A conspiração escarlate escrita por Drafter
Notas iniciais do capítulo
Notas explicativas no final da história.
E o título do capítulo é referência à música Turning Tables, da diva Adele S2
— Alguém faça essa menina calar a boca! — Hiei exclamou, tampando os ouvidos.
A criança havia finalmente despertado, e agora enchia o pequeno acampamento improvisado com seus gritos. Assustada ao ver que tinha sido capturada, ela não dava chance para que nenhum dos rapazes conseguisse explicar quem eram ou o que estava acontecendo.
Yusuke e Kuwabara se olharam desolados. Kurama não havia regressado do encontro com Mia, e tudo que haviam combinado antes de ele partir era que, caso a menina viesse a acordar, tentariam obter informações sobre os responsáveis por ela estar ali, naquele estado. "Ela pode ser a chave para acabarmos com isso de uma vez", Kurama dissera, e todos concordaram. Só não imaginavam quão difícil seria aquela tarefa.
— Para alguém tão pequeno, você até que tem bastante fôlego, heim? — Yusuke falou, tentando uma nova aproximação.
A menina reagiu escondendo o rosto e se afastando ainda mais. Ela não os deixava chegar perto, fosse para tratar a ferida da perna ou mesmo oferecer comida. Chegaram a ficar impacientes, mas depois se deram conta, melancólicos, que ela devia ter seus motivos para ficar tão apavorada na presença de estranhos. Certos traumas, concluíram, eram difíceis de superar.
(...)
O aborrecimento causado pelo sumiço de Mia não tardou a desaparecer. Kurama tinha certeza de que ela iria atrás dele, era só questão de tempo.
Ele abriu a mão, baixou o rosto para o pequeno pingente brilhante que segurava e seus lábios esboçaram um sorriso sarcástico.
Hoshi no tama¹. A esfera estelar de Mia.
Todos os kitsunes carregam consigo uma dessas esferas, uma pequena pérola incandescente que detém parte de seus poderes e um pedaço de sua alma. Ficar separado por muito tempo daquela jóia poderia significar a morte para um demônio-raposa.
Por isso os youkais mais experientes da raça a escondem com tanta engenhosidade que se torna virtualmente impossível qualquer pessoa colocar as mãos nela. Mia, no entanto, era descuidada demais, e Kurama, um ladrão astuto. Não tivera a menor dificuldade em furtar a esfera quando se aproximaram por alguns instantes, sem ela nem ao menos perceber.
Só precisava de paciência, e isso ele tinha bastante. Mia voltaria, e faria qualquer coisa para recuperar sua hoshi no tama.
Começou a andar de volta para o local onde os amigos estavam. A youkai saberia como encontrá-lo.
(...)
— Matcha?²
— Eu não quero nada! — Kiki respondeu, irritada. Estava sentada na ampla cozinha da casa de Akira, e nem mesmo a oferta do seu chá preferido melhorava seu humor por estar naquela situação que beirava o absurdo.
Ele ignorou a resposta da menina e pegou duas pequenas tigelas de porcelana do armário, depositando cuidadosamente duas colheres do pó verde em cada uma. Jogou água quente na primeira vasilha, mexendo rapidamente com o chasen³ até todo o pó estar uniformemente diluído. Repetiu o processo na segunda tigela.
— Você sabia que a água precisa estar a 80ºC para que todo o sabor do matcha seja liberado? — ele continuou, mas ela já não prestava atenção. Se sentia uma idiota por ter se deixado encurralar daquela maneira e a única coisa que ocupava sua cabeça naquele momento era encontrar uma maneira de sair dali.
Akira pacientemente depositou a porcelana com o líquido verde na frente de Kiki, enquanto se sentava na cadeira oposta com a segunda vasilha em mãos. Levou o chá quente à boca e o sorveu sem pressa.
— Como você foi se envolver com tudo isso? — ele perguntou.
— É uma longa história — respondeu, ainda mal-humorada — e não é da sua conta!
— Marrenta como sempre, não é? — Akira riu. Kiki permanecia séria. O chá a sua frente, intocado — O que você acha que sabe sobre o que está acontecendo?
— O suficiente para querer acabar com essa quadrilha de uma vez — replicou.
Akira deu mais um gole no chá.
— Kiki, deixa eu te explicar uma coisa: a Red Society existe há algumas décadas; o tráfico humano, há mais tempo ainda. Não fomos nós que inventamos, e com certeza não somos os únicos a lucrar com isso.
— Isso não importa! — ela gritou, quase derrubando a tigela com o chá.
— Muito bem — Akira falou, sem se abalar — e o que você sabe sobre o Reikai? O que o seu namoradinho te contou?
— Ele não é meu namorado — murmurou entre os dentes — E que diferença isso faz? Por que estamos perdendo tempo com isso?
— Só não acho justo você saber só de um lado da história.
— Do que você está falando? — disse rispidamente. A calma dele a deixava ainda mais inquieta.
Ele a encarou por um instante, em seguida baixando a vasilha com o líquido quente.
— Você não acha estranho essa perseguição toda só começar agora? Nossos assuntos com o Makai já existem há meses — Akira começou. Kiki abriu a boca para responder, mas ele a interrompeu — Eu sei que você vai dizer que a atividade estava sendo encoberta, membros corruptos do Esquadrão Especial e blá blá blá. Você está certa. E então você concorda que nós não somos os únicos vilões da história? Que o Plano Espiritual também tem culpa no cartório?
— Koenma está cuidando disso — ela se limitou a responder.
— E se você realmente acha que ele vai conseguir resolver alguma coisa, é tão inocente quanto ele. Sabe, no começo eu cheguei a me preocupar. Toda essa confusão de Koenma colocando um detetive espiritual na minha cola me deixou um pouco apreensivo... — Akira falou — Mas já não me incomodo mais. Aliás, talvez a gente até saia ganhando com tudo isso.
Kiki olhou sem entender. Ainda estava tentando imaginar quais eram as intenções dele com toda aquela conversa.
— Koenma 'por acaso' ficou sabendo de ações suspeitas no Ningenkai. Depois, 'por acaso', começou a receber ajuda de dentro do Esquadrão para descobrir os culpados. Não está óbvio? Estão usando Koenma para afastar o principal articulador desse esquema, mas não para varrer a corrupção do Reikai ou acabar com a quadrilha. Eles só querem uma troca de poder. É tudo uma grande conspiração.
— 'Eles' quem? De quem você está falando?
Akira ignorou a pergunta, e prosseguiu.
— A Red Society é só uma desculpa. Ninguém está realmente interessado em liquidar o acordo. Bem, talvez Koenma, mas ele sozinho não tem força nenhuma.
— Desde quando Koenma está sozinho? — ela questionou, apertando os olhos, mas tudo que conseguiu foi arrancar uma risada do advogado à sua frente.
— Koenma é só um peão, assim como vocês. Quando o Fantasma for desmascarado, outro vai assumir o seu lugar, perceber como os negócios são vantajosos e deixar tudo como está. Enquanto isso, a gente assiste de camarote a briguinha entre eles — explicou — E quando digo 'vantajoso' nem estou falando em grana. O pessoal do Mundo Espiritual só está interessado em poder. Poder sobre o Mundo dos Demônios, poder sobre o Mundo dos Humanos... eles controlam tudo.
— Pois eu não dou a mínima para esses joguinhos políticos! — Kiki se exaltou, levantando da cadeira — Por mim, que se fodam todos! Não é por causa disso que eu vim até aqui, não é por isso que eu vou até o final dessa história!
Ela ficou olhando para ele sentado na mesa, que por sua vez, a olhou de volta, ambos em silêncio. Um ano atrás a relação dos dois era completamente diferente. Descomplicada, casual, simples. Agora ele era uma ameaça; ela, uma pedra no sapato.
— E se você não tem mais nada pra falar, me deixe ir embora como prometeu!
Akira levantou de supetão, fazendo a cadeira arranhar o chão ao ser empurrada para trás. Ela podia ver a ira brilhando nos olhos dele, mas não recuou.
— Sua idiota!
Ele avançou até ela e agarrou seu braço com violência. A puxou com tanta raiva que ela podia sentir a dor no local onde seus dedos a apertavam.
— Você acha mesmo que pode fazer alguma diferença? — vociferou, perdendo a calma pela primeira vez.
Kiki fechou a cara, tentando soltar o braço, mas Akira a mantinha presa com tanta força que foi impossível.
— O que eu acho ou deixo de achar não te interessa! — ela gritou, ainda tentando se livrar da mão dele.
— Vá para casa e pare de se meter nesse assunto! Você vai se arrepender se continuar entrando no nosso caminho dessa maneira!
— Isso é problema meu! Eu não vou deixar vocês continuarem arruinando a vida das pessoas como arruinaram a minha!
Ele a encarou por um instante, ainda segurando firme a menina.
— Então você acha que a culpa dos problemas dessa sua vida patética é nossa?
Kiki não respondeu. A respiração acelerada deixava suas bochechas coradas e seu coração palpitante. A dor no braço era tão forte que ela sentia que ele poderia quebrar a qualquer momento.
— Você acha que insistir em atrapalhar nossos negócios vai te fazer se sentir melhor? É disso que isso tudo se trata? De você tentar achar culpados para justificar a sua existência medíocre?
— Me solta! Você não sabe nada sobre a minha vida!
— Você não tem coragem nem para enfrentar seu pai, Kiki! Como acha que vai nos enfrentar? — Akira falou, colérico, e ela arregalou os olhos, surpresa — Você não pensa que as pessoas reparam nos seus machucados, nas desculpas ridículas que você inventa?
— Chega! Cala a boca!
— Não! — ele gritou — Pare de mentir para si mesma! Pare de esconder essa sua insegurança nessa pose de durona e assuma seus próprios erros em vez de jogar a culpa nos outros. Você quer que o mundo te veja como uma garota forte, independente, mas não passa de um cachorrinho assustado.
Kiki se debatia, puxando o corpo com força para poder se soltar. Se pudesse, arrancaria o próprio braço só para poder ir para longe dali.
— É isso que você é — ele continuou, a voz carregada de desprezo — uma cadelinha que sempre volta para o dono não importa quantas vezes ele te machuque. É assim com seu pai, foi assim comigo e vai ser sempre assim. Se alguma coisa sair errado, é só colocar o rabo entre as pernas e se esconder, fingir que nada aconteceu.
Aquelas palavras invadiam a alma da garota como gotas de óleo num oceano, criando manchas insolúveis e pesadas. A culpa era seu calcanhar de Aquiles, e Akira o acertava em cheio, reforçando a imagem negativa que fazia de si mesma. Ela nunca tinha visto ele com tanto ódio, e cada vez que abria a boca, era um soco que a atingia no meio no estômago. Sua náusea estava tão grande que a dor no braço nem mais a incomodava.
— Sorte da sua mãe que está morta para não ver a filha inútil que ela teve...
— Eu falei para calar a boca, Akira! — Kiki exclamou, elevando sua voz por sobre a dele.
E então se fez o silêncio.
Apesar disso, um barulho ensurdecedor ainda enchia a cabeça dela. Mesmo horas mais tarde, enquanto vagava pelo Makai, aquelas frases ecoavam em sua mente. E parte dela se arrependeria para sempre daquele dia.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
¹ Hoshi no Tama - O folclore japonês em torno dos kitsunes (raposas-demônio) fala sobre a existência do Hoshi no Tama, ou esfera estelar, uma esfera que carrega parte de seus poderes e de sua alma. Apesar do anime e do mangá não mencionarem isso em nenhum momento, achei interessante acrescentar na história.
² Matcha - Chá verde em pó, muito aprecisado na Ásia. Para preparar a bebida, o pó deve ser diluído na água quente.
³ Chasen - Utensílio próprio para o preparo do matcha. Uma espécie de fouet de bambu.