Corações Perdidos escrita por Syrah


Capítulo 39
39. Aula de história e problemas à vista




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NÓS NOS DIRIGIMOS para a casa de Bobby em silêncio.

Dean caminhava ao meu lado, o olhar focado na enorme construção de madeira, parecendo perdido em pensamentos mais distantes que aquele lugar. Aproveitei o momento para observá-lo discretamente; o loiro tinha o cenho franzido e os lábios contraídos em uma fina linha de — quem sabe — preocupação. As mãos estavam, como de costume, enfiadas nos bolsos da calça jeans surrada. Ele parecia, de um jeito fascinante, alheio a todo o resto.

Eu me perguntava o que se passava em sua cabeça naquele momento. Estaria ele pensando na história que eu acabara de lhe contar? Em Sara? Nos Remanescentes? Talvez fossem todas essas coisas. Eu não sabia se era uma boa ideia perturbá-lo naquele instante, tentei me convencer então de que o melhor a fazer era ficar quieta.

Naturalmente, não sou nada boa em seguir conselhos, nem mesmo os meus próprios.

— Não se preocupe, tenho certeza de que Sam é perfeitamente capaz de entreter Sara pelo tempo necessário — eu disse, tomando-o de seus devaneios. Era mais uma afirmação interior que um comentário, mas serviu para ganhar a atenção de Dean. — Ela vai, no máximo, fazer alguma piada sarcástica sobre a nossa demora, e então...

— E então te perguntar outra vez. — Ele completou, me encarando. Apesar do tom sério, seus lábios estavam repuxados em um sorriso lateral.

Dei um sorriso cúmplice, assentindo.

— E então me perguntar outra vez. — Repeti com ironia. — "Nobre caçadora, qual é a sua decisão? Seja sábia." — Nós dois rimos como bobos da minha entonação ridícula. — Ela quase parece um Mestre dos Magos desse jeito. Fica insistindo nesses enigmas e questionamentos, como se fosse super necessário que eu me desse conta da importância em ajudá-la.

— E não é? — o Winchester rebateu e eu soquei seu braço de leve, fazendo com que ele risse outra vez. — É quase engraçado, você não tem realmente uma escolha.

Eu revirei os olhos.

— É claro que tenho. Todos temos uma escolha.

Dean balançou a cabeça, me olhando como se repreendesse uma criança pequena.

— Isso é relativo, M — disse ele, dando seu habitual sorriso encantador. — Todos temos uma escolha, é verdade, mas, quando uma das opções é basicamente um tiro no próprio pé, seria ela realmente uma escolha ou apenas uma alternativa estúpida?

Eu suspirei, dando de ombros.

— Você também tá nessa de Mestre dos Magos agora?

Dean riu, mas não respondeu. Ele tinha razão; eu tinha a opção de não ajudar Sara, é claro, mas isso acarretaria em uma série de futuros obstáculos em minha busca, e isso era algo que eu preferia evitar por ora. Já tinha passado por barreiras suficientes ao longo dos últimos meses para admitir que às vezes a escolha mais fácil era de fato a correta.

Eu só me perguntava no que estava me metendo agora. Me envolver com os Remanescentes uma segunda vez nunca esteve nos meus planos, e agora eu sequer tinha uma alternativa — isso se ainda quisesse garantia de que estaria na cola do meu pai dali em diante. Sara era meu bilhete de passagem para o próximo nível, mas isso também significava que eu estava automaticamente comprando briga com uma das organizações mais poderosas da América. Era como se um detetive particular entrasse em guerra com a máfia — só que, nesse caso, eu não tinha nem metade dos recursos necessários à minha investigação.

Pensar nisso me causava arrepios nada agradáveis.

— Você sabe que estamos prestes a nos enfiar numa confusão enorme, não sabe? — eu perguntei a Dean, séria.

O Winchester deu de ombros, como se aquela fosse uma declaração comum. Devo admitir que, considerando o nosso histórico das últimas semanas, eu não diria que ele estava errado, não fosse o fato de que os Remanescentes se sobressaíam a todas as nossas "aventuras" anteriores.

Dean sorriu para mim e disse:

— Se não fosse uma grande confusão de merda, não seríamos nós a impedir — afirmou, me olhando de um jeito estranho. — Não seria você no meio disso tudo.

Eu ri com a sua declaração, assentindo. Ficamos em silêncio por alguns segundos, aproveitando a paz da curta caminhada. Dean ainda me olhava daquela maneira esquisita, como se estivesse me medindo ou algo assim.

— Só quero ver se Bobby partilha da sua opinião — falei de repente, buscando desesperadamente por uma não tão nova assim fonte de assunto.

Dean suspirou.

— Ele provavelmente vai xingar à beça, e reclamar como um desgraçado — concluiu, desanimado. — Mas tem um lado bom nisso. — O sorriso voltou a iluminar seu rosto em um segundo.

Eu ergui uma sobrancelha.

— Ah, é? E qual seria?

Dean se virou para mim, sorrindo de orelha a orelha. Lá vem.

— Dessa vez você vai levar uma bronca também.

Eu só pude socar seu braço outra vez, enquanto o desgraçado gargalhava como nunca.

— Você não muda — concluí.

Ele ainda ria quando respondeu, quase sem fôlego:

— Não mesmo.

[...]

A situação não poderia ser mais constrangedora, definitivamente.

Dez minutos após Dean e eu alcançarmos a sala e tentarmos explicar a um velhote mal-humorado os últimos fatos resumidamente, Bobby ainda franzia o cenho para Sara, como se estivesse — mais uma vez — se perguntando o que diabos uma garota como ela fazia ali, sentada em seu sofá com uma expressão irritantemente tranquila no próprio rosto.

A garota, por sua vez, encarava ao restante de nós como se tentasse entender porque todos os holofotes continuavam virados em sua direção. Como se não fosse óbvio.

Preciso admitir que me surpreendeu verdadeiramente que ela ainda estivesse ali — afinal, o que eu esperava? Que Sara fosse embora após algumas horas sem uma resposta? A sua vida estava em jogo, e não por uma situação do tipo simples, mas por algo tão perigoso e complexo que só um caçador experiente poderia tentar resolver.

— Então — Sara decidiu quebrar o gelo, apesar de parecer incerta disso. Ela devia estar apreensiva com o olhar que Bobby lhe direcionava. Eu estaria, pelo menos. — Alguém vai dizer alguma coisa ou...?

Bobby a interrompeu com um pigarro tão alto que quase parecia um rosnado. A garota se encolheu no sofá, embora tenha inutilmente tentado esconder essa reação. Não a culpei, eu quase fiz o mesmo.

— Ainda estou tentando entender como tanta coisa pode ter acontecido nas últimas horas — disse o homem, mas não parecia necessariamente bravo, o que era um bom sinal. — Lembro que deixei esta casa de manhã e ela ainda parecia um lugar comum, no máximo a residência de um velho fã de beisebol e livros antigos — ele suspirou, em seus olhos havia um brilho cansado. — Agora sinto que entrei no set de filmagens de um thriller de Hollywood.

— Olha pelo lado bom, você não é um dos personagens que está prestes a morrer, meu caro — Dean sorriu largamente para Bobby.

O velho Singer lhe deu um olhar tão frio que eu temi que pudesse de fato congelar o Winchester onde estava.

— Eu não, mas talvez vocês três sejam — ele lançou olhares mortais para os irmãos e eu. Dessa vez nós nos encolhemos como Sara fizera, uma reação involuntária, é claro. — Será que alguém aqui pode por favor me dizer o que diabos está acontecendo? — perguntou em um tom impaciente.

Bobby parecia prestes a explodir caso não obtivesse uma explicação naquele exato momento, e eu não queria ser uma das pessoas presentes ali caso isso acontecesse.

— Ah, senhor Singer? — Sara se pronunciou outra vez, um pouco mais segura que antes. — Se é um esclarecimento o que quer, acho que posso ajudar.

Ela deu de ombros, se ajeitando no sofá. Bobby a olhou outra vez, erguendo uma sobrancelha. A garota interpretou o gesto como um incentivo — embora eu tenha pensado que era apenas sarcasmo — e continuou:

— Podemos resolver isso em um segundo, é claro — ela disse aquilo como se fosse uma questão simples. E era, na verdade. — Mas antes eu preciso saber de algo. — Os olhos da garota se fixaram em mim por um momento, calculistas. — Posso contar com você ou não?

Eu havia ponderado aquela resposta desde que deixara casa horas antes, embora não fosse realmente um dilema àquela altura. Automaticamente, meu olhar caiu sobre Dean. O Winchester me observava com um leve resquício de sorriso no rosto. Ele assentiu para mim quando notou que eu o observava, me encorajando. Voltei meu olhar para Sara, que esperava paciente — o mais pacientemente que o olhar de Bobby permitia — por uma resposta.

— Vou ajudar você — declarei, notando um sorriso de triunfo em seu rosto diante da minha resposta. — Se prometer me contar absolutamente tudo o que sabe sobre toda essa história. E se eu descobrir que você está escondendo alguma coisa, ou pior ainda, mentindo pra mim, pode ter certeza de que os Remanescentes serão a menor das suas preocupações a partir de agora.

Ela assentiu, satisfeita, embora tenha feito uma careta logo em seguida por conta da última frase. Sara então direcionou a Bobby um olhar que me pareceu um tanto significativo. O velho Singer parecia realmente confuso, como se não entendesse o que uma adolescente como aquela poderia querer com a minha ajuda, mas eu já enxergava em seus olhos um brilho de entendimento por conta da menção ao clã dos lobisomens.

— Remanescentes? — ele repetiu, desconfiado. — O que alguém como você pode ter a ver com gente como eles?

Sara sorriu para ele, parecendo achar sua reação um tanto divertida.

— Acho que você vai querer se sentar agora, senhor Singer — ela disse docemente para o homem. — Tenho alguns detalhes pra esclarecer.

Apesar de claramente não gostar do título de "senhor", Bobby concordou em ouvir. Uma hora mais tarde, toda a história havia sido recontada. Sara explicou mais uma vez, detalhadamente, tudo o que tinha acontecido dentro de seu clã, incluindo a traição e o fato de que era filha dos líderes, Maxwell e Linda Ross. O velho ouviu a tudo em silêncio, sem interrompê-la uma única vez. Quando terminou, Sara se levantou e caminhou na direção do homem com uma expressão determinada no rosto.

Eu e os irmãos nos entreolhamos enquanto a garota se sentava ao lado de Bobby e o encarava seriamente.

— Sei que é muita coisa pra digerir, mas prometo que é toda a verdade — ela suspirou. — Você já sabe sobre o parentesco da Emma, e imagino que não tenha sido fácil acreditar. Portanto...

Ela não terminou a frase, apenas deixou a continuação no ar, sugestivamente. Bobby respirou fundo, se recostando em seu sofá e encarando o teto.

Felizmente — ou talvez não — o silêncio não durou muito.

— Espera aí, "parentesco da Emma"? — Dean se intrometeu, tão confuso quanto Bobby, embora não pela mesma razão. — O que isso quer dizer?

Eu coloquei a mão na testa, já prevendo o pior. Droga, como eu não tinha me lembrado de dizer a ele? Sara ergueu uma sobrancelha em nossa direção, surpresa.

— Você não contou a eles ainda? — perguntou, então revirou os olhos. — É claro que não contou. Por que não estou surpresa? — seu tom era acusatório, e eu de fato merecia. — Você não aprende mesmo, né?

Não, Sara, eu acho que não, pensei.

— Não contou o quê? — Foi Sam quem perguntou.

Lancei um olhar a Dean, suspirando. O Winchester me observava com o semblante sério e impassível, não fazendo questão de esconder seu descontentamento. Eu não o culpava, honestamente.

Emma, Emma... Você realmente não aprende mesmo, não é?

— A relação de Emma com os Remanescentes vem de muito antes de Alice — Bobby tomou a palavra, se erguendo do sofá e encarando o restante de nós enquanto falava. — Ela está ligada a Maxwell por laços muito mais fortes do que os que vocês pensam.

Eu senti que a temperatura do ambiente caiu uns bons graus depois daquilo.

— Espera, isso quer dizer que... — Dean me encarou, estupefato.

Suspirei, dando de ombros.

— Eu te contei que minha família por parte de pai era composta de caçadores — lembrei-o, séria. — Digamos que a minha família por parte de mãe é um pouco mais complicada que isso.

— Sua vida é uma confusão tangível, Emma — Dean retrucou, notavelmente surpreso.

Eu ri, sem poder discordar.

— De fato. — Dei uma encarada em todos ali antes de anunciar o óbvio: — Meus avós eram... Eram Remanescentes. Minha mãe também, mas diferente dos outros, decidiu permanecer humana e deixar o clã. — Respirei fundo, sentindo que aquela não era a primeira vez que a situação se tornava tão opressora para mim. — Maxwell Ross era o irmão mais novo de Elena Grace, e também meu... tio.

O silêncio que se seguiu a essa declaração foi quase ensurdecedor.

— Puta merda. — Dean me encarou, chocado, antes de se virar para Sara, ainda mais surpreso que antes. Seu olhar se alternou entre a garota e eu por alguns instantes, como se assistisse a uma final de ping pong, então ele disse: — Isso faz de vocês primas!

Sara revirou os olhos, impaciente.

— Você de fato fez o primeiro módulo de biologia fundamental, uau — ela comentou sarcasticamente.

Dean sequer notou, estava abalado demais para isso.

— Isso torna as coisas bem mais malucas — disse ele, perplexo, antes de apontar um dedo acusatório para Bobby. — E você sabia disso! Por que diabos não nos disse nada?

O velho Singer deu de ombros, algo me dizia que ele não gostara de deixar Dean sabendo daquilo.

— Emma só me esclareceu essa história com os Remanescentes na última semana, enquanto vocês estavam fora.

— E você sabia sobre esse clã? Os Remanescentes? Como? — perguntou Dean.

Eu o encarei.

— Eu te disse que ele era um Bibliotecário. — Fiz questão de lembrar. O Winchester assentiu vagamente, não totalmente ciente de minhas palavras. — Ele sabe tudo sobre quase qualquer coisa. É óbvio que conhece os Remanescentes.

Bobby fez uma careta, descartando o apelido, pois — eu descobrira há alguns dias — ele não gostava de ser chamado daquela forma. Dean olhou para o irmão de forma igualmente acusatória.

— Você também sabia sobre eles?

Sam rapidamente negou.

— Sara me contou sobre eles enquanto você e Emma conversavam lá fora, antes disso era um termo totalmente novo pra mim — se defendeu, então me lançou um olhar de "Por que diabos você não contou a ele também?".

Dean me encarou da mesma forma, ao passo que dei de ombros, assumindo a culpa. Para ser honesta, aquele detalhe realmente não parecia ser importante antes, afinal, minha conexão primária com os Remanescentes sempre havia sido um tabu, até mesmo dentro de casa. Assim, não se fazia necessário que mais ninguém soubesse, além do núcleo principal envolvido; meu pai, eu, e, por certas razões impronunciáveis, Justin.

O Winchester mais velho suspirou, irritado.

— Certo, todos vocês — disse ele, contrariado —, é realmente uma merda ser o último a descobrir sobre essas coisas. Mas, afinal, quem são esses Remanescentes? — perguntou. — Além de serem um dos únicos clãs de raça restantes e, é claro, uma das organizações mais poderosas do país. Quem são eles?

Todos os olhares do cômodo se voltaram para mim. É claro que eles esperavam que eu explicasse tudo, dadas as circunstâncias. Respirei fundo.

— É, acho que é hora de uma pequena aula de história — anunciei.

Dean fez uma careta, mas concordou em seguida. Sam, Bobby e Sara assentiram, os três em silêncio, apenas aguardando a explicação. Todos ali — com exceção de Dean, é claro — já sabiam sobre os Remanescentes, então eu tentaria ser o mais breve possível.

Me virei para o Winchester mais velho, posicionando as mãos na cintura e dando a ele um olhar interrogativo.

— Você sabe sobre a lenda de Gévaudan? — perguntei.

Surpreendentemente, ele assentiu, apesar de parecer confuso com a pergunta repentina. É claro, ele não conhecia a ligação entre aquele assunto e o nosso presente.

— Esse não é aquele conto sobre uma criatura sanguinária que aterrorizou a França lá por meio do século XVIII? — eu concordei, satisfeita por ele já conhecer pelo menos parte da história. — O que isso tem a ver?

Eu suspirei.

— Bom, essa criatura, como você diz — comentei com uma voz calma, embora meu tom fosse extremamente sério — foi inicialmente apontada como sendo uma espécie de lobo das montanhas — meus olhos focalizaram os seus, minuciosos. Dean assentiu, concentrado. — Considerada perigosa na época porque, de acordo com relatos, era "um monstro vil e assassino, devorador de homens".

"Naquela época, os corpos desapareciam, embora fosse difícil limpar os rastros sangrentos da neve densa e implacável. Contudo, mesmo que os camponeses locais não soubessem o que havia acontecido, tinham a noção de que aquele banho de sangue era alguma coisa. Por fim, o tal lobo das montanhas foi culpado pela morte de dezenas de pessoas. Disseram que a criatura dilacerava seus corpos e devorava a carne, embora ela só estivesse realmente interessada em uma única parte; o coração. É claro que ninguém sabia disso até então."

Dean pigarreou, me encarando de um jeito indefinido.

— A besta era um lobisomem então, é claro — disse ele, fazendo pouco caso da informação. — Sem ofensa Emma, mas acho que todos os caçadores sabem disso hoje em dia, é meio óbvio.

Eu dei de ombros, suspirando. Do outro lado do cômodo, Sara balançou a cabeça para Dean, como se desaprovasse sua interrupção. Eu também me irritava com aquela mania às vezes, especialmente naquele momento, porque a história que estava contando era muito mais do que simplesmente um conto sobre lobisomens datado na história humana. Mas Dean não sabia disso, naturalmente, então decidi lhe dar algum desconto.

— A história não é tão simples, Dean. Estou tentando te explicar a origem de um clã poderoso aqui — eu disse, séria. — Então estou contando o mais resumidamente possível... do início. — Ele se retraiu com minhas palavras, como se eu tivesse lhe socado ou algo do tipo. — Se não quiser ouvir, sinta-se útil pra dar o fora, não tenho tempo pra brincadeiras agora.

O loiro suspirou, mas não me contradisse. Ele parecia frustrado.

— Certo, foi mal — falou, parecendo desconfortável, eu pensava, pelos olhares que Sara lhe direcionava. — Eu, hum... É, pode continuar.

Eu sorri levemente, assentindo.

— Enfim, três anos após o surgimento da besta, um caçador chamado Jean Chastell encontrou e matou uma criatura nas montanhas, cessando os assassinatos e levando o crédito pela aniquilação definitiva da besta de Gévaudan.

A forma como Dean me observava tão intensamente chegava a ser quase desconcertante. Limpei a garganta antes de continuar:

— Pra matar o lobo, Chastell utilizou um tipo diferente de armamento — O loiro me encarou com uma expressão curiosa. — Balas de prata, é claro. — Ele assentiu. — Esse foi o primeiro caso licantrope registrado oficialmente na Europa, e até arrisco dizer que foi o primeiro da história que envolveu um lobisomem de verdade. Até então, o termo nem era muito conhecido.

"Com a morte da criatura, eles abriram o lobo e constataram a presença de restos humanos em seu intestino, levando à confirmação de que se tratava, de fato, de um lobisomem e não um lobo gigante. Já havia uma certa desconfiança, naturalmente — as pessoas daquela época eram excessivamente supersticiosas, e com razão —, mas a certeza do que era realmente a tal coisa só veio após sua morte."

"Nem preciso dizer que, com toda a comoção gerada pelo surgimento da besta, os lobisomens que viviam escondidos entre a sociedade foram afetados, e não de maneira positiva. Naquela época, era comum que monstros vivessem disfarçados entre humanos, escondidos — não muito diferente dos dias de hoje. A maioria conseguia manter a discrição, mas alguns... recém-transformados, por exemplo, ou os mais jovens, esses eram mais difíceis de se controlar. Eventualmente começaram a causar problemas e atrair uma visibilidade indesejada por parte de fanáticos."

"Por fim, o rei, desesperado com toda a situação, autorizou oficialmente que qualquer um em condições de portar uma arma poderiam sair em busca da criatura e seus semelhantes. Ele ofereceu uma recompensa de seis mil libras para qualquer um que trouxesse a cabeça de uma besta ao seu palácio. Foi autorizada uma expedição no país que permitia a qualquer cidadão caçar e matar qualquer lobisomem que pisasse nas terras francesas. Aqueles que aceitavam a proposta e partiam em missão recebiam títulos meio nobres e ouro, isto é, quando voltavam, e se voltavam."

"De ambos os lados, as expedições foram um completo massacre. Várias pessoas, incluindo humanos, foram mortas. Algumas por acidente, outras por descuido. Ninguém esperava que o governante do país fosse permitir algo desse tipo, mas o medo havia alcançado um novo patamar entre a nobreza, e isso trouxe consequências desagradáveis a todos os envolvidos."

Silêncio total, uma pausa após minha explicação. No canto da sala, ouvi alguém prender a respiração — Sara, eu achava —, ao passo que os irmãos me encaravam com certo brilho de assombro nos olhos

Foi Sam quem tomou a dianteira, quebrando o gelo:

— Você parece saber muito sobre eles — disse-me ele, estranhamente admirado. — Um clã que praticamente ninguém conhece... uma lenda. E aí está você, explicando detalhe por detalhe das origens.

Sara fez um som estranho com a garganta — algo entre uma tosse e um pigarro —, e imaginei que estivesse concordando com as palavras de Sam, embora doesse diretamente em seu âmago admitir isso.

Senti meu rosto arder. Torci para que atribuíssem isso ao calor infernal que preenchia a sala naquele instante e não ao meu constrangimento.

— A verdade sobre minha ascendência veio à tona quando fui atrás de Maxwell. — Contei, buscando atenuar os holofotes. Era assim que Sara devia estar se sentindo antes, pensei, prometendo não a importunar com aquilo dali em diante.

Notei que Sam não parecia de forma alguma perturbado com aquela declaração, embora eu não tivesse lhe contado a minha história ainda. Supus que Sara houvesse lhe atualizado de alguns detalhes em minha ausência.

— Continue — disse ele gentilmente, notando a minha confusão. O sorriso em seus lábios era compreensivo, e me senti feliz por não ser alvo de julgamentos para o caçula Winchester naquele momento.

Assenti, dado um pequeno sorriso de volta, em agradecimento.

— Depois de tudo, passados o choque, a negação e os acessos de raiva, não pude deixar de ficar, de certa forma, fascinada com aquele clã e a história que o envolvia. Pedi a Max que me contasse... bom... tudo. Por alguma razão ele concordou. E por bem ou mal, pode-se dizer que a história dos Remanescentes me trouxe até aqui.

Os irmãos assentiram. Os olhos de Sam brilhavam de uma forma familiar e fácil de ler; admiração. Ele sempre fazia aquela cara quando descobria algo novo e — aos seus parâmetros distorcidamente bizarros às vezes — incrível. Sara me encarava com olhos de gato (ou eu deveria dizer lobo? Ok, péssima piada), minuciosos e surpresos. Ela definitivamente não contava que eu conhecesse tanto sobre seu adorável clã, e eu não saberia dizer se isso a agradava ou não.

A garota agora me encarava com uma expressão diferente; curiosidade, eu pensava.

— E o restante da história? A caça aos lobisomens na Europa e todo o resto? — perguntou.

Eu duvidava que ela não tivesse conhecimento daquilo, mas desconfiava de que a menina queria descobrir o quanto mais eu sabia sobre o assunto.

Suspirei, retomando a narrativa:

— Havia uma aldeia à leste do país, onde metade dos moradores — talvez mais — consistia em licantropes, todos apavorados. As expedições não tinham previsão de término e a população, tanto humanos quanto lobisomens, se encontrava em pânico.

"Foi então que Joseph Hubert, um dos residentes mais antigos e integrante do lado sobrenatural, é claro, resolveu tomar as rédeas da situação. Metade da vila já havia sucumbido à caçada, e os moradores restantes chegaram ao ponto de sequer saírem de suas casas. Muitos passavam semanas sem colocar os pés na rua, tamanho era o desespero entre eles."

"Joseph secretamente reuniu o que se pode chamar de uma pequena comoção, que eventualmente tomou proporções bem maiores e acabou por se tornar uma espécie de grupo revolucionário. O homem coligou diversas pessoas e formou uma espécie de clã com os lobisomens que haviam restado naquela região, passando a viver na clandestinidade. Mais tarde, outras áreas da França se juntaram à sua causa, incluindo alguns estrangeiros das proximidades. Joseph e seus seguidores ficaram conhecidos como "os sobreviventes" pelo povo, e mais tarde esse nome se alterou para "Remanescentes", que representava a porcentagem restante de lobisomens que se juntou ao grupo."

"Sim, eles eram muitos, e poderiam facilmente subjugar qualquer governo se assim decidissem. Acredito que alguns ali até almejavam isso. Porém, Joseph não simpatizava com a ideia de devolver na mesma moeda. Para ele, seria mais fácil se simplesmente seguissem suas vidas, aprimorando seus próprios meios de sobrevivência e deixando os humanos cegos e no escuro, como sempre fora. Devolver o ataque na mesma moeda estava fora de cogitação."

— "Olho por olho e o mundo acabará cego" — sussurrou Sam, embora todos ali fossem capazes de ouvi-lo. — Imagina o que teria acontecido se um grupo de criaturas sobrenaturais houvesse incitado uma revolução em uma das maiores nações da Europa na época?

Eu assenti, ciente do medo por trás de suas palavras.

— Por fim, os humanos se afogaram em sua própria ignorância. Graças ao sigilo de Joseph e à onda de fantasia que se espalhava pelo continente na época, os lobisomens eventualmente se tornaram nada mais que uma lenda, um mito.

"Por obra do acaso, os 'desgarrados' — licantropes solitários, que não possuíam clã e nem buscavam por um — acabaram se tornando o que as lendas contam hoje; feras mortais, incapazes de controlar suas transformações e seus gênios. Nem sempre foi assim, mas acredito que os anos de solidão, depois que misturados ao medo, acabaram por causar um retrocesso primitivo na espécie. Infelizmente, fora os Remanescentes, não existem muitos lobisomens nos dias atuais que fujam do padrão desvairado e sanguinário."

"O clã se fortaleceu ao longo das décadas e no início do século XX acabou se mudando para a América, onde tem permanecido desde então. O motivo pelo qual o "bando" se tornou tão poderoso em tão pouco tempo foram suas conexões em vários setores políticos e administrativos em países da Europa, América e Ásia. Eles são espertos, obviamente, e este é o principal motivo para serem tão influentes no mundo sobrenatural atualmente — talvez até no humano, sendo honesta."

— Então eles são tipo uns Illuminati sobrenatural? — perguntou Dean. Fiz que sim com um aceno, sem poder evitar minha própria risada. Ele sorriu. — Bizarro. Porém, irado.

Eu não podia discordar. Do outro lado da sala, Sara exibia um sorrisinho orgulhoso.

— Poucos sabem da existência dos Remanescentes. Alguns franceses passaram algumas lendas ao longo de gerações, que atualmente não passam de mitos contados às crianças — ela completou, me direcionando um olhar penetrante. Eu devolvi o sorriso, sentindo uma certa cumplicidade inesperada no gesto.

Me virei para os irmãos:

— Lucian, assim como os outros líderes antes dele, faz de tudo para que ele e seu bando permaneçam ocultos à sociedade, aparecendo em fachada apenas quando precisam de algo.

Dean me encarou com ar pensativo por alguns segundos.

— Isso é tudo?

— Sim, é tudo — assenti, séria. Eu, de fato, tinha dito tudo.

O Winchester então se virou para Sara.

— Você realmente não tem ideia do porquê Adam está atrás de você? Digo, o que ofereceram a ele pra que entrasse nessa. — Ok, então a parte "aula de história" tinha terminado. Tínhamos voltado à questão inicial: o envolvimento do meu pai com os Remanescentes.

Sara negou.

— Eu diria que os Remanescentes têm algo que ele queira muito, aquele clã é mestre nesse tipo de coisa.

Fiz uma careta imediata, seguida de um suspirar frustrado. Meus olhos estavam fechados, mas eu podia sentir Dean me observando, provavelmente tentando entender a confusão que se passava em minha cabeça naquele momento.

Um silêncio abrasador se instalou no cômodo. Nenhum de nós disse nada, enquanto o impacto das palavras de Sara se compelia sobre mim de novo e de novo, sem um final à vista. Eu me encostei na parede, respirando profundamente, colocando os poucos neurônios que ainda não tinham enlouquecido dentro de mim para funcionar. Algo que ele queira muito. Eu repeti as palavras em minha cabeça algumas vezes, sem conseguir chegar a um veredito. O que meu pai poderia querer tanto que o faria chegar ao ponto de se aliar aos Remanescentes? Eu ponderava a pior das hipóteses, e nem mesmo isso parecia ser motivo o suficiente.

Estava tão absorta em meus pensamentos que só notei que era alvo de todos os olhares novamente quando decidi erguer o rosto para suspirar profundamente outra vez. A súbita atenção fez meu estômago revirar.

— Eu não faço ideia do que seja — consegui cuspir as palavras, apesar do gosto amargo em minha boca. — Tipo, sério. Não consigo pensar em nada, nada mesmo.

Eles assentiram, sem insistir. Eu conseguia ver a frustração nos olhos de Dean e a ansiedade nos de Sam, ambos os sentimentos pela mesma razão; nenhum de nós conseguia decifrar o enigma que se tornara Adam Grace.

De repente, Bobby, que se tornara a pessoa mais silenciosa da casa, se virou para Sara. O gesto foi tão repentino que imediatamente todos os olhares do cômodo estavam fixos no homem.

— Garota. — Ele chamou por ela, sério, e seu tom deixava claro que não estava dando espaço para enrolação.

Sara apenas encarou o velho de cima a baixo, avaliando suas palavras, ou palavra, melhor dizendo. Ela ergueu uma sobrancelha, curiosa com o que viria a seguir.

— Por que não diz logo o que quer falar? — ele grunhe. — Já não estamos tensos o suficiente?

Eu ergui o rosto para Bobby, confusa como nunca. Tive vontade de questionar suas palavras, perguntar o que diabos ele queria dizer com aquilo, até que meus olhos caíram sobre Sara, e entendi perfeitamente do que o velho Singer estava falando.

Porque a garota tinha algo a dizer. E isso estava explícito na forma arrogante com a qual ela devolvia o olhar de Bobby, e na linha fina que se desenhava no lugar de seus lábios pálidos.

— Sara? — eu a chamei, e mal reconheci minha própria voz. Estava... suplicante? A que ponto eu tinha chegado?

A garota olhou diretamente para mim e vi o brilho de algo indecifrável transpassar seus olhos. Ela se encolheu por um instante, parecendo ter sido atingida por um golpe.

— Desculpe, Emma, é besteira — ofegou ela, dando um passo para trás. — Eu pensei em algo, mas... é idiotice. Sinto muito.

Dois segundos depois Dean estava ao lado dela, de punhos cerrados e um semblante duro.

— Desembucha, pirralha — ele quase rosnou.

— Dean, já chega — eu o alertei. Seus olhos encontraram os meus e por um momento eu quis me encolher como Sara fizera, mas me contive.

Usando toda a força que me restava, me obriguei a encarar a menina, torcendo para que minha voz soasse tão firme quanto eu desejava.

— Por favor? — pedi, tentando soar um pouco menos rude que os outros dois homens. — Qualquer coisa vale, você sabe disso. Apenas me diga. E se for mesmo uma besteira, cabe a mim julgar, não acha?

Sara suspirou, claramente desconfortável. Dava para ver em seus olhos que ela estava medindo se realmente falava ou não o que estava em sua cabeça. Aquilo começava a me irritar, admito, mas busquei me manter controlada. Assim como Sam, eu sabia que era uma das únicas pessoas ali que ainda não tinha cogitado agarrar Sara e chacoalhar a verdade para fora dela à força.

A garota por fim deu de ombros, derrotada. Reuni uma força de vontade imensa para não exibir um sorriso de alívio — ao invés disso, mantive meu rosto impassível, a mesma máscara de sempre.

— Tem uma coisa — Sara repetiu, finalmente, parecendo desconfortável, embora agora estivesse disposta a abrir o bico. — Mas acredite, Emma, você não vai achar nada bacana.

— O que é? — perguntei, aflita. A opção de chacoalhá-la dançou uma vez diante dos meus olhos, mas afastei o pensamento.

Sara massageou a própria têmpora, parecendo exausta. Ela ajeitou os óculos sobre os olhos novamente, então voltou a falar:

— Trata-se de um... ritual proibido. Os Remanescentes fizeram algumas vezes, há muito tempo, mas depois de um tempo o clã concordou que era arriscado demais e não valia o risco, por isso baniram esse... ato — ela pareceu tremer com a palavra. — Meu pai o baniu, melhor dizendo. Eles o chamam de Ressurreição, era utilizado décadas atrás. Não acho que eu precise dizer o que é, certo? O próprio nome já é suficientemente autoexplicativo.

Senti meu sangue gelar instantaneamente. Ressurreição? Aquilo eu não conhecia. Do que Sara estava falando, afinal?

— Acho que todos aqui já temos uma vaga noção — murmurou Dean, irritado. — Mas o que isso tem a ver com Adam e o envolvimento dele com o seu clã?

Sara fez uma careta, e acredito que se ela pudesse se fundir à parede naquele instante, era isso o que faria.

— Não tem só a ver com Adam, tem a ver com ela — a menina apontou para mim, ao mesmo tempo em que balançava a cabeça, como se dissesse "sinto muito, eu não queria ter que dar as más notícias".

— O que é? — eu perguntei, sentindo meu coração bater tão rápido que era inacreditável que meu corpo ainda estivesse funcionando normalmente.

A garota respirou fundo outra vez. Por fim, ela disse:

— Eu disse a você que a única forma de terem convencido Adam a trabalhar pra eles é possuindo algo que ele queira muito — explicou ela, ao mesmo tempo em que cada engrenagem no meu cérebro dava um clic de compreensão.

Ah, não, pensei. Por favor, não diga que...

— Acho que utilizaram esse ritual pra trazer de volta alguém importante pra ele, Emma — disse Sara, e o gosto amargo de suas palavras parecia me envolver com uma força avassaladora agora. — Sua mãe? Sua irmã? Não tenho certeza, mas acho que é por isso que Adam está com eles, e atrás de mim.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo: Agora que teorias se formam, Emma e Sara unem forças em busca de uma solução para o problema Adam-Remanescentes. Enquanto isso, nosso trio de caçadores bola um plano, embora a mais jovem integrante do grupo seja um pouco avessa a ele. O que será que aguarda nossos queridos irmãos e Graces nos próximos episódios desta trama?



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