Corações Perdidos escrita por Syrah


Capítulo 38
38. Precisamos falar sobre Alice




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A EXPRESSÃO DE Dean oscilava entre o choque, a surpresa e uma pitada perceptível de incredulidade.

Podia apostar que ele estava refletindo sobre o que eu acabara de contar e imaginando inúmeras coisas, além de estar pensando o pior sobre a situação — sobre Justin. Talvez até sobre mim. E eu sabia muito bem que não havia como convencê-lo do contrário; eu mesma pensei o pior durante muitos anos. Não culpava Dean por suas conclusões, tampouco tinha a intenção de mudá-las.

— Podemos voltar só um pouco na história? — pediu o loiro, parecendo um tanto perplexo. — Eu não entendi bem. O que exatamente você quis dizer com "Justin matou Alice"?

Revirei os olhos. Era óbvio que a revelação tinha batido com força demais em algum lugar antes de entrar completamente em sua cabeça.

— Quis dizer que, quando o carro deu três giros completos pra fora da pista e bateu contra uma árvore a duzentos metros do acostamento, era Justin manipulando a situação — expliquei, tomando o cuidado para não demonstrar a pontada de irritação que me afligia naquele momento. — Ele tinha o objetivo de matar alguém naquela noite, só não contava que eu estaria ali pra ser levada de bônus.

Dean franziu o rosto, como se algo em meu discurso não se encaixasse com o restante.

— Eu não entendo — disse, confuso. — Por que Justin mataria Alice e Theo? Achei que líderes de clãs de raça não se envolvessem com assuntos relacionados a "meros humanos" — ele fez sinal de aspas com os indicadores ao dizer isso — ou, nesse caso, membros de outro clã. Pensei que essas criaturas não interagiam entre si. Sem ofensa — ele me encarou de mãos erguidas, como de pedisse desculpas.

— Não ofendeu — dei de ombros.

O loiro assentiu uma vez, prosseguindo:

— Além disso, você disse que Justin te salvou do afogamento — continuou ele, parecendo um daqueles detetives particulares de filmes quando resolvem juntar os vários fragmentos de suas investigações em busca de um caso sólido. — Qual o propósito de planejar o assassinato de uma Grace e poupar a vida de outra na mesma noite? Não faz sentido pra mim.

Eu me ajeitei onde estava, respirando fundo por um momento. Notei que os raios de Sol começavam a se tornar ligeiramente opacos e me perguntei que horas eram. Quanto tempo havia se passado desde que Dean e eu estávamos conversando? Um hora? Duas? Talvez Sara já tivesse se cansado da demora e ido embora àquela altura. Eu não sabia dizer se aquilo era bom ou não.

Me virei para o Winchester novamente, mirando seus olhos enquanto esclarecia a situação:

— As respostas para as suas dúvidas são simples — eu disse, dando um ligeiro sorriso. — Primeiro: sim, é verdade que os clãs de raça e seus líderes não se envolvem com assuntos que não dizem respeito a seus próprios interesses, porém, Justin não era líder dos Diurnos naquela época, apenas um aspirante a tal — expliquei. Dean franziu o rosto outra vez, mas não disse nada, apenas concordou. — Segundo: ele não tinha a intenção específica de matar um Grace naquela noite. Sendo totalmente honesta, Justin sequer sabia que Alice estava envolvida na confusão, apenas fez o que lhe foi mandado.

Eu sentia que um nó começava a se formar na cabeça do meu parceiro enquanto ele buscava entender o que eu dizia, e não podia culpá-lo por isso.

Dean fez uma careta, se limitando a perguntar:

— E o que isso quer dizer?

— Quer dizer que Justin foi encarregado de matar dois dos novos recrutas dos Remanescentes naquela noite, mas que não sabia das suas identidades — contei, menos indiferente do que pretendia. — Não que isso fosse fazer alguma diferença, eles não deixariam que ele trocasse de vítima de qualquer forma.

Dean balançou a cabeça, perplexo e até um tanto incrédulo, eu diria.

— "Trocasse de vítima" — repetiu, estagnado. — Mas por quê?! — indagou, sem entender. — Por que ele iria atrás de outro clã por sangue? Achei que essas organizações preferissem discrição a guerras.

Dean parecia revoltado, como se eu houvesse acabado de dizer que Justin havia assassinado um parente seu ou algo do tipo. Eu quase ri da ironia em meus pensamentos. Sua revolta me lembrava bastante como eu mesma tinha reagido, anos atrás, ao descobrir toda a situação. Infelizmente, percebi que falar sobre aquilo não havia se tornado mais fácil desde então.

Encarei o Winchester, suspirando.

— Não conheço a história toda, e nem faço questão — disse indiferente. — Tudo o que sei é que pouco antes do acidente, os Remanescentes haviam mexido com os Diurnos e assassinado um dos novos recrutas deles. Se tal ato foi intencional ou não, nunca saberemos, apesar de eu ter minhas dúvidas. — Minhas mãos se cruzaram sobre meu colo enquanto eu desenrolava a história com o máximo de calma que conseguia. — O clã de vampiros viu isso como uma afronta e decidiu devolver na mesma moeda. Eles ofereceram uma provação ao até então aspirante a líder: matar os dois novos membros dos Remanescentes e provar seu valor ou morrer se recusando — contei. — Justin não sabia quem eram os recrutas na época, só que precisava matá-los, e assim o fez.

Eu respirei fundo, buscando acalmar meus batimentos. Havia descoberto que aquela história era de fato verídica, cada parte dela, de uma maneira não muito agradável. E mesmo sabendo disso, acho que nunca consegui realmente perdoar Justin pelo que fizera — à Alice e à minha familia. Era como uma ferida que nunca cicatrizava realmente, e sangrava sempre que alguém decidia remexer.

— Como você sabe dessas coisas? — perguntou Dean de repente, ligando os pontos. — Você disse que quando decidiu ir atrás da sua irmã, ainda não sabia dessa história. Então, como descobriu sobre tudo?

Eu suspirei.

— Quando Alice morreu, fui atrás do líder dos Remanescentes, Maxwell, em busca de respostas — contei. — Eu ainda não sabia que minha irmã e o namorado haviam se transformado, mas sabia que o clã de lobisomens estava envolvido na morte porque Justin havia me contado. Ele fez questão de ser claro comigo quanto à situação.

Dean fez uma careta para a declaração.

— Justin? Vocês conversaram depois do acidente? — perguntou, não fazendo esforço para esconder sua reprovação.

— Sim. Muitas vezes. — Eu ignorei o olhar acusatório de Dean e continuei explicando: — Ele me disse o que tinha acontecido. Contou sobre a tarefa que os Diurnos lhe tinham imposto e que não tinha escolha senão realizá-la. Confesso que foi difícil acreditar em toda essa história de clãs de raça no início, mas eventualmente eu cedi à curiosidade e, bem, a verdade veio à tona — fechei os olhos, inclinando o rosto para trás e respirando fundo outra vez. — Eu não sou imbecil a ponto de defendê-lo, Dean, mas também não sou uma pedra apática. Ele não teve escolha, isso é um fato — contei, séria. — Era aquilo ou entregar o irmão mais novo pra liderar em seu lugar. E tenho certeza de que amor fraterno é algo que você entende bem.

Dean cerrou os punhos, desviando o olhar e ficando em silêncio. Eu sorri, satisfeita por conseguir fazê-lo se calar por um segundo que fosse.

— Enfim, foi assim que eu soube de tudo — contei. — Se lembra do cara que Sara mencionou lá dentro? O que está comandando os Remanescentes agora e colocou um alvo nas costas dela?

Dean assentiu.

— Lucian Grey-alguma-coisa, acho que era isso. O que tem ele?

— Lucian já era o braço direito de Max naquela época, quando Alice e Theo se envolveram — expliquei. — Foi ele quem me recebeu quando fui atrás de Maxwell, e não posso dizer que foi uma recepção das mais calorosas — suspirei. — Lucian disse que se minha irmã havia morrido na companhia de um filhote, que é como eles chamam os recém transformados, era porque Alice era inteiramente responsável por isso e eu era nada mais senão uma idiota se estava ali em busca de respostas. — Fiz uma pausa, mordendo o lábio antes de continuar. — Felizmente, Max apareceu e parecia disposto a me ajudar. Eu devia saber que ele tinha segundas intenções desde aquela época. O líder dos Remanescentes prometeu me contar a verdade por trás do envolvimento de Alice com o seu clã se eu ficasse lhe devendo um favor. Lembro de questionar o que diabos alguém como Maxwell poderia querer de alguém como eu, mas naquele momento não liguei muito pra isso, só queria respostas — dei um sorriso fraco. — Agora me pergunto se valeu a pena.

Dean abafou uma risada.

— A verdade absoluta por alguns dias de babá? — perguntou sarcasticamente. — Não me parece tão ruim assim.

Eu ri — gargalhei, na verdade.

— É, pensando por esse lado — sorri. — De qualquer forma, ele não foi tão ruim assim. Apesar de não gostar do clã ou dos ideais que defendia, acredito de verdade que Max era alguém bom. Theo e Alice teriam estado em boas mãos, se as coisas não houvessem dado tão errado antes.

Dean pareceu refletir por um segundo.

— Você admirava muito ela, não? — perguntou por fim. — Alice.

Assenti seguramente. Ele não tinha ideia do quanto.

— Muito — respondi enquanto sorria levemente. — Pense em alguém que nasceu pra isso, Dean — contei, encarando o chão com um interesse renovado. — Alice era perfeita. Ela existia pra isso, pra esse mundo. Ninguém a superava, exceto o nosso pai. — Dean me observava com uma curiosidade calculada, evitando me interromper. Ele sabia que eu raramente me abria com relação ao meu passado, e acho que estava aproveitando o momento. — Eu achava engraçado porque, enquanto eu visava equilibrar minha vida normal com a parte caçadora, minha irmã parecia disposta a abandonar todo o resto para permanecer no mundo sobrenatural atrás de monstros.

Dean assentiu, como se aquele tipo de atitude lhe fosse perfeitamente natural.

— Às vezes não temos escolha a não ser nos adaptar — foi o que respondeu.

Era uma declaração da qual eu não poderia discordar.

— Em certos aspectos, você lembra um pouco ela — eu disse.

O loiro sorriu e deu de ombros.

— Suponho que sua irmã devia ser uma garota linda e incrivelmente inteligente, então.

Eu soquei seu ombro em resposta, o que fez com que ele risse.

— Também era irritantemente narcisista e tinha o pior senso de humor do universo — acrescentei de brincadeira.

Aquilo não era bem verdade. Alice era mais engraçada que eu na maioria das vezes. Dean também, mas ele não precisava saber disso.

— Então... seu mundo perfeito seria algo longe disso tudo? Uma vida normal, eu suponho — disse o Winchester de repente, parecendo interessado. — Acho que não devia me surpreender.

É provável que a tentativa fosse apenas mudar de assunto, mesmo assim, sua pergunta me fez refletir por um instante.

— Não — respondi baixinho.

Dean ergueu uma sobrancelha, surpreso.

— Não? — repetiu, confuso.

Respirei fundo, brincando com a grama que se dispersava ao redor de minhas botas. Os farelos úmidos do solo dançavam em minhas mãos e escapavam por entre meus dedos com facilidade. Aquilo provocava uma sensação relaxante, ao mesmo tempo em que me ajudava a organizar meus pensamentos e fornecer uma resposta coerente à pergunta de Dean.

— Acho que essa foi a falha daquele Djinn, sabe? Me mostrar aquele mundo; intacto, confortável e perfeito em excesso — sussurrei enquanto fitava o chão. As palavras soavam estranhamente doces em minha boca, como se fosse o certo a fazer colocá-las para fora. — Eu não me importo com aquela vida, não mais. Já faz um tempo desde que decidi deixar Emma Grace, a estudante comum da Califórnia, pra trás, e hoje sei que não posso viver sem o que me tornei — virei o rosto para a direção oposta à sua, contemplando a casa de Bobby ao longe. A residência projetava uma sombra gigantesca nos fundos da propriedade, por pouco não alcançando o lugar onde eu e Dean estávamos. — Acho que uma pequena parte de mim ainda sonha em ser uma universitária ou ir a festas do colégio, talvez até sair com alguns garotos, provavelmente dispensar alguns outros também. — Escutei sua risada enquanto eu confessava e não pude evitar um sorriso. — Mas essa é uma parte mínima e irrelevante agora. Eu tenho um propósito, e é impedir que a vida de algumas pessoas precise se tornar o inferno que a minha foi um dia. Eu conheço a dor de perder aqueles que você ama — fiz uma pausa, refletindo meu próprio discurso por um instante, antes de acrescentar: — Eu sei quem sou e, principalmente, sei que não trocaria essa vida por nada.

Dean não respondeu de imediato, parecia estar pensando no que eu acabada de dizer. O silêncio nos abraçou novamente — agora um pouco mais agradável que antes — e me permiti arranjar uma nova posição nas escadas; estiquei as pernas da forma mais confortável que consegui e me apoiei nos cotovelos, fazendo uma pausa e respirando fundo. Era estranho estar ali. A sensação de paz não era comum, mas definitivamente bem vinda.

Por fim, suas palavras saíram em um tom suave e descontraído, levemente curiosas. Diversão dançava em sua voz, o que me fez sorrir por um instante.

— E o que você é, Emma Grace? — indagou o Winchester.

Eu me virei para encará-lo. Meus lábios se esticaram em um sorriso um pouco mais amplo e dei de ombros.

— Sou uma caçadora. Nasci, cresci e treinei pra isso. E sou ótima no que faço, diga-se de passagem — ele revirou os olhos.

— Quase tão boa quanto é se gabando — retrucou o loiro.

Uma risada se fez presente entre nós, e não lembro bem quem começou, mas sei que acabou resultando em uma crise que demorei vários segundos para controlar. Quando consegui enfim normalizar minha respiração, notei que Dean me observava do canto do olho. Ele também tinha se deixado levar pelo humor; parecia a primeira vez em dias desde que tínhamos rido tão genuinamente.

Meus olhos pousaram sobre os seus e dei um pequeno sorriso. Havia bastante significado ali, eu só torcia para que ele pensasse o mesmo.

— Eu amo essa vida, Dean — acrescentei por fim. O loiro assentiu, partilhando da minha opinião, ou talvez apenas notando o peso dos sentimentos por trás de minhas palavras. — E o erro daquele Djinn foi não ter percebido isso desde o início.

Subitamente, uma lufada gelada de ar nos surpreendeu, sobrepondo o vento morno e aconchegante da tarde e me fazendo tremer um pouco. Olhei para o céu outra vez; estava em um tom que beirava uma espécie de laranja acinzentado, e algumas estrelas já despontavam na imensidão. Pisquei algumas vezes, aturdida — como havia ficado tão tarde assim de repente?

— Opa, acho que nossa sessão nostalgia levou mais tempo que o esperado — Dean notou o mesmo que eu e me ofereceu um sorriso travesso enquanto esfregava as mãos na barra da calça. — Acho que à essa altura o Sammy já deve estar exausto de bancar a babá.

Eu coloquei uma mão na testa, me dando conta do tempo que havíamos passado ali.

— Ela já deve ter cansado de esperar e ido embora! — sussurrei, aturdida.

Dean riu como se eu houvesse contado uma piada bastante engraçada. Então seu olhar caiu sobre mim e ele revirou os olhos, ainda bem humorado.

— Duvido que aquela garota saia daqui hoje sem te convencer, você arranjou uma bela rival no quesito teimosia, sabia? — resmungou com um tom sugestivo de humor na voz.

Eu estava prestes a responder, quando um ronco familiar de motor nos interrompeu. Eu e Dean olhamos ao mesmo tempo para o caminho que contornava os fundos da casa, a tempo de ver um carro conhecido cruzar os limites da propriedade e estacionar ali perto com uma guinada exagerada. Os faróis ainda estavam acesos quando o motorista desceu da caminhonete e xingou alguns adjetivos nada gentis para o motor do veículo, desligando o mesmo e seguindo direto para dentro da casa.

Dean deu uma gargalhada alta, reconhecendo imediatamente o dono daquele vocabulário tão rebuscado.

— É o velho — anunciou o óbvio, já se pondo de pé e abanando a poeira dos jeans surrados outra vez.

Eu duvidava que mais alguém em um raio de vinte quilômetros conhecesse uma variação linguística de palavrões tão extensa. Talvez Dean, esse era bem provável.

— Não brinca — resmunguei sorrindo.

Dean assentiu e me estendeu uma mão solidária. Como não a aceitei de imediato, ele ergueu uma sobrancelha. Sua expressão era sarcástica o suficiente para que eu quisesse socá-lo, como geralmente era o caso. Força do hábito, sabe como é.

— Devíamos voltar — o loiro sugeriu, a mão ainda estendida insistentemente em minha direção. — Bobby vai querer saber o porquê de uma adolescente lobisomem de dezesseis anos estar sentada em seu sofá de couro predileto enquanto é interrogada por Sam.

Eu fiz uma careta para sua colocação de palavras, suspirando e por fim aceitando o convite. Agarrei sua mão e me ergui em um impulso, também abanando a poeira de minhas roupas e me esticando um pouco.

— Ela tem dezessete — corrigi. — E você também sentou na poltrona de couro favorita dele, a propósito — citei. Dean me fitou com curiosidade por um instante. — Devo mencionar esse fato também?

O Winchester sorriu para mim com certa cumplicidade.

— Eu não conto se você não contar, que tal? — sugeriu. Seus olhos passearam pelos fundos da casa uma vez antes de se voltarem para mim e ele não esperou por uma resposta antes de acrescentar: — Vamos?

Abri um sorriso para suas palavras, concordando.

— Depois de você.

Dean devolveu o sorriso e, juntos, passamos a caminhar em direção à casa.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo: O grupo está reunido de novo, e com uma não tão nova novidade assim: os Remanescentes. Já ouvimos falar bastante desse clã até aqui, mas o fato é que ainda não conhecemos sua história. Quem são, de fato, os Remanescentes? Como surgiram? E por que são tão poderosos? Vocês estão prestes a descobrir.



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