A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 23
Cicatrizes




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/656165/chapter/23

A paisagem corria apressada pela janela do trem, fazendo com que as árvores, postes e prédios fossem sumindo ao longe de uma maneira quase hipnótica. Sentada na janela do último vagão, Kiki observava distraída o mundo exterior passar por ela. Gostava de viajar assim, sentada de costas para a frente do carro, contemplando o cenário que deixava para trás e que parecia fugir das suas mãos.

Ela suspirou, encostando a testa no vidro. Era a segunda vez na vida que fazia aquela viagem. Chegou a sentir o estômago revirar ao lembrar do que a motivara a ir para lá da primeira vez.

Tinha sido quase um ano atrás. Naquela época, era frequentadora assídua das festinhas particulares de Akira e, vez ou outra, quando abusava das drogas e das bebidas servidas à vontade em tais ocasiões, acordava tendo que recolher suas próprias roupas espalhadas pelo chão de algum quarto de hotel. Não se preocupava muito com isso na época: a ressaca e as eventuais crises de pânico que às vezes o ecstasy provocava eram muito mais incômodas.

E levava a vida assim até o dia em que os efeitos de uma das noitadas reapareceram dois meses depois, na forma de enjoos matinais e um significativo atraso no seu ciclo menstrual. Desconfiada, arranjou um teste de farmácia e teve a confirmação em casa. Ela se lembrava do momento em que, sentada no chão do banheiro, olhava em choque para aquela tira de papel enquanto lia pela milésima vez as instruções que explicavam o que aquelas listras significavam.

Sua reação imediata foi ligar para Akira, que dividia com ela a responsabilidade daquele infortúnio — disso tinha certeza. Estava tremendo quando pegou o telefone e continuou assim quando se encontraram, uma hora depois. Ele, no entanto, não parecia impressionado. Perguntou se ela tinha certeza e não mudou o tom de voz em nenhum momento. Não estava bravo, nervoso, agitado ou nem mesmo preocupado: falava como se estivessem discutindo algum assunto banal e sem importância. Só depois passou pela sua cabeça que provavelmente aquela não era a primeira vez em que ele corria o risco de ser pai.

Foi então que ele puxou o cartão do bolso, o cartão com o ideograma Aka e seu nome embaixo. A lembrança da morte da mãe veio na mesma hora, mas Kiki estava nervosa demais para reviver aquela polêmica. Apenas aceitou o cartão e as instruções de procurar o médico em Chiba. "Dê isso a ele, e ele vai saber cuidar de você", Akira disse antes de se despedir.

Ela chegou a pedir que ele a acompanhasse na viagem, mas o advogado recusou e nem mesmo se ofereceu para levar a garota, com seus quase 14 anos, à estação. Já tinha feito sua parte, era isso que importava.

Kiki pegou um dos primeiros trens no dia seguinte, ansiosa para acabar logo com aquilo. Lembrava-se do olhar indiferente do Dr. Maeda, que nada falou ao ver aquela menina na sua sala. Apenas tomou o cartão de Akira das suas mãos e a acomodou na cama para o procedimento cirúrgico. Ela voltou para casa algumas horas depois, já sem carregar no ventre o motivo principal daquela viagem e disposta a nunca mais pensar no assunto.

Kiki nunca contara a história para ninguém, por isso não entendeu como, tantos meses depois, ela veio a se espalhar. O boato correu toda a escola, de uma maneira tão incontrolável que chegou ao ouvido dos professores e do diretor. Seu pai foi chamado ao colégio e ela foi obrigada a passar por uma bateria de exames ginecológicos — já que os rumores também incluíam uma extensa lista de doenças que ela supostamente teria contraído. Em casa, recebeu uma das surras mais memoráveis até então, chegando a ficar com o braço inchado por dias. Kiki se forçava a não ligar para o que diziam e pensavam a respeito dela, mas estava ficando impossível ignorar os dedos apontados e as fofocas que corriam soltas pelos corredores. A situação ficou tão insustentável que, semanas depois, recebera a notícia de que seria transferida de escola. Segundo o diretor, "para preservá-la". A garota sabia, no entanto, que o ato mirava mais preservar a reputação da própria instituição de ensino do que a dela.

Agora Kiki estava de novo naquele maldito trem, de uma certa forma, por causa daquele maldito cartão. E enquanto olhava o horizonte pelas janelas do comboio, se perguntou se o Dr. Maeda se lembraria dela...

(...)

O quarteto seguia o bando de Goro em silêncio, seus ouvidos e olhos atentos a qualquer movimento suspeito. A luz do sol entrava na mata fechada através de pequenas brechas nos galhos das árvores, trazendo feixes cintilantes que cortavam a escuridão. Até mesmo o vento tinha sua passagem dificultada entre aquela floresta, deixando o ar pesado.

Aos poucos, o ambiente começou a clarear, um indício de que aquela paisagem em breve ficaria para trás. Da mesma forma, as árvores já rareavam, ampliando o espaço por onde agora caminhavam. Foi quando ouviram um dos capangas de Goro soltar uma exclamação e correr para um ponto mais adiante, já fora dos limites da floresta. Os demais o imitaram, disparando na mesma direção.

Encontraram uma pequena menina desmaiada, a perna manchada de sangue e uma simplória atadura — feita de um tecido gasto e imundo — amarrada em um nó desajeitado em volta da ferida. A garota, de feições pueris, trajava um vestido roto e simples, sem adereços, e seu rosto e cabelo estavam sujos e ressecados. A pele do corpo, tão imunda quanto todo o resto, começava a dar sinais de magreza, com alguns ossos já salientes.

— Uma humana, por aqui? — indagou o demônio que saíra na frente — Estamos com sorte!

Ao dizer isso, ergueu a criança no colo, salivando pelo odor característico que aquela carne humana exalava.

— Seu estúpido! Solte a menina!

Todos se viraram surpresos. Kuwabara empunhava sua espada de energia, abrindo espaço entre os presentes.

— Nem vem! Eu vi primeiro! — o demônio respondeu, apertando a menina ainda mais próximo do corpo — Fazia tempo que não tínhamos carne humana para o jantar...

— Desgraçado! — Kuwabara se projetou em direção a ele, parando a poucos centímetros de distância. Não deixaria a criança ser devorada, mas ao mesmo tempo, temeu a ferir, já que agora era posta na sua frente, servindo de escudo para aquela besta.

A ousadia de Kuwabara não foi encarada muito bem pelo restante do grupo. Agora, todos os demônios, incluindo Goro, sacavam suas próprias armas, em um gesto ameaçador.

— O que está acontecendo aqui? — Goro falou — Abaixe a espada!

— Nada disso — uma nova voz foi ouvida. Dessa vez, Yusuke levantava a mão com o dedo apontado para o líder do bando, indo em defesa do amigo — Deixe a garota conosco.

Goro soltou uma risada tenebrosa, que ecoou pelo espaço.

— Você acha mesmo que é páreo para nós, moleque?

— Se ousar atacar, vai ter que nos enfrentar também — Kurama disse, em resposta à provocação do demônio. Na mesma hora, puxou uma rosa de trás dos cabelos, invocando seu Rose Whip.

Hiei a essa altura também já estava com a espada a postos para um eventual ataque. Não precisava de muitos motivos para cortar a garganta de Goro e de seus antigos companheiros.

O sujeito que carregava a criança ainda firme no colo olhou para seu líder, como se aguardando alguma ordem. Não estava disposto a entregar aquela presa tão facilmente. Raramente tinha oportunidade de degustar uma iguaria como aquela.

Então se fez o caos. O ataque foi simultâneo de ambos os lados. O grupo de Yusuke sofria com a desvantagem numérica, mas compensava com a agilidade e destreza de seus componentes.

O time de Goro, no entanto, era vigoroso. Resistia aos golpes recebidos e revidava com energia com suas lanças e sabres afiados. Não fosse a grande experiência em combate que os quatro haviam desenvolvido ao longo do tempo, o massacre teria sido breve e com resultados muito mais trágicos.

Yusuke ganhou tempo atirando, com seu Shotgun, múltiplos disparos ao mesmo tempo, atingindo ao menos três dos inimigos que vinham em sua direção. O golpe era útil em momentos como aquele, em que se sentia encurralado e precisava de uma saída rápida; o único problema era que, da mesma forma que sua energia era desmembrada em várias pequenas esferas, sua força era igualmente diluída, sendo insuficiente para levar ao chão um oponente mais robusto. Mesmo assim, a estratégia se provou válida: atordoados, os demônios eram facilmente abatidos com os socos violentos do rapaz.

Enquanto isso, Hiei e Kurama desviavam com facilidade dos ataques. A katana e o chicote não encontravam barreiras, e desmembravam sem piedade o que tocavam. Até mesmo Kuwabara, cego pelo objetivo de resgatar a criança desfalecida, arremetia com raiva, sua espada trazendo perdas para o time adversário. Só parou quando enfim conseguiu tomar a menina para si, jogando para longe o demônio agora desacordado.

Olhou para trás e viu o resultado da carnificina traduzido em corpos mutilados, enquanto os poucos sobreviventes fugiam escondidos. Avistou também Goro caído sentado no chão, sua arma já fora de alcance. A sua frente, Hiei mantinha a lâmina da espada apontada para a face do rival, seus olhos vermelhos tomados de rancor.

— Eu te criei, Hiei! É assim que você me agradece depois de tantos anos? — ele disse, em tom de súplica.

— Correção: você me abandonou, como todos os outros. Não é diferente daquelas Mulheres de Gelo idiotas.

E dizendo isso, ergueu a espada, pronto para tirar a vida daquele ser que agora se acuava diante de Hiei. Desceu a katana com força, mirando o pescoço de Goro, mas sentiu seu braço ser interrompido no ar.

— Isso não é necessário — Kurama falou, segurando o amigo — Ele já aprendeu a lição.

— Sua raposa maldita! Não se meta! — ele gritou.

Kurama soltou o braço do companheiro, e se virou para se afastar da dupla.

— Vamos. Estamos perdendo tempo — disse, se distanciando.

Hiei olhou novamente com raiva para Goro, a espada ainda em mãos prontas para o golpe derradeiro. No último segundo, porém, mudou de ideia.

— Você está com sorte — resumiu. Abaixou a mão, guardando a arma na cintura. Se juntou ao grupo, deixando Goro para trás e torcendo para que ele nunca mais cruzasse o seu caminho.

(...)

Maeda chegou em seu consultório na primeira metade da manhã, como sempre fazia. Gostava de acordar cedo e tomar um café da manhã demorado antes de começar as consultas do dia. Já na meia idade, era ginecologista há mais de 20 anos e estava habituado a receber todo tipo de paciente — desde mulheres maduras até jovens inexperientes. Por isso, não estranhou encontrar uma adolescente o esperando na sua sala aquele horário. O que estranhou foi o fato da menina estar sentada em cima de sua mesa, mascando displicentemente um chiclete enquanto pegava um dos porta-retratos dispostos na bancada.

— Desça já daí, sua mal-educada! — ele ralhou, fechando a porta atrás de si — Quem é você?

— Oi, doutor — a jovem falou, estourando a bola de chiclete que havia formado na boca.

— E não mexa nas minhas coisas! — disse, tirando o porta-retrato da mão da menina e devolvendo ao lugar de origem.

— Relaxa, vamos conversar.

Kiki continuou sentada no tampo da mesa, ignorando a ordem do médico, que olhava com uma expressão carrancuda para ela, ainda de pé no meio da sala.

— Vai, senta aí — ela pediu, empurrando com o pé uma das cadeiras na direção dele.

O homem fuzilou a garota com o olhar, indignado com aquela atitude, e virou o corpo para trás, enquanto reclamava em voz alta algo sobre as péssimas maneiras dos jovens de hoje em dia. Girou a maçaneta e entreabriu a porta, chamando pela secretária. Na mesma hora, no entanto, a porta se fechou com um estrondo, escapando das mãos do médico.

— Tsc! Falei para se sentar! Só quero conversar um pouco — Kiki falou, irritada.

Ele ameaçou reabrir a porta, mas para sua surpresa, a chave que pendia da fechadura girou sozinha, trancando a sala. Logo em seguida o chaveiro voltou a se mexer, dessa vez planando delicadamente em direção à mesa onde a jovem se encontrava.

— Eu fico com isso — ela disse, guardando a chave no bolso.

— Quem é você? — o homem perguntou, espantado.

— Isso não importa — respondeu, notando que ele realmente não se lembrava dela. O fato não a surpreendeu: era só mais uma das meninas que ele devia receber com frequência no consultório. Com o aborto legalizado no país, aquele procedimento certamente não seria novidade para ele — O que importa é quem você é. E eu sei que você trabalha para a Red Society.

Maeda sentiu todo o sangue esvair do seu rosto no minuto em que ouviu aquele nome. Chegou a hesitar um instante, mas disfarçou seu pânico em passos apressados ao contornar a mesa e ir direto ao telefone fixo acomodado ali.

— Eu não sei do que você está falando! — conseguiu dizer, enquanto tirava o telefone do gancho e discava um número.

Kiki girou o tronco, apoiando um dos joelhos em cima da mesa. Olhou com raiva para o aparelho nas mãos do médico, e então, como se puxado por um cabo invisível, o telefone foi arremessado contra a parede, sendo arrancado da tomada e se quebrando em alguns poucos pedaços.

A cena fez o médico se sobressaltar. Por instinto, deu um passo para trás, se afastando da menina e colando o corpo na enorme janela de vidro.

— O que você quer? — disse com a voz trêmula.

— Olha aqui, velhote, eu não estou brincando! Vamos parar com esse teatrinho!

Maeda engoliu em seco, ainda apavorado com aquela adolescente em fúria no seu escritório.

— Eu-eu não trabalho para eles.

— Mentira! — ela gritou, batendo forte a mão no tampo da mesa onde ainda estava sentada — Eu sei que você é comparsa do Akira!

E como ele continuava mudo, ela acrescentou:

— O que será que sua linda família de comercial de margarina vai achar disso, heim? — e apontou com a cabeça para o porta-retrato na bancada, que exibia Maeda com a esposa e duas crianças.

— E-eu... Você não tem provas! Eu não tenho nenhuma ligação com eles!

Kiki revirou os olhos. Estava começando a perder a paciência com aquele sujeito. Não tinha vindo até aquele maldito lugar para voltar de mãos abanando.

— Você prefere arriscar, seu idiota? Dá pra fazer um puta estrago na sua carreira com um boato desses...

Ele arregalou os olhos e ela soube que ele tinha finalmente mordido a isca.

— Ok, eu falo, mas deixe minha família fora disso, por favor — ele soluçou — eu... eu era cliente de Akira.

Kiki olhou confusa para o médico, e cruzou os braços pedindo explicações.

— Conheço Akira há alguns anos. Ele foi meu fornecedor por muito tempo.

— Fornecedor de quê? Do que você está falando?

— Você sabe... — ele sussurrou — fitas de vídeo, fotos... essas coisas.

A garota franziu as sobrancelhas, incrédula.

— Merda — ela falou baixinho, para si mesma. Tinha esperanças de que Maeda fosse alguém de dentro da organização, mas se era um simples cliente, seus planos de conseguir algo estavam indo por água abaixo.

— Tá bom — respondeu — O que você sabe sobre o Grego? — e ele olhou com uma genuína expressão de ignorância — Fantasma? — ela insistiu, mas ele apenas balançou a cabeça, sem entender, fazendo ela bufar impaciente.

— Ok, pelo menos me dá o endereço do Akira. Eu sei que ele está sempre por aqui.

— Ele está viajando, você não vai encontrá-lo — respondeu.

— Não foi isso que eu perguntei! — Kiki gritou, assustando mais uma vez o médico, que, com as mãos vacilantes, rabiscou um endereço num pedaço de papel e entregou para a menina.

Ela deu uma olhada naquela anotação e guardou o papel dobrado no bolso. Pulou para o chão, acomodando a mochila nas costas, e tirou o chiclete da boca, o grudando em baixo da mesa do consultório.

Andou até a saída e, depois de destrancar a porta, deu uma última olhada para trás.

— Ó... — disse, fazendo um gesto com a mão que imitava um zíper selando a boca — senão... — e apontou para o porta-retrato.

O doutor, ainda nervoso, balançou a cabeça, concordando, e ela então desapareceu, batendo a porta depois de passar.

(...)

Repousaram a menina próximo à sombra de um arbusto. O sol naquela hora era forte e deixava o grupo exaurido. Estavam preparados para enfrentar os mais poderosos adversários, mas o calor liderava como o pior inimigo no momento.

Kurama aproveitou a parada para checar os sinais vitais da criança. Verificou o pulso e a respiração, notando que, apesar de fracos, ainda estavam presentes. Seu corpo, entretanto, ardia em brasa, e a boca, ressecada, dava sinais de desidratação.

— Como essa garota veio parar aqui? — perguntou Kuwabara, que observava o amigo umedecer uma pequena toalha com água mineral e a levar aos lábios da menina.

— Acho que eu sei como... — ele respondeu, pensativo.

Vasculhou as vestes esfarrapadas da jovem, mas a única coisa que encontrou foi um pequeno embrulho contendo pequenas pastilhas em um tom rosáceo. Chegou a analisar aquele conteúdo, mas, sem chegar a nenhuma conclusão, voltou a fechar o papelote e o guardou na mochila.

Distribuiu a água entre o grupo, que bebeu com vontade. Em pouco tempo já estavam de volta à estrada, a menina inconsciente nos braços dos rapazes que agora se revezavam para carregá-la.

Ainda havia muito caminho pela frente. Pelos cálculos de Kurama, precisariam de mais algumas horas até alcançarem o destino final — e ainda teriam que contar com uma pitada de sorte. Kitsunes eram uma das entidades mais espertas que habitavam o Makai — Kurama, como exemplar membro da raça, sabia bem disso. Tais raposas eram ágeis, astutas e ótimas em se esconder de visitantes indesejados. Ele sabia que o youko que procuravam fazia jus a todas essas qualidades, mas não se preocupava muito. Não tinha sido à toa que Koenma elegeu Kurama para aquela missão. Afinal, nada melhor do que um kitsune para encontrar outro kitsune.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!