A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 24
Insight




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Mia era uma kitsune jovem, ao menos se comparada à Kurama. Sua cauda bifurcada indicava que nascera há pelo menos dois mil anos, tempo o bastante para ter adquirido astúcia e malícia suficientes para sobreviver aos perigos do Makai — mas ainda longe de usufruir da mesma experiência dos demônios-raposa mais velhos.

Era nessa diferença de idade e experiência que residia a confiança de Kurama. Ele conhecia os truques que Mia escondia na manga, já que a jovem kitsune havia cruzado seu caminho em diversas ocasiões no passado, às vezes levando a melhor. Ele, porém, sabia lidar com ela.

— Não adianta se esconder — ele falou, em voz alta, em um tom imperativo — Eu sei que está por aqui.

Kurama estava sozinho, em uma planície cercada por uma vegetação exótica e cortada por um rio volumoso que corria mais a frente. Havia deixado os amigos tomando conta da pequena menina que ainda continuava dormindo, e seguido solitário atrás do rastro de Mia, que ela escondera quase com perfeição.

Ele pensou ter ouvido um barulho às suas costas e se virou, mas não encontrou nada além das plantas selvagens que dominavam o lugar. Estreitou os olhos, aguçando o olfato, muito mais apurado agora que assumira sua forma youko. Mia era arisca demais para ele arriscar assustá-la indo até ela em sua forma humana.

— Eu não tenho tempo para as suas brincadeiras, Mia! — Kurama falou mais uma vez, após escutar outro ruído, de novo sem origem aparente.

Uma risada sarcástica foi a resposta.

— Sentiu minha falta, Kurama?

Mia era uma vigarista engenhosa, dona de uma língua afiada e uma lábia infalível. Ao contrário dele, que buscara fama e poder entre os demônios do Makai, Mia preferia o anonimato, aplicando golpes sob os mais diversos codinomes. Eram poucos os que conheciam sua verdadeira identidade — e Kurama era um deles.

— Sentir falta de uma kitsune que nem consegue escapar da prisão? — ele riu — O que houve, perdeu o jeito?

A jovem youkai se materializou na frente de Kurama. Era alta, quase tanto quanto ele, e possuía longos cabelos dourados que lhe passavam da cintura, combinando com o rabo e as orelhas pontiagudas da mesma cor. No rosto, uma expressão ofendida.

— Por acaso não está me vendo? — respondeu, indignada — Talvez você não saiba, agora que anda enfurnado com os humanos, mas eu fui a única, eu disse a única — ela frisou — a escapar da ala de segurança máxima do Centro de Detenção do Reikai!

— Não foi isso que eu fiquei sabendo...

— E o que é que você sabe? — Mia continuava encarando ele com seus olhos turquesa vibrantes, seu ego ferido pelo ultraje daquelas palavras.

— Que você só foi solta por que aceitou fazer um acordo.

— Os meus métodos não te interessam.

— Então é verdade?

Ela não respondeu de imediato. Virou as costas para Kurama e deu passos provocantes até uma árvore próxima, de onde colheu alguns frutos silvestres.

— Depende... — falou, lançando um olhar dissimulado —Eu sei que não veio até aqui para saber como eu estou. Então me diga o que você quer, que eu vejo se posso te ajudar.

Ela mastigava cada frutinha vagarosamente, olhando diretamente para ele com uma expressão gaiata no rosto.

— O acordo, ele aconteceu? — perguntou, tentando ser o mais cauteloso possível.

— Por que quer saber?

— Só responda 'sim' ou 'não', Mia.

— Hum... — ela murmurou, se divertindo com aquela situação — talvez...

— Que acordo foi esse?

— Sinto muito, próxima pergunta.

— Com quem ele foi feito?

Mia revirou os olhos

— Chuchu, você está cansado de saber as regras do jogo: eu não comento negócios, eu não revelo nomes — disse, andando de volta até ele. Contornou o corpo de Kurama e, afastando os cabelos prateados de sua nuca, falou bem próximo ao ouvido — Use a cabeça.

Ele sabia que Mia estava certa. Ela podia ter um caráter duvidoso, mas tinha seus princípios e era regida pelo próprio código de conduta. Kurama não iria arrancar nada dela daquele jeito — e usar força bruta também não estava nos seus planos. Claro, venceria fácil no combate corpo a corpo, já que Mia não era uma lutadora, mas aquela batalha deveria ser ganha de outro modo.

— Muito bem — Kurama começou, cruzando os braços e entrando no jogo de Mia — Você não pode me contar diretamente o que sabe, mas e se nós não estivermos falando de você especificamente?

— Interessante... continue — sussurrou, ainda brincando com os longos cabelos de Kurama.

— Por exemplo, vamos supor que uma certa youkai tenha descoberto algum segredo importante... importante o bastante para precisarem comprar o silêncio dela. Por que oferecer a liberdade? Não seria mais seguro simplesmente eliminar essa ameaça?

— Hum... talvez porque essa youkai seja esperta o bastante para garantir que o segredo se espalhe caso ela venha a sofrer o menor arranhão.

— Você está dizendo que outras pessoas também sabem disso?

— Ei, eu não estou dizendo nada!

Kurama suspirou, decidindo seguir adiante.

— Então essa youkai teve a ideia de chantagear alguém em troca da saída da prisão... mas como evitaria ser recapturada pelo Esquadrão depois da suposta fuga?

Ela manteve o silêncio. Voltou a caminhar lentamente, se dirigindo para a frente de Kurama com os olhos virados para cima, em uma cara inocente. Continuava sorrindo sem dizer uma palavra.

— Mesmo que tenha feito um acordo com alguém de alta patente do Esquadrão, o Comandante Liu ou, em último caso, o Rei Enma, iriam colocar um novo mandato de busca atrás de você.

— Opa, sem pronomes por aqui! Não estamos falando de mim — ela disse, em tom de aviso.

Kurama olhou intrigado para a demônio-raposa a sua frente. Ela havia sido capturada anos atrás, depois de séculos sendo perseguida pelos mais diversos golpes que aplicava no Mundo dos Humanos. Escorregadia do jeito que era, sempre conseguia se esquivar da prisão. Por isso, quando finalmente foi apanhada, foi levada quase como um troféu para a cela de segurança máxima — um exagero para muitos, já que nem de longe era tão perigosa quanto os assassinos com quem dividia o Centro de Detenção, mas não para o orgulho ferido do Rei Enma, que tantas vezes havia sido feito de palhaço pela kitsune. Para ele, manter Mia como prisioneira era uma questão de honra.

— Ok, então como essa youkai pode ter certeza de que não será mais importunada?

— Digamos que essa youkai sabe fazer negócios com a pessoa certa... — respondeu, piscando um olho.

Kurama parou, pensativo. Tinha ido ao Makai a pedido de Koenma para arrancar de Mia qualquer nome que pudesse estar envolvido no esquema do qual ele agora era vítima. Sua hipótese era de que sua fuga havia sido facilitada por alguém de dentro, e que as demais evasões — todas de infratores sem importância — foram apenas permitidas como forma de distrair a atenção para o que realmente estava acontecendo. Koenma, pelo visto, estava certo, e Mia de fato parecia ter informações comprometedoras, mas ela não falaria nada tão claramente.

— O nome Fantasma significa alguma coisa? — perguntou.

— Uau, você está bem informado!

— Ele tem alguma coisa a ver com tudo isso de que estamos falando?

Ela respondeu com uma risadinha enquanto sentava calmamente em uma pedra. Estava adorando aquele jogo, principalmente porque considerava Kurama um jogador à altura. Todas as vezes em que se esbarraram no passado tinham resultado em situações excitantes, e aquela não era diferente.

— Você... — ele interrompeu a frase, sob o olhar atento de Mia — essa youkai por acaso descobriu quem era o Fantasma e o que ele vem fazendo por baixo dos panos no Reikai?

Mia balançou a cabeça sugestivamente, levando à boca a última frutinha que ainda tinha nas mãos, saboreando o momento e a guloseima igualmente.

— Como?

— Sabe... — ela respondeu, despretensiosa — alguns apelidos falam mais sobre a pessoa do que o próprio nome...

Kurama refletiu por alguns segundos, tentando acompanhar aquela linha de raciocínio.

— "Fantasma"... ele significa alguma coisa, não é só um nome aleatório qualquer — falou, ainda observando a reação de Mia — Uma entidade...?

Ela arregalou os olhos e abriu um sorriso empolgado, como se esperando pelo clímax.

— Uma entidade importante no Reikai... que deixou a maior conquista do Rei Enma ficar livre sem ser importunada...

Mia esticou o pescoço para frente, aumentando ainda mais a largura do sorriso.

— ... que tentou barrar a investigação de Koenma!

Kurama prendeu a respiração. A resposta o atingiu como um raio.

— O próprio Rei Enma!

A youkai ria completamente à vontade, não compartilhando a tensão que invadiu o corpo de Kurama.

— Essa é uma acusação muito grave... Você tem certeza disso?

— Você me ouviu acusar alguém?

Ele chegou mais perto dela, puxando seu braço com irritação e a fazendo ficar de pé, o corpo dos dois quase colados de tão próximos.

— Mia, chega de joguinhos! Esse é um assunto sério!

Ela puxou o braço de volta, se livrando da mão dele.

— Eu já falei que não abro a boca para falar de negócios! — respondeu, igualmente irritada com a atitude dele — Você já chegou na conclusão que queria, fique satisfeito com isso!

Eles se encararam, os olhos faiscando a centímetros um do outro.

— Como eu sei que você não está me enganando? Que me induziu a pensar que Enma está por trás disso tudo apenas para tirá-lo do seu caminho?

Mia deu de ombros.

— Aí eu já não posso fazer nada...

Ele levantou a mão, pronta para agarrá-la de novo, mas a jovem foi mais rápida e saltou para o alto de uma árvore em um movimento gracioso, pousando de modo preciso em um dos galhos.

Kurama se preparou para ir atrás dela, pulando no mesmo galho, mas em uma fração de segundos Mia já havia sumido de vista.

(...)

Kiki olhava para os papéis espalhados a sua frente sem conseguir se conter. Finalmente havia encontrado informações consistentes sobre a Red Society e sobre toda a operação de tráfico humano que ela organizava — incluindo nomes de contatos e endereços de entrega da 'mercadoria', termo que ela achou repugnante.

Estava sentada no chão do escritório da casa de Akira, localizada graças ao endereço fornecido pelo médico. A residência era afastada da cidade e seus vários cômodos, cheios de móveis fechados a chave e com fundos falsos, o que tinha dificultado bastante o trabalho de Kiki. Porém, o que Akira tinha de precavido, a garota tinha de determinada, e conseguira entrar na casa deserta sem chamar a atenção e revirar cada gaveta e armário que encontrou — seus poderes mentais dando uma ajudinha nos casos mais complicados.

Vinha treinando em casa como abrir cadeados e fechaduras só usando sua energia espiritual e tinha conseguido um resultado bastante razoável. Finalmente teve a chance de pôr em prática o truque para algo útil de verdade, fazendo valer a pena todas as horas gastas naquele treino.

O material que encontrara era mais completo do que ela esperava, e, por via das dúvidas, separou tudo que conseguiu em uma das pastas de elástico que estava por perto.

Foi quando reparou em outra pasta, do tipo com divisórias, e com uma pequena etiqueta colada na frente. "Contratos encerrados", dizia a inscrição.

Ela abriu a pasta com curiosidade, folheando as divisórias separadas em ordem alfabética. Puxou alguns papéis, se dando conta de que se tratavam de fichas com dados pessoais do que ela julgou serem antigos funcionários da Red Society.

Uma lembrança imediatamente lhe veio à cabeça, e ela parou por um segundo, na dúvida se devia continuar ou não. No fundo, achou que seria melhor por aquilo de lado, mas mesmo assim as mãos seguiam passeando pelas divisórias da pasta, como se não pudesse mais controla-las.

Seus dedos já estavam trêmulos quando alcançou a letra F. Tirou as folhas da divisória, o coração aos pulos.

Começou a analisar uma a uma. As fichas pareciam nunca acabar — e por um lado, ela torceu para que nunca acabassem, tamanho o medo que sentia naquele momento. No entanto, ela continuou. Virou folha após folha até achar a que menos queria encontrar.

Fujimoto, Ken.

O assassino da sua mãe.

A foto não deixava dúvidas. O mesmo rosto de quase dez anos atrás, o mesmo nome do cartão. A certeza trouxe lembranças tão fortes na sua cabeça que ela teve vontade de vomitar, seu corpo suando frio com a descoberta que ela preferia não ter tido. Sua mão segurava a folha com tanta força que chegava a amassar o papel, e ela agora não sabia o que fazer.

Ficou paralisada, chegando a se esquecer por um momento de onde estava.

Só voltou à realidade quando ouviu uma voz familiar a despertando daquele transe.

— Ora, ora, que surpresa agradável!

Ela ainda levou alguns segundos tentando raciocinar, e precisou se virar para ter certeza de que ouvira direito.

O autor daquela frase estava parado apoiado no batente da porta do escritório, os braços cruzados e um sorriso desdenhoso no rosto.

Akira.

Kiki levantou apressada, tropeçando nas próprias pernas. Em um impulso, arremessou nele a primeira coisa em que bateu os olhos, fazendo com que os pesados livros de uma estante lateral voassem em direção à porta.

— Que agressividade toda é essa? — ele perguntou, depois de abaixar a cabeça para se esquivar dos livros — Eu que deveria estar com raiva pela bagunça que você fez na minha casa.

— Não chegue perto de mim! — ela gritou, dando mais um passo para trás e enfiando a folha amassada de qualquer jeito no bolso do casaco.

Ele riu ao ver aquela cena.

— O que é isso, Kiki? Está com medo de mim?

— Esqueceu que você quase me matou da última vez que nos encontramos? — ela respondeu, muito mais com raiva do que com medo.

Uma nova risada tomou conta do escritório, deixando a garota ainda mais alerta. Com ele bloqueando a porta, sua única saída seria pela janela do outro lado da sala.

— Kiki, Kiki... se eu quisesse que você estivesse morta, você estaria. Aliás, se eu quisesse, já teria te sequestrado anos atrás quando te conheci e você hoje seria só mais um número nas contas da Red Society.

— Por que não fez isso, então? — disse, tentando ganhar tempo enquanto dava pequenos passos disfarçadamente em direção à janela.

— Eu pensei em fazer, estava nos meus planos... mas sei lá, gostei de você. Acho que fui com a sua cara e decidi te dar uma chance.

— Está arrependido?

Ela deu mais um passo discreto, a janela agora a pouco mais de três metros de distância.

— Nem um pouco. Você era uma companhia e tanto — ele respondeu — Quase uma irmã mais nova.

Foi a vez de Kiki soltar uma gargalhada.

— Essa foi a maior canalhice que eu já ouvi na vida!

Ele riu junto, consciente do exagero proposital das próprias palavras. Seu interesse em Kiki nunca teve origens nobres, muito pelo contrário.

— Você tem razão. Mas é verdade quando digo que tenho um certo carinho por você, e por isso lamento essa situação que estamos agora.

— Então me deixe ir embora!

Ela estava quase chegando perto da parede onde se encontrava a janela. Só precisava de mais alguns passos.

— Se você tentar sair por essa janela, vou ser obrigado a quebrar sua perna, e eu não quero fazer isso — Akira disse, assumindo um tom sério.

A ameaça fez ela parar. Ponderou por um tempo se valia a pena arriscar mesmo assim, sem no entanto conseguir tomar uma decisão.

— Vamos conversar. Se você depois disso ainda quiser sair, eu não irei te impedir. Só peço que me escute, está bem?

A garota olhou surpresa, tentando enxergar a armadilha contida naquele pedido.

Akira deu um passo para o lado, se afastando da porta e abrindo passagem. Apontou com os braços para fora do escritório, em um convite para que a menina saísse na sua frente.

— Vamos?


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Notas finais do capítulo

Alou você que chegou até aqui!

O que está achando da história? Boa, chata, mais ou menos?

Todas as opiniões são super bem-vindas e apreciadas! A autora agradece =)