A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 21
As Cinzas da Chuva e o Frio de Mim


Notas iniciais do capítulo

Espero que o capítulo não tenha ficado confuso. Para passar as diversas emoções que aconteciam ao mesmo tempo na cena, optei por ficar alterando os pontos de vista — apesar de manter em terceira pessoa.

O título foi retirado de um poeminha de Ruy Espinheira Filho, intitulado "Canção do Inverno"



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O típico céu azul da primavera ia pouco a pouco se tingindo de cinza, um prenúncio da tempestade que se aproximava. As nuvens carregadas manchavam a paisagem com seus contornos escurecidos, transformando o dia claro em uma tarde sombria e melancólica ao mesmo tempo.

Kurama, entretanto, não estava preocupado com a súbita mudança meteorológica. Uma tormenta muito maior já havia começado dentro dele.

(...)

Ele acordou sem entender o que tinha acontecido ou onde estava. Mesmo segundos após recobrar a consciência, tudo continuava negro ao seu redor. Só então se deu conta de que uma faixa tapava seus olhos, o mantendo no escuro. Tentou levar a mão ao rosto para se livrar da venda, mas percebeu que as mãos também estavam presas, coladas uma à outra por amarras finas que incomodavam seus pulsos.

Ele começou a ficar agitado, se sentindo vulnerável. Tentou recordar os acontecimentos imediatamente anteriores que o levaram àquele estado, e as cenas vieram em fragmentos: dois garotos, socos, pétalas de rosa, uma construção inacabada...

Foi quando uma voz o trouxe de volta para o presente, uma voz completamente desprovida de emoção que o fez gelar a espinha.

— Você acordou. Ótimo — disse a voz — Podemos começar.

(...)

O demônio à sua frente parecia intimidado, dando à Kurama um estranho prazer. Ele sabia que a privação sensorial era uma forma eficaz de provocar ansiedade, razão pela qual havia optado pela venda nos olhos do homem.

— Você acordou. Ótimo — ele disse, ao ver os primeiros sinais de movimento — Podemos começar.

O demônio não respondeu de imediato, como se estivesse levando mais tempo que o normal para processar aquelas palavras. Não que isso fosse problema. Ao menos não para Kurama, que há muito tempo não se permitia brincar assim com uma de suas vítimas.

— Nome? — ele perguntou, mantendo o tom neutro.

O homem hesitou, inseguro.

— Quem é você? — foi a resposta.

— Me permita esclarecer algo: eu faço as perguntas. Você as responde — Kurama falou novamente — vamos começar de novo. Nome?

— ... Sho — disse, por fim.

— Muito bem, Sho. Conte o que sabe sobre a Red Society.

(...)

Aquela situação o deixava extremamente desconfortável. A ausência de visão aguçava seus sentidos e ele tentava a todo custo ganhar tempo para decifrar aquela enrascada em que havia se metido.

— Muito bem, Sho. Conte o que sabe sobre a Red Society — falou a mesma voz de antes.

Ele começou a enumerar mentalmente os possíveis responsáveis por aquilo, mas não conseguia ir muito longe. Talvez por que toda aquela tensão o impedia de raciocinar com clareza, ou talvez por que ele simplesmente desconhecia os reais inimigos daquela organização em que havia entrado há apenas alguns meses.

— Você está perdendo tempo comigo — ele argumentou — sou só um peão, faço o que me mandam fazer.

— Minha paciência tem limites — o seu algoz replicou, frio como a neve — Este é seu segundo aviso. Não vou ser tão bonzinho da próxima vez.

Sho começou a suar frio, temendo que a ameaça fosse mais do que um mero blefe. Foi quando uma ideia surgiu em sua cabeça, algo que poderia explicar aquilo tudo.

— Isso é por causa do Fantasma? — ele arriscou.

Dessa vez, ele não ouviu a voz em retorno. O silêncio durou alguns instantes, o fazendo crer que estava certo. Com certeza, seu carrasco não esperava ouvir aquele nome e, por um momento, Sho se sentiu confiante. Chegou a esboçar um sorriso, mas este foi rapidamente apagado do seu rosto e transformado em um grito de agonia.

Uma dor aguda se fez sentir na sua nuca, tão forte que ele chegou a pensar que tivesse sido decepado. Sua mente ficou completamente entorpecida e os espasmos foram inevitáveis. O mais aterrorizante, no entanto, era a origem da dor: ela brotava de dentro do seu corpo. Não sentia nenhuma mão, nenhuma arma, nenhuma força externa. Pelo contrário, ele continuava sentado no mesmo lugar, sem nada o tocando a não ser a parede às suas costas. Aquela sensação conseguiu o deixar mais impressionado do que qualquer outra coisa que já tivesse vivenciado. Pela primeira vez desde que acordou naquele estado, teve medo da voz fria que lhe chegava aos ouvidos mais uma vez.

(...)

Kiki não conseguiu segurar uma exclamação ao ver o demônio se contorcendo na frente de Kurama, que permanecia imóvel. Se virou para Yusuke, que também observava a cena, porém com muito mais naturalidade do que ela, as mãos casualmente enfiadas no bolso da calça.

Ela puxou o menino de lado, se afastando da dupla e falando em voz baixa.

— O que diabos está acontecendo aqui?

Um raio cortou o céu, seguido de um estrondo. A chuva veio logo depois, com pingos grossos que ecoavam ao atingirem o solo com força.

— Kurama em ação, só isso... — Yusuke riu, irônico.

(...)

— Eu avisei — Kurama falou, calmamente — Eu pergunto, você responde. Basta seguir as regras, Sho.

O demônio ainda se recuperava do choque, seus gemidos sendo abafados pelo som do temporal que agora castigava a cidade.

Kurama aguardou. A semente explosiva implantada no corpo do homem a sua frente era uma espécie rara do Makai que ele não empregava fazia muito tempo — e isso o excitava, trazendo a tona seu lado mais sádico; o que, por sua vez, o assustava.

— O que... o que você quer saber? — Sho conseguiu falar.

— Red Society — o ruivo repetiu, em um tom firme — Quem são os responsáveis?

— Eu trabalho para Akira... é tudo que eu sei.

— Akira é o líder do grupo?

Sho se calou, o silêncio sendo interrompido apenas pela chuva que insistia em cair.

— Você não está colaborando, Sho... — Kurama disse, ameaçadoramente — talvez precise de mais um pouco de incentivo.

— Não! — ele gritou, ansioso — Eu falo!

(...)

Nada daquilo fazia sentido, mas ele já havia deixado de tentar entender o que estava se passando. A dor na nuca tinha sido forte o bastante para ele perceber que não estava lidando com pessoas comuns.

— Akira não é o líder — respondeu — existe alguém acima dele, que controla tudo.

— Quem?

— E-eu não sei! Meu contato é apenas Akira, nunca falei com mais ninguém! — suplicou.

A voz de novo não respondeu, deixando Sho inquieto. Não demorou muito para que seus temores se mostrassem justificados.

A dor dessa vez surgiu em seu estômago, fazendo seu ventre se revirar. Ele perdeu o ar por alguns momentos, caindo de lado e se curvando para a frente, tentado aplacar o sofrimento. Cólicas violentas o consumiam, como se sentisse seu abdomen sendo perfurado por milhares de agulhas simultâneas. Novamente, a raiz daquelas sensações era o seu corpo, como se seu órgão estivesse sendo implodido por conta própria.

A ardência se espalhou por toda a região da barriga e por um tempo, ele não sentia nada a não ser dor, uma dor implacável que fez sumir tudo ao redor dele.

— Um nome! — disse a voz dura, o trazendo para a realidade.

Seu cérebro estava confuso demais para entender o que lhe estava sendo pedido. Continuou deitado no chão, lentamente recobrando a consciência do que estava acontecendo.

Demorou demais, no entanto. Antes que conseguisse formular alguma frase, uma nova explosão o pegou de surpresa e ele sentiu o osso da sua perna se romper. Todos os ligamentos agora pareciam poeira, e o peso de mil toneladas caiam sobre seu membro. Um novo grito, ainda mais forte que o último, se formou na garganta, junto com lágrimas de dor que encharcavam a venda nos olhos.

(...)

— Eu não sei o que você está fazendo com ele, mas se continuar assim, vai acabar o matando! — Kiki disse no ouvido de Kurama, ao se aproximar do garoto.

— Por que você se importa com a vida de um ser tão desprezível? — respondeu, se virando para a menina.

— Ele é mais útil vivo, isso não é óbvio? — falou, irritada.

Kurama abaixou o rosto, incomodado. Por um instante, teve a impressão de que aquela tortura lhe servia mais para aplacar seu desejo por sangue do que para conseguir alguma informação relevante.

— Ele é inútil, vivo ou morto — declarou, indiferente.

— Grego... — ouviram, na voz baixa do demônio.

— O que você disse? — Kurama perguntou, se virando novamente para o homem.

— Já ouvi Akira mencionar esse apelido algumas vezes — Sho respondeu, com dificuldade — Eles se falam pelo telefone... Akira o chama de Grego.

— Quem é ele? Como encontrá-lo?

O demônio gemeu, em verdadeira angústia.

— Eu não sei! Nunca o vi, não sei como ele é! — ele choramingou — Só Akira tem contato com ele!

Kurama estreitou os olhos, observando Sho com atenção. Sabia que ele estava falando a verdade.

— E como encontrar Akira?

— E-eu não... é sempre ele que nos procura... nunca está em um endereço fixo — soluçou — Ele nos encontra em lugares diferentes a cada vez.

À sua frente, o jovem ruivo suspirou. Aquilo parecia um beco sem saída.

— Mas eu sei... — ele continuou — que muitas vezes ele pega o trem em Chiba¹...

Kiki estremeceu ao ouvir o demônio mencionar aquela província. Estivera lá no ano passado e não trazia boas recordações do lugar.

— Ok, Sho, tenho uma pergunta mais fácil para você dessa vez — Kurama falou — Quem é Fantasma?

(...)

A chuva continuava forte, deixando as ruas desertas naquele final de tarde.

Um novo raio caiu ali perto, iluminando as estruturas de uma construção incompleta e delineando a silhueta de três jovens que permaneciam imóveis, protegidos do aguaceiro pelos tapumes da obra.

Um Fantasma rondava a cabeça dos três. Um Fantasma sem nome e sem rosto, mas que escondia muito mais do que a própria identidade.

Um membro importante do Reino Espiritual, isso era tudo que sabiam. "Nadamos para morrer na praia", Yusuke concluiu, manifestando em voz alta o mesmo sentimento que se passava na cabeça dos amigos. Sho sabia tão pouco quanto eles e, fora a confirmação do endereço dos novos portais para o Mundo dos Demônios, suas informações tinham sido vagas e imprecisas, trazendo mais perguntas do que respostas.

— Você vai deixar ele aí? — Kiki quebrou o silêncio, se referindo ao demônio que agonizava no chão próximo a eles.

Kurama deu de ombros.

— Ele já não me importa mais. Além disso — respondeu, seco — a Red Society deve ter seus métodos para se livrar de lixos como ele.

Se voltou para Yusuke, que olhava para a chuva com o semblante rígido. Ele pouco tinha falado durante todo o tempo em que estiveram ali e Kurama achou que sabia o motivo.

— Meu convite ainda está de pé — falou.

Yusuke se virou ao ouvir o amigo. Apenas meneou a cabeça, em sinal positivo, e Kurama compreendeu que aquela era sua resposta.

Eles iriam ao Makai.


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Notas finais do capítulo

¹ Chiba: Província do Japão, à leste de Tóquio.