei se ajudei muito. Eu não era a pessoa mais forte do mundo e ele era mais pesado do que parecia.

— Meu Deus, vocês comem tijolo no colégio militar? – Resmunguei, fazendo esforço. Kentin sorriu, finalmente conseguindo segurar o sujeito direito e me agradecendo. – Evan, você está escutando?

— Sim, minha cabeça só está rodando um pouco. – Ele resmungou, meio grogue. Respirei fundo.

— Um pouco? Te trucidaram, você está pior do que um pouco. – Ele enfiou a mão no bolso e pegou seu celular, ainda escorando o mais velho. – Eu vou pedir ajuda, não posso te deixar assim.

Eu escutava Kentin ao telefone enquanto analisava a situação de Evan. Ele não estava olhando direto para mim, mas eu não sabia se era por vergonha ou se o cérebro dele não estava funcionando direito. Kentin parou a conversa perguntando sobre concussões. Conferi a cabeça de Evan e disse que não via nada, mas não tinha certeza.

— Ok, eu aguardo. Obrigado. – Kentin finalmente desligou, dizendo que estavam mandando uma ambulância.

— Ah, vocês estão se preocupando por nada. – Evan mais uma vez tentou manter a pose, mas eu segurei os ombros dele impedindo-o de ficar de pé. Ou de tentar.

— Fica quieto. Aliás, o que foi que aconteceu? – Eu perguntei, ao que ele resmungou e parou de tentar ficar de pé.

— Nada, eu ri de uns caras e eles não gostaram.

— Ah, claro, é o mínimo que se pode dizer. – Comentei, dando de ombros. Kentin passou a mão pelo rosto, aparentemente exausto pelo ocorrido.

— Obrigado por ter ficado. Eu sinto que você tenha que ter presenciado essa cena. – Ele falou, ao que eu não fiz caso. Eu podia não concordar com a atitude, mas não ia deixar o sujeito morrendo por conta própria.

A ambulância finalmente chegou. Felizmente, a rua estava vazia e a gente não tinha que ficar se preocupando com os comentários alheios. Eles estavam preparando Evan, quando eu finalmente perguntei para Kentin.

— O que você queria me dizer? – Ele parecia pego de surpresa, mas chegou a abrir a boca para me responder. Um paramédico pulou no meio da gente, anunciando que tinham que ir logo. Ele olhou a ambulância e me olhou em seguida. – Vai, a gente conversa depois.

Ele agradeceu mais uma vez e foi para o lado do amigo. Assim que a ambulância sumiu, eu retomei meu rumo para casa com passos apressados. Já estava relativamente tarde e eu sabia que meus pais deviam estar apavorados.

— Boa noite. – Entrei no apartamento, vendo minha mãe murmurar um “graças a deus” antes de vir falar comigo.

— Boa noite? Onde você estava? A gente não conseguia te ligar de jeito nenhum…

— Desculpa, meu telefone descarregou. Eu fiquei estudando na biblioteca, mas ai dormi e como eu estava meio escondida o vigia não me viu. Ai eu fiquei presa na escola.

— Suas revisões não te renderam muito, hein? – Os dois pareciam desconfiados. Bem feito para mim, eu sabia que eles tinham razões para duvidarem de mim, mesmo esta sendo a verdade dessa vez. – E como você saiu, afinal?

— Pelo muro do jardim.

— Olha só, uma escaladora nata. – Meu pai comentou, parecendo mais tranquilo. – Agora eu sei que é verdade, ela não inventaria algo tão mirabolante assim para ser uma desculpa.

— Falando em revisões, como andam as provas? – Minha mãe perguntou, finalmente se sentando no sofá, mais calma.

— Bem, obrigada. Bom, mais uma vez, me desculpem o susto. Se vocês não se importam, eu vou subir e dormir. Eu fiquei toda torta naquela mesa na biblioteca. – Eles concordaram. Eu subi e, assim que cai na minha cama, o peso do meu dia inteiro quase me esmagou. As provas, a dor no pescoço, a prisão na escola, a ajuda de Kentin, a ajuda que demos a Evan. Estiquei o braço, quase caindo da cama, mas consegui pegar meu carregador e conectar o celular.

“Estou na saída, não me incomodaria de ganhar um último beijo seu hoje.”

Lysandre. Pelo horário eu já estava devidamente apagada na biblioteca, mas ainda fiquei triste por não ter visto antes. Corri para responder porque eu tinha o ignorado, explicando o cochilo, a falta de bateria e a ajuda de Kentin.

“Queria ter te ajudado, mas pelo menos você conseguiu sair”

Sorri. Eu deveria contar sobre Evan também, mas simplesmente não tinha forças. Desejei boa noite e fui me trocar, com um esforço enorme para ficar de pé, antes de dormir.

Acho que acordei com o despertador, mas virei de lado e ignorei o barulho. Até alguns minutos depois, quando meu pai veio conferir se estava tudo bem e me pegou dormindo. A presença dele no quarto fez meu cérebro dar um pulo e correr para conferir as horas, antes de sair tropeçando nas pernas para ir me arrumar. Ele notou e riu.

— Que foi?

— Sábado, meu bem. Hoje é sábado. – Ele só falou e saiu do quarto. Resmunguei, caindo na cama de novo. Infelizmente, o susto tinha me acordado o suficiente para não cochilar mais. Troquei de roupa e desci.

— Minha mãe ainda está dormindo? – Sentei ao lado do meu pai, vendo as manchetes do jornal. Nada muito bom, como de costume.

— Ela sempre aproveita os sábados, não é? Por que você não traz alguma coisa pro café, depois que ela acordar?

— Ok, pode ser. Vou dar uma voltinha e volto com umas gostosuras.

— Bom passeio.

Eu estava dando uma volta pelo parque depois de ver algumas vitrines da padaria e do mercado. Eu já estava voltando para comprar o café da manhã, quando meu telefone tocou. Kentin. Atendi, imaginando que podiam ser notícias sobre o Evan.

— Kentin, oi. Tudo bem?

— Bom dia, Anna. É, desculpa te ligar assim, mas eu queria saber se a gente podia conversar. Você pode hoje a tarde?

— Imagina, posso sim. – Eu ainda estava meio irritada com o comportamento dele, mas eu imaginei que o estado de Evan ontem tinha deixado uma dúvida na cabeça dele. E também, se eu queria resolver a situação, eu tinha que pelo menos escutá-lo. – Aonde?

— No hospital, se você puder. Daí, se você quiser, pode visitar o Evan também. Enfim, só se você puder e quiser conversar, eu entendo se você não estiver afim.

Deixei o encontro marcado e voltei para casa depois de comprar o café. Avisei que sairia de tarde, depois do almoço, mas nenhum dos dois se incomodou. Eu vesti uma roupa confortável depois de tirar a mesa e sai do prédio.

— Oh, droga, minhas chaves. – Eu vi que tinha esquecido as chaves e decidi voltar. Não era muito confiável andar sem chaves aos fins de semana, meus pais sempre inventavam algum jantar ou programa e me deixavam sozinha. – Pai?

Ele estava no meu quarto, perto da cômoda, quando me notou e se virou correndo. Eu tinha pego meu pai de boca na botija? Cruzei os braços, vendo que ele escondia alguma coisa nas costas.

— Vasculhando minhas coisas?

— Claro que não. Eu sempre respeitei seu espaço. – Ele ficou ofendido com a pergunta, mas em seguida respirou fundo e deu de ombros. – Que se dane fazer surpresa. Vem cá, filha.

— O que foi? – Sentei ao seu lado na cama, começando a ficar preocupada. Ele me estendeu a caixinha em suas mãos, embrulhada para presente. – O que é isso?

— Eu decidi te dar um presentinho pelo seu esforço com as provas. Sei que não recebemos as notas ainda, mas eu queria retribuir sua responsabilidade e esforço. – Ele pausou, pensando um pouco. Esperei ele terminar, percebendo que ele parecia um pouco perdido. – Achei que seria útil nessa nova fase da sua vida.

Finalmente peguei o embrulho, tomando o cuidado de não rasgar muito o papel e não estragar a caixinha de couro. Abri, curiosa. Um relógio de pulso. Era um modelo simples, preto com dourado, pouco chamativo. Sorri. O relógio da vovó.

— Obrigada, pai. – Coloquei o relógio no pulso, como se testasse como ficaria. – Ficou bom, não?

— É, eu achei. Acho que vai ser importante você controlar seus próprios horários, e a bateria dos relógios dura mais que as de celulares. – Ele comentou, retribuindo o abraço de lado que eu dei nele. – E também não vai depender de nós para saber os horários dos seus afazeres.

— Pode ser, mas eu não pretendo ir a lugar nenhum sem vocês. – Ele sorriu para mim. Por mais protetor que meu pai fosse, beirando o exagero, eu sabia que no fundo ele, assim como minha mãe, só tinha medo de me perder. E a vida adulta também os assustava.

— Vamos, você não tinha um compromisso? – Ele apontou o relógio, sorrindo. Concordei, pegando minhas chaves e me despedindo de novo. Agora sim, consegui pegar o ônibus e ir encontrar Kentin no hospital. Eu só esperava que aquela conversa não acabasse mal como nossa última, na boate.

Por mais que eu detestasse aquele hospital depois de todas as visitas que fiz, não hesitei em entrar mais uma vez. A enfermeira carrancuda da última vez, Socorro, estava entrando no elevador. Perguntei o quarto para a outra moça na recepção que não hesitou em me passar a informação. Agradeci.

Kentin estava com Evan no quarto, os dois conversavam baixo. Bati na porta de leve, pedindo licença. Evan parecia um pouco melhor. Pelo menos ele estava limpo e em roupas inteiras.

— Oi, Evan. Melhor? – Perguntei, cruzando os braços. Kentin tinha me dado oi também, mais tímido.

— É, não vai ser dessa vez. Fora uns roxos e uma costela quebrada eu sigo bem.

— Ugh, deve doer.

— Eu aguento. Obrigado por perguntar.

— Imagina. Kentin…

— É, bom, vamos até a lanchonete. A gente conversa lá e deixa o Evan descansar. – Ele indicou a porta e eu o segui, acenando para Evan antes de sair do quarto. O pouco tempo no elevador deixou o silêncio entre nós um pouco mais pesado que o de costume. Eu fiquei quieta o tempo todo, inclusive enquanto ele comprava duas bebidas para nós. Eu tinha vindo ouvir, porque com certeza já tinha falado tudo que eu precisava para ele. – Obrigado por vir.

— É normal.

— Não é, não diria que é. Achei muito simpático da sua parte. – Ele deu de ombros. Eu podia concordar com aquilo.

— Bem, qual o assunto afinal? – Tomei um gole do chocolate quente, simplesmente para ocupar minhas mãos.

— Evan. – Ele hesitava para falar, mas eu sabia que ele só precisava encontrar a coragem em si. Eu esperei ele continuar. – Você não estava errada, Evan não é sempre correto. E eu percebo que eu também não, quando estou com ele.

— Eu confesso que fico um pouco triste que você tenha precisado que as coisas realmente dessem errado para perceber.

— Não foi só isso. Digo, com certeza esse foi o fator decisivo, mas eu comecei a refletir de ouvir tantas críticas e de te ouvir reclamar tanto. E não é que eu não ligasse para o que você tinha a dizer, você sabe que eu sempre ligo, mas o Evan foi muito importante na minha vida e de repente todo mundo estava pondo nossa amizade em xeque. Ele foi essencial para que eu conseguisse me integrar dentro do colégio. Foi muito difícil para mim no início. Eu sempre tinha sido o pequeno Ken rebaixado e humilhado por todo mundo, mas lá as coisas eram piores ainda.

Ele vacilou. Eu notei que a conversa estava tomando um rumo diferente do que eu imaginava, mas ainda assim não quis interromper. Ele abaixou o rosto, como se quisesse se esconder em si mesmo.

— É muito difícil falar em voz alta o que eu vivi… – Era a primeira vez que eu via o Kentin pós colégio militar chorando. E aquela vez era mais sofrida do que qualquer outra que eu tinha presenciado suas lágrimas. Pus minha mão em cima da dele, sentindo o aperto no peito. – Não eram as piadinhas, as reclamações, o treino...Eu não pertencia ali e eles me mostraram muito bem que não.

A voz dele era uma mistura de dor e raiva. Eu entendia melhor porque ele nunca comentava a fundo sua vida no colégio militar. Claro que eu imaginava que não seria fácil quando ele foi embora, mas então ele voltou tão diferente que eu jamais imaginei que ele tinha sofrido tanto. Meus olhos também ardiam, mas eu tentei reter as lágrimas, deixando-o em seu momento de desabafo.

— Num dos primeiros dias, estava nevando e eles me trancaram para fora, só com a bermuda e a camiseta branca. Eu tive que dormir na área do lixo para não congelar. No mais comum eles cuspiam no meu prato e punham insetos na minha cama. Um dia me obrigaram a beber a água do banheiro. E essas nem são as piores.

— Como é que alguém consegue fazer isso com os outros? – Perguntei, desistindo de vez de segurar o choro.

— Eu estava quase desistindo. Só que ai o Evan interveio e...foi ele quem me ajudou a não aceitar mais isso tudo, que me ajudou a segurar a onda. – Ele secou o rosto, respirando fundo. – Eu sei que eu passo pano em algumas atitudes dele, mas eu não consigo criticá-lo e também não acho que vocês deveriam ser tão duros com ele. Foi muito pior para ele.

— Como assim? – Eu ainda estava com aquele nó na garganta que parece uma bola de boliche presa. Reparei que ele acariciava minha mão, mais como um ponto de apoio do que uma forma de carinho.

— Eu não sei se sou a melhor pessoa para te contar…

— Não precisa se não quiser. – Puxei minha carteira para mais perto da dele, ainda tentando secar meu rosto. – Você já me contou tanta coisa e eu sinto tanto que você teve que passar por isso.

— Obrigado, mas eu quero que você tenha todo o contexto para poder entender. – Ele respirou fundo, soltando minha mão para limpar o rosto mais uma vez. – Ele na verdade só me contou isso uns meses depois que a gente se conheceu, depois que já nos considerávamos amigos. Ele estava com dez anos, órfão, caindo de paraquedas naquela academia de selvagens...Ele não teve a ajuda que eu tive vinda dele e no fim as coisas saíram de controle.

Aquilo por si só embrulhou meu estômago. Kentin parecia tomar coragem para continuar seu relato, mas no fundo eu quase queria que ele parasse. Ele finalmente voltou a falar, tremendo de novo.

— Alguns anos já tinham se passado desde que ele tinha entrado no colégio, quando uma noite uns cara mais velhos mexeram com ele e…– Ele não teve forças para falar em voz alta, soluçando. Eu reagi da mesma forma, tremendo e sem controlar a torrente de lágrimas. – Ele agiu feito um animal. Dois dos caras foram parar no hospital por isso, mas depois disso ninguém nunca mais mexeu com ele.

— Eu entendi. Eu não o culpo por ter se posto nessa defesa de agressividade.

— Eu agradeço todo dia por ele ter essa atitude e ter me protegido, Anna. Eu não teria a menor chance se a situação se repetisse comigo. Eu sei que não justifica a atitude que eu tive recentemente, mas eu não enxerguei isso de cara. O que servia lá dentro talvez não sirva aqui.

— Você não precisa ser agressivo aqui fora. – Respirei fundo, controlando meus nervos, enquanto os dois tentavam se recompor. – O mundo aqui fora não é uma constante armadilha.

— Eu sei, mas ter ele por perto me trouxe essa sensação de volta. E até hoje eu sinto que tenho que provar para ele que eu não sou mais o garotinho bobo que ele conheceu.

— Para ele ou para você?

— Oi?

— Você tem que provar isso para ele ou para você mesmo? – Perguntei de novo, simplesmente querendo que ele pensasse sobre aquilo. Ele respirou fundo antes de continuar.

— Eu sei que passei de todos os limites e, ontem, quando eu vi ele naquele estado, eu entendi que não era uma boa companhia.

— Ouvir não foi suficiente? – Sorri fraco. Ele sorriu também.

— Eu levei um tempinho, confesso. – Ele suspirou, finalmente tomando seu chocolate, agora frio. Eu fiz o mesmo, simplesmente digerindo toda aquela conversa. – Eu queria me desculpar. Digo, tentar. Eu não sei como, mas eu espero que vocês consigam me perdoar algum dia.

— Kentin, eu vou ser honesta com você, se eu te disser que podemos esquecer isso tudo, eu vou estar mentindo. Aquele dia, depois da boate, eu fui embora aos prantos no ônibus, eu fiquei magoada de verdade. – Ele não reagiu de imediato, mas eu segurei sua mão mais uma vez, fazendo-o me olhar. – Mas a gente vai dar um jeito. Você vai conseguir se desculpar e eu vou conseguir te perdoar, ok? Eu acho que só precisamos de um tempo.

Ele concordou, sorrindo fraco. Acabei o chocolate e fiquei de pé. Sugeri que voltássemos para ver o Evan, recebendo um aceno de cabeça em acordo. Entramos no elevador, finalmente usando o espelho para me recompor. Não tinha como esconder que eu chorei, mas meu cabelo voltou para o seu lugar.

— Ei, já estava indo atrás de vocês. Fica chato no quarto. – Ele estava no corredor, andando devagar. A Socorro logo apareceu, nos mandando voltar para os quartos. Ele usou uma de suas cantadas baratas, mas eu reparei que era só para incomodar a mulher. – Até porque, se eu tiver que escolher uma bela enfermeira para me acompanhar eu já sei quem eu escolho.

— Quer mais uma costela quebrada? – Perguntei, enquanto ele se deitava de novo, rindo. A cara de dor dele me confirmou que aquela costela o incomodaria por algum tempo.

— Sabem, eu vou ter alta amanhã. O que vocês acham de tomarmos algo depois? – O Evan sugeriu, muito mais tranquilo agora. Kentin deu de ombros. – Os gêmeos estão sabendo que eu tive uns probleminhas e eu queria falar com eles. E seria bom se você estivesse por perto, Anna.

— É, na verdade, eu também tenho que falar com eles. – Ele não enfatizou como Evan fez, mas eu sabia que ele também esperava que eu o ajudasse. Concordei com a cabeça. Aquilo parecia uma boa forma de resolver tudo.

— Bom, eu tenho que ir. A gente se vê amanhã, então.

— Oh, Anna, se você encontrar com um careca grandão e seu amigo de jaqueta de couro… – Eu já estava na porta quando ele começou a falar. – Não conte para eles que eles parecem o Pink e o Cérebro. Acho que eles não são fãs de desenhos.

Fui obrigada a gargalhar, mesmo que parecesse meio errado. Ele riu junto, de novo com a expressão sofrida. Controlei o riso antes de me despedir mais uma vez.

— Se cuida, Evan. Vejo vocês amanhã.

Eu voltei para casa tentando não ficar revivendo a minha conversa com Kentin. Meu coração já estava esfarelado depois de ouvir tudo aquilo, o que eu menos precisava era ficar jogando sal na ferida. Aproveitei o tempo no ônibus para contar minha pequena fuga da escola para Nathaniel, que parecia achar graça que eu tinha sido esquecida lá.

No dia seguinte, eu ainda sentia meus olhos doloridos. Eu tentei esquecer o assunto, mas antes de dormir as confissões de Kentin me atingiram mais uma vez. Eu me sentia mal em não ter aceitado suas desculpas de cara, mas também não acho que ele teria se dado por satisfeito. Eu pus uma roupa mais confortável e fui para nossa pequena reunião no café.

Os gêmeos eram os únicos lá, os dois parecendo bem mau humorados. Dei bom dia, me sentando ao lado de Alexy. Ele suspirou antes de começar a me contar o que tinha acontecido. Ouvi, quieta.

— Você também foi chamada? O Kentin acabou de me ligar explicando que queriam nos ver e que o Evan está saindo hoje do hospital por causa de uma surra que ele tomou em uma briga.

— Eu estou sabendo, eu…

— Eu já cansei de lidar com os problemas de ego desses dois. Vocês não? – Armin resmungou, deixando seu celular sobre a mesa com um pouco mais de força que o normal.

— Eu também, Armin. Bem, pelo menos, parece que o Evan está bem.

— O Kentin falou sobre o que eles queriam falar? – Perguntei, preferindo não adiantar nada. Não era responsabilidade minha preparar terreno para ninguém.

— Ele não disse, só que queria conversar. Eu não vou esperar a tarde inteira.

Não demorou muito para a dupla causadora de problemas aparecer no nosso campo de visão. Evan se sentou ao lado de Armin, que eu percebi não ter gostado muito, enquanto Kentin hesitava em se sentar ao meu lado. Puxei a cadeira, indicando o lugar. Ele agradeceu.

— Bom, obrigado por virem. – Evan falou, deixando sua jaqueta no encosto da cadeira. – Como vocês podem ver, estou quase totalmente inteiro e vivo.

— Que bom, isso quer dizer que eu posso ir embora? – Armin queria mesmo fugir daquilo, mas Kentin fez menção de segurá-lo. – Deixa eu adivinhar, você veio nos contar como deu tudo errado em uma das suas expedições noturnas?

— Armin, deixa ele falar. – Alexy pediu, tentando controlar os ânimos. Eu apenas observava, quieta. Evan pensou uns segundos antes de responder.

— Eu não estou orgulhoso do que aconteceu. Eu também percebi que eu fui longe demais com esses caras. Principalmente quando eu vi que vocês dois estavam bem assustados com a situação. – Dessa vez ele falava comigo e com Kentin. – Eu peço desculpas por forçarem vocês a presenciarem aquilo, mesmo que sem querer. E vocês também, meninos. Eu imagino que não era isso que vocês esperavam quando descobriram que tinham um irmão mais velho.

— Não mesmo. – Armin quase cuspiu, mas Alexy parecia mais contido. Ele só parecia chateado.

— Eu sei. Eu realmente quero tentar melhorar para poder merecer a convivência com vocês.

Os dois gêmeos se olharam, sem saber como reagir àquilo. Evan ficou quieto, esperando eles darem alguma resposta. Kentin, antes que eles falassem, limpou a garganta e começou a dizer.

— Eu queria falar antes que vocês decidissem qualquer coisa, eu também devo um pedido de desculpas, a todos vocês. Eu agi feito um completo babaca nos últimos tempos.

— Espera, você está falando sobre aquele dia na Moondance? – Evan perguntou, chocado com o discurso do amigo.

— Isso também, entre outros. E eu acho que o primeiro que eu tenho que pedir desculpas é pra você, Evan. Eu pulei no meio do seu reencontro com seus irmãos e simplesmente não deixei você conhecê-los individualmente. – Evan ia dizer algo, mas ele não se deixou interromper. – Eu confesso que no fundo eu estava com ciúmes de que você estava reencontrando seus verdadeiros irmãos, porque essa era a imagem que eu tinha de você antes deles. E meninos, Armin e Alexy, eu sinto muito por ter estragado todo esse momento que era pra ter sido mágico entre vocês. Eu não tinha esse direito e não faço ideia de como eu poderia consertar isso. E você, Anna, você sempre me defendeu, desde antes disso tudo, e eu te rejeitei sem pensar.

— Acabou? – A voz de Evan quebrou todo o clima de desculpas e eu considerei de verdade quebrar outra costela dele. – Kentin, todo mundo sabe que você só estava tentando se divertir, não foi tão ruim assim. Eu já te disse, você precisa agir feito um homem e parar de depender dos outros.

— Evan, pelo amor de Deus, você vai me fazer te passar outro sabão? – Eu finalmente falei, irritada. Ele fechou a cara para mim. – Você é um modelo para o Kentin, alguém que ele admira como alguém mais velho, mais seguro, mais confiante…

— Obrigado?

— Você deveria tentar agir como esse exemplo para ele, como um irmão mais velho. Como o irmão mais velho que você mesmo acabou de dizer que quer ser para os seus irmãos.

— E a acusação aqui é qual, exatamente? – Ele estava na defensiva e eu não queria piorar a situação. Respirei fundo, lembrando do que Kentin tinha me contado sobre ele.

— Eu estava agindo dessa forma para te impressionar, Evan. Para provar que eu podia ser o cara duro e forte que você me ajudou a criar…

— E o que ele quer dizer é que você tinha boas intenções, mas você foi uma péssima influência para ele. E ele está reconhecendo os próprios erros. – Alexy finalmente conseguiu encontrar sua voz e falar. Evan parecia mais aberto a ouvir quando os dois falavam.

— Enquanto você, por outro lado, estava nos levando para uns rolês horríveis sob o conceito de se divertir, mas só você se divertia.

— Você também não estava se divertindo. – Interrompi Armin antes que Evan conseguisse responder. – E no fundo você sabe que não se diverte.

— Não era minha intenção, gente. – Ele respondeu, ao que os gêmeos deram de ombros, reconhecendo que era uma pena. Eu me sentia mal em crucificar Evan daquela forma, mas ele tinha que ouvir aquelas críticas. Ele respirou fundo.

— Eu devia ter imaginado que isso aconteceria. – Ele riu fraco, como se tivesse lembrado de algo, antes de continuar. – Eu era muito novo quando ficamos órfãos. Novo demais para cuidar de vocês e também muito novo para ir parar no colégio militar. Por isso eu adotei esse comportamento...peculiar.

— Para dizer o mínimo. – Armin resmungou, irritado, mas eu só consegui prestar atenção em Evan. Eu sabia pelo jeito que ele disse que ele não ia contar aquilo para os meninos, pelo menos não tão cedo, mas ele finalmente estava se dando uma brecha para ser vulnerável. E Armin um dia entenderia como aquilo era um primeiro passo.

— É, eu sei. Eu sei que fico caçando confusão, mas foi assim que eu me construí. E toda essa raiva reprimida busca jeitos de escapar todo dia. Um dia eu conto para vocês e vai ser mais fácil entender. – Tentei não reagir, mas meu coração sentiu aquele aperto de novo. Ele mudou sua atenção para o Kentin. – Desculpa por te enfiar nisso, cara. Lá dentro, você precisou de mim, mas eu sei que esse não é mais o caso aqui fora. Você consegue se virar muito bem, eu sei. Bem, eu quero ser uma pessoa melhor, mas eu pensei nisso e...Acho que preciso de um espaço para repensar tudo.

— Você vai embora? – Alexy perguntou, ainda em choque. O irmão dele concordou, cruzando os braços.

— Eu recebi uma proposta do colégio, para voltar como instrutor.

— Evan, isso é ótimo. – Kentin disse na hora, e eu concordei. Ele sorriu, concordando com a cabeça.

— Talvez seja a minha chance de redenção, não é? Impedir que mais jovens saiam de lá com os mesmos erros que eu. E eu sei que posso melhorar antes de voltar para vocês.

Ele esperava alguma reação dos dois. Alexy correu para dizer que eles estariam lá quando ele voltasse, mas Armin ainda estava de cara fechada. Kentin estava perdido com a nova informação. Suspirei, falando com Evan mas sabendo que aquilo ficaria na cabeça de todos eles.

— Um irmão mais velho pode ser muito irritante, mas com certeza é uma das melhores coisas que se pode ter, Evan. Eu sei que vocês vão conseguir. – Ele me fitava. Eu senti aquela bola apertando minha garganta, mas consegui terminar sem começar a chorar. – Eu daria tudo para ter o meu de volta.

— Kentin, você poderia considerar isso para você. A carreira militar com certeza é um caminho para você. – Eu sei que Evan não me disse nada para não complicar a atmosfera ao nosso redor, mas eu vi que o olhar de Armin vacilou quando ele me escutou. Agora, Alexy parecia agitado quando Kentin concordou que podia pensar naquilo.

— Eu sei, mas não acho que quero voltar para lá. Eu gosto muito mais desse lado do muro. – Ficamos em silêncio um tempo, digerindo toda aquela conversa. Kentin então, como se percebesse algo, ficou de pé e me chamou para ir com ele até o parque. Os gêmeos mereciam um momento a sós com o irmão. Concordei, ficando de pé também.

E os três também entendiam que aquilo era um momento só deles. Sorri e fui atrás de Kentin, pronta para resolver mais um problema que todo aquele ciclo tinha deixado em aberto. Antes de virarmos a esquina, vi que Armin decidiu mostrar algum jogo para o Evan, que parecia bravo em perder. Sorri.

— Você aprendeu muito com ele. Ele cumpriu o papel dele. – Kentin falou, me pegando desprevenida. Ainda sorria, um pouco incerta.

Fui com ele até um dos bancos da praça, ainda ali perto e nos sentamos. Foi bom termos aquele momento de silêncio. O sol se pondo parecia a iluminação perfeita praquele momento. Eu estava pensando no pedido de desculpas dele, antes que ele começasse de uma forma bem diferente.

— Eu sempre fui apaixonado por você. – Olhei para ele, mas ele encarava a rua à nossa frente. – Você sabe disso.

Saber eu sabia, mas nunca tinha ouvido diretamente dele, ainda mais depois do seu retorno do colégio. Ouvir sua confissão tornava tudo muito mais verdadeiro e triste ao mesmo tempo.

— Desde o primeiro dia em que eu te vi...Aquela vez foi a única em que você não me defendeu, mas você me perguntou se estava tudo bem. Eu soube na mesma hora que você tinha uma energia especial, só sua. Era quase palpável. – Eu não sabia o que dizer. Aquela conversa não era a que eu achei que teríamos agora. – E quando eu soube que você estava namorando com...ele...Eu fiquei arrasado.

Ele riu, mas eu conseguia ver suas lágrimas, mais uma vez. Aquilo fazia minhas pernas tremerem e o aperto na garganta voltarem. Mesmo assim, pela forma como ele continuou, eu imaginei que ele não esperava que eu fosse reagir de alguma outra forma.

— Eu segurei a onda. Eu decidi que podia me dar por satisfeito em ser seu amigo. E claro que, como tudo na vida, eu tive que estragar tudo. Eu fui péssimo, eu sei, mas eu ainda espero que você consiga me perdoar um dia.

— Nós temos algo em comum. – Ele esperava tudo menos aquilo. Ele ainda chorava, mas agora tinha conseguido olhar para mim. Eu dei um sorriso fraco. – A gente sempre acha que estraga tudo, e no fundo a gente não estragou nada. É só que nem a gente sabia como lidar com isso. Você não estragou nada, Kentin. Eu consegui te entender com um pouco de tempo e entender que você dependeu desse personagem. Só que você não precisa ser um personagem comigo. Eu gosto de você como você mesmo, desde Ken até Kentin. Eu prefiro assim.

Ele sorriu e, pegando minha mão com cuidado, me puxou até colar sua testa na minha. Eu entendia que podia ser algo meio íntimo demais para acontecer assim, mas vê-lo sorrir entre as lágrimas me acalmou. Ele precisava daquilo, era o suficiente para ele. Sorri, chorando também, enquanto ele agradecia e finalmente escondeu seu rosto no meu pescoço, me dando um abraço.

— Eu senti sua falta. – E ficamos ali, naquele abraço até o sol sumir do céu.

 


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Notas finais do capítulo

Bem, a fic está acabando e eu estou tentando dar uma avançada no UL pra conseguir continuar (se eu decidir continuar mesmo, mas acredito que sim). Portanto, existem chances de que precise dar um tempinho depois que acabar aqui. De toda forma, esperarei vocês ♥ Boa noite!



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