Corações Perdidos escrita por Syrah


Capítulo 37
37. As irmãs Grace, pt. II




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POR QUANTO TEMPO alguém é capaz de viver acobertando uma mentira?

Se me fosse pedida a resposta para essa pergunta alguns anos antes, eu diria que o período seria relativo. Alguns conseguem manter um segredo por décadas, outros não são aptos a esconder algo por mais que algumas horas. Tudo depende da pessoa que carrega tal história consigo e do peso por trás das palavras que ela insiste em velar.

No meu caso, fui capaz de manter sigilo por pouco mais de uma década. Anos após a morte de Alice, a ideia de que Emma Grace, a garota da cidade dos anjos, tinha uma irmã, nada mais era senão uma simples suposição. Alguns se atreviam a perguntar, mas minha resposta se mantinha a mesma. Sempre.

Cale a boca. Funcionava na maioria das vezes. Quando a técnica parecia não dar certo, eu apelava para o "curta e grossa". Acidente de carro. Noite chuvosa. Pista escorregadia. As palavras eram quase um código em minha cabeça. Com o tempo, até mesmo isso deixou de me escapar. As pessoas haviam deixado de questionar, e eu não fazia questão de responder à curiosidade remanescente, não mais. O padrão se manteve por anos, e não posso dizer que me esforcei para quebrá-lo.

Mas isso foi só até a chegada de um certo alguém. Ele. Então tudo havia se tornado um borrão e de repente eu não era capaz de manter meu sigilo intacto.

Dean Winchester havia feito uma bela bagunça em minha vida, embora não parecesse estar ciente disso.

— Afinal, o que houve com a sua irmã? — perguntou o loiro após eu lhe contar minha história. — Está tudo perfeito demais até agora. E não é preciso ser um gênio para entender que nada disso teve um final feliz. — Ele desviou o olhar, antes de acrescentar baixinho: — Você não estaria aqui se fosse o caso.

Não, não estaria, pensei. Mas as histórias de nosso passado raramente tem o final feliz que esperávamos para elas.

Ergui o rosto para o céus, inspirando uma lufada de ar fresco antes de continuar. Havia algo no simples ato de refletir que tornava a situação menos... sufocante, eu acho. Opressora.

Olhei outra vez para o Winchester, que permanecia encarando o horizonte. Dei de ombros, retomando a voz:

— Não sei exatamente se isso teve mesmo alguma influência, mas acho que o fato de Alice não estar presente quando nossa mãe morreu a afetou mais do que devia.

Dean suspirou.

— Por que diz isso? — ele parecia, assim como eu, refletir toda aquela situação.

— Ela se tornou obcecada, foi o que aconteceu — contei. — Depois de nossa mãe, nosso pai decidiu que era hora de "voltar às antigas" e começou a nos treinar. Foi perceptível desde o início quem de nós duas era a mais dedicada à tarefa — fiz uma pausa momentânea antes de continuar. — Alice era... focada, pra dizer o mínimo.

"No início, treinávamos cerca de cinco horas por dia. Exercícios básicos primeiro; defesa pessoal, postura e manuseio de algumas armas básicas, como adagas e estacas. Eu treinava durante esse tempo, ao menos. Minha irmã era... um pouco mais ansiosa. Sim, essa é uma boa palavra pra descrever, eu acho. Começou com leituras fora do horário — na biblioteca da escola, intervalo das aulas e às vezes durante o jantar —, depois passou a pequenas demonstrações, como ela chamava, fora das sessões. Eu a acompanhava algumas vezes, é claro, mas não todas. Eu não tinha o mesmo empenho que minha irmã mais velha para aprender as técnicas daquela nova realidade para a qual tínhamos sido apresentadas. De qualquer modo, quando notamos o óbvio, Alice já estava matando metade dos períodos escolares só para estudar sobre monstros e aprender a lutar. Talvez por isso ela tenha melhorado tão rápido, ao passo que eu ainda estava me acostumando às posturas e aquecimentos. Ou talvez ela fosse mesmo um prodígio nessa área, vai saber."

"Finalmente, papai resolveu intervir e conversar. Ele estava preocupado com a fixação que a filha mais velha tinha adquirido pelo novo mundo ao qual tinha sido apresentada, obviamente, e não tinha a intenção de mantê-la naquilo se isso fosse causar algum distúrbio a longo prazo. Nosso pai não tinha a intenção de nos transformar em caçadoras, ele só queria que soubéssemos nos defender contra qualquer coisa por nós mesmas. E nessa parte eu preciso concordar com meu velho; mesmo eu, que no início não via problema na insistência de Alice naquilo, comecei a repensar sua fixação pelas atividades extracurriculares. Não preciso dizer que minha irmã achou nossa preocupação totalmente desnecessária, e que a conversa não correu do modo mais perfeito possível. Por fim, nosso pai decidiu que era hora de fazermos uma pausa do treinamento. Acho que ele pensava que assim conseguiria nos distrair — distrair Alice, sendo mais precisa — dos acontecimentos das últimas semanas."

Fiz uma pausa, organizando meus próprios pensamentos enquanto deixava meu parceiro digerir as informações.

Dean encarava o chão com a testa franzida, como se algo o incomodasse.

— Ela nunca contou a você o porquê de estar tão vidrada em se tornar uma caçadora? — perguntou baixinho.

Algo me dizia que ele mesmo já havia formado uma teoria para a própria pergunta, e que estava certo sobre ela.

Fiz que sim com um aceno.

— Ela contou, sim, mas demorou um pouco. Um pouco demais, na verdade — cruzei as mãos sobre o colo e comprimi os lábios, suspirando. — Eventualmente contei ao nosso pai, mas nesse ponto não havia mais retorno e, sendo honesta, acho que nunca houvera antes, de fato, um retorno para os sentimentos de Alice a respeito daquilo tudo.

"Foi cerca de um ano e meio depois da morte da nossa mãe. Fomos levadas para acampar na Carolina do Sul. Era um programa que adorávamos quando mais novas, especialmente Alice — talvez por isso papai tenha achado que seria uma boa ideia. E ele estaria certo, não fosse o fato de que éramos acostumadas a fazer trilha sozinhas antes do pôr do sol, somado à questão de que a montanhas por ali eram dominadas por um ninho de vampiros escondidos. Não imagina o quão felizes aquelas seis criaturas ficaram ao encontrar duas crianças desacompanhadas em uma trilha solitária bem no centro do seu território."

Após a última frase, notei que Dean inspirou com força, surpreso.

— Vocês foram cercadas? — perguntou. Eu assenti. — E o que aconteceu?

— Fomos levadas a uma cabana alguns quilômetros a oeste da trilha — contei, quase como se relatasse uma excursão ao parque, algo longínquo que outrora fora um programa divertido. Aquilo não havia sido divertido. — Lembro que estava apavorada e não parava de tremer. Apesar de já ter estudado sobre aquelas criaturas, nunca tínhamos estado cara a cara com uma antes. Os vampiros que tinham nos achado faziam piadas relacionadas a contos de fadas como Chapeuzinho Vermelho ou João e Maria. Diziam que eu e Alice havíamos tido o azar de "encontrar a bruxa antes da casa de doces". Sim, eles eram bem estúpidos, isso era óbvio.

Dean sorriu um pouco.

— O que fizeram depois?

Eu pensei um pouco. As memórias sobre aquele dia em particular eram turvas e nubladas, de modo que precisei me esforçar para lembrar do resto.

— Eles nos trancaram na cabana, bem longe de onde tinham nos achado. Nos amarraram e, acredite se quiser, adormeceram. Dá pra acreditar? — eu ri um pouco ao lembrar. Minha risada saiu seca e sem humor algum.

"Eu achei que aquele fosse o fim. Pensava que a qualquer minuto aquelas coisas acordariam, pulariam em nossos pescoços e rasgariam nossas gargantas como os animais famintos que eram. A esperança de nosso pai nos encontrar já era ofuscada pelo medo irracional. Eu me sentia impotente, inútil. Apesar disso, era capaz de reconhecer a fúria que crescia em mim e o ódio nutrido aos poucos em meu âmago por aqueles monstros. Não sabia exatamente como, mas sabia que se saísse viva dali, faria aqueles sanguessugas se arrependerem de terem posto as mãos em mim e na minha irmã. A questão era: eu não tinha como fazer isso. O que uma garotinha de oito anos faria contra meia dúzia de seres com força sobre-humana estando amarrada? Não muito, eu digo."

"Lembro que Alice estava estranhamente calma naquele dia. Quero dizer, ela sempre foi, de nós duas, a filha que herdara o dom da paciência, mas naquela tarde isso parecia excepcionalmente conveniente. Em determinado momento ela até falou comigo, tentando me tranquilizar. Fique calma, tudo vai dar certo, minha irmã dizia. Eu não acreditei, como poderia? Seis vampiros contra duas garotinhas. Eles no máximo iam estraçalhar a primeira de nós com velocidade excessiva e partir com ainda mais fúria para a próxima. Estávamos perdidas, eu achava."

"Mas, por incrível que pareça, meu pai nos encontrou algumas poucas horas depois. Eu sabia que não tinha passado muito tempo porque ainda era capaz de ver os raios de sol sob as frestas da velha cabana. Eu ainda não sabia, mas existia uma boa razão para que Adam Grace fosse considerado um Rastreador já naquela época. Ele não levou mais que alguns minutos para cuidar da situação; matou três vampiros que ainda dormiam — cortou suas cabeças com tanta agilidade que nem parecia humano —, cuidou de outros dois enquanto acordavam dando a eles um banho de sangue do morto e uma morte rápida, e lutou habilmente contra o último deles. Não demorou muito e logo haviam três pares de corpos decapitados no chão de cabana, e algumas cabeças fora do meu campo de visão. Foi a cena mais assustadora e incrível que eu tinha visto até então — assustadora porque não sabia como meu pai derrotaria seis vampiros sozinho, e incrível porque ele de fato fez isso."

"Eu fiquei estagnada, chocada com o que acabara de presenciar. Quem era aquele homem? Não parecia o simples marceneiro que gostava de trabalhar com carros velhos no interior da sua garagem no seu tempo livre, não. Naquele dia, eu encarava meu pai como se ele fosse uma espécie de super-herói ou algo do tipo. Pra mim, ele de fato era. Ele nos libertou logo em seguida, perguntando várias e várias vezes se estávamos bem, ou feridas, se aquelas coisas tinham nos feito algo antes de ele chegar. Eu disse que não, que estávamos bem, só com os pulsos um pouco doloridos pelas correntes. Meu pai sorriu e afagou meus cabelos, então fez algo que me deixou um tanto confusa: ele se abaixou para ficar na minha altura, me abraçou e sussurrou um 'sinto muito' em meu ouvido. A parte estranha disso não foram suas palavras, é claro, mas o fato de que ele só as havia dito a mim. Em momento algum repetiu o mesmo para a minha irmã, e aquilo me deixou incomodada. É claro que, depois de saber o motivo — o que não levou mais que alguns segundos —, minha curiosidade em relação aquilo foi substituída pela raiva, e não lembro de outra vez em que tenha ficado tão furiosa com algo naquela época."

"Assim que pode, Alice correu em sua direção. Ela se precipitou sobre nosso pai, mas não foi para abraçá-lo nem nada do tipo, pelo contrário. Eu diria que minha irmã estava incrivelmente afim de testar seu gancho de esquerda naquele momento, e inclusive tinha um alvo específico para tal. Precisei de alguns segundos para entender que minha irmã não estava nem de longe tão agradecida quanto pensei que estivesse. Como eu estava. Na verdade, Alice estava furiosa. Com ele. Eu só não sabia o motivo. Ainda."

O olhar de Dean era minucioso sobre mim.

— O que ele fez? — perguntou. — O que... o que Adam fez?

Eu suspirei.

— Os dois sabiam, ele e ela, desde o início. Sabiam sobre os vampiros nas montanhas, sobre o ninho deles e todo o resto — respondi. — Sabiam o suficiente para acabar com eles. Mas Alice achou que poderia fazer isso sozinha. Ela pensou que devia, de alguma forma, provar algo, e partiu em uma caminhada solitária. Ela só não contava comigo pra estragar seu plano suicida.

"Ela e meu pai brigaram, outra vez, pra variar. Ele a acusou de agir irracionalmente, de por a minha vida em risco e a dela mesma. Minha irmã berrou que não precisava de ajuda alguma, que nós nunca havíamos estado em perigo e que ela tinha tudo sobre controle. Não posso dizer que acreditava naquilo, mas, olhando em seus olhos enquanto dizia aquelas coisas, percebi que ela acreditava. Alice realmente achava que poderia acabar com aqueles vampiros sozinha e nos salvar. A convicção em seu olhar era tanta que quase me convencia — a mim, mas não ao nosso pai. Eu não saberia dizer qual dos dois estava mais furioso ou chateado com o outro, mas sabia quem havia se decepcionado mais — naquele dia, percebi a dor que meu pai sentia por tudo o que vinha acontecendo com Alice. Ele não só sentia o quão longe ela estava de nós, como também se culpava por aquilo tudo."

"Lembro que fiquei furiosa com essa percepção. Muito mesmo. Perguntei a minha irmã o porquê de tudo aquilo. Se ela sabia que corríamos perigo, então por que havia se arriscado? Isso eu não entendia. Mas Alice negou outra vez; disse que nunca houvera de fato um risco, que ela se garantia contra aquelas coisas e que, inclusive, teria derrotado cada um dos sanguessugas e nos libertado, caso nosso pai não tivesse aparecido e "estragado tudo". Eu gritei que alguém como ela não era páreo para seis vampiros famintos e ela gritou de volta que eu estava errada, que não entendia nada. Notei algo de diferente em sua voz. Alguma coisa em seu tom tinha mudado, mas eu não sabia o quê. De repente, olhando em seus olhos, eu percebi que ela estava furiosa outra vez. Comigo."

Respirei fundo, fazendo mais uma pausa. Dean piscou, concentrado, então franziu o rosto aparentando estar incomodado.

— Por quê? — foi o que perguntou.

— Porque eu havia insinuado que ela era fraca demais pra algo — confessei, me sentindo tão culpada quanto na época. — E eu soube disso no momento em que nossos olhares se cruzaram. Então eu entendi. Pude perceber as motivações dela por trás da fixação com a nossa "segunda" vida e o empenho que tinha em ser tão boa no que fazíamos. — Dei uma risada amarga, sem humor algum. As coisas eram tão claras agora que chegava a ser engraçado que eu não tivesse percebido de cara na época, mas como poderia? — Alice queria ser mais forte porque se sentia impotente, da mesma forma que eu me senti naquela cabana, atada à morte iminente. Da mesma forma que se sentiu quando descobriu que nossa mãe morrera sem que pudesse fazer nada para ajudar, sem que sequer estivesse lá para tentar — fiz uma pausa, enxugando rapidamente uma lágrima teimosa sob meus olhos. — Além disso, ela também confessou que almejava matar o demônio que havia tirado a vida de Elena.

"A percepção de tudo aquilo foi como a explosão de uma supernova em minha cabeça. A ideia de que minha irmã tinha em mente um plano obcecado de vingança há meses era quase irracional — ao mesmo tempo em que totalmente óbvia. Eu tinha vontade de gritar com Alice, sendo sincera. Por que ela estava com tanta raiva, afinal? Eu é quem tinha presenciado a morte da nossa mãe. Eu é quem tinha assistido a tudo impotente e estática. Pior que isso: eu era a pessoa que tinha fugido como uma covarde enquanto nossa mãe corria até mim e tentava me matar. Então, por que diabos era ela quem estava furiosa e obcecada em se vingar? Não fazia sentido pra mim."

Outra pausa. Dean fez menção de mover a mão — talvez para segurar a minha em sinal de solidariedade, ou talvez apenas quisesse gesticular algo —, mas mudou de ideia. Ele então se virou para mim e sussurrou:

— Desculpe, acho que entendo. Digo, ela. Eu entendo ela.

Eu sorri de modo complacente.

— Eu imagino que sim. De qualquer forma, eu também devia entender, mas não conseguia — respondi. — Acho que parte de mim só estava furiosa porque sabia que estava perdendo a própria irmã para uma vida que até então eu não queria ter.

Dean pareceu surpreso com essa última declaração.

— Não queria? — perguntou.

Havia algo mais além da curiosidade em seu tom que eu não consegui identificar. Ele parecia quase... frustrado, acho.

Eu dei de ombros.

— Não me leve a mal, Winchester. Caçar era divertido, sempre foi — eu sorri para ele, sincera. — Mas nós não caçávamos naquela época, só éramos ensinadas. Como eu já lhe disse, meu pai não queria realmente que entrássemos nesse mundo — fiz uma pausa, suspirando. — Ele só queria ter certeza de que, caso fôssemos introduzidas a isso, já soubéssemos nos defender. Ele já tinha perdido a esposa, não queria perder as filhas também.

Outra pausa. Dean parecia avaliar minhas palavras. Por fim, ele disse:

— E o que houve depois da discussão de vocês duas? — perguntou, ignorando deliberadamente o outro rumo da conversa.

Eu suspirei, decidida de que continuar por aquele caminho não era mesmo uma boa ideia.

— Eu contei ao nosso pai, é claro, mas não de imediato — expliquei, desviando o olhar para o chão e franzindo o rosto. A partir dali as memórias ficavam mais claras, então era fácil descrever. — Não que fizesse diferença, aposto que ele já tinha percebido tudo até então. Mesmo assim, carreguei comigo por tempo demais o peso das palavras de Alice e a percepção de seus objetivos. Aquilo me sufocava; eu me sentia culpada por esconder do nosso pai, mas também tinha medo de estar traindo-a caso decidisse revelar tudo. Era um impasse intrapessoal e violento, eu me sentia afundando em minhas próprias reflexões.

"No início, acho que tentei convencê-la de que aquela não era uma boa ideia. Primeiramente, estávamos começando a entender melhor o mundo dos demônios, e se nossos estudos estavam sendo produtivos o suficiente, significava que ambas já tínhamos indícios o suficiente para entender que encontrar o mesmo demônio que matara nossa mãe seria praticamente impossível. Ele havia sido exorcizado, e pior, não sabíamos seu nome. Como ela pretendia achar a criatura? Foi então que comecei a reparar nas diversas falhas no plano de Alice. Minha irmã estava tão fixada com a ideia de uma revanche que não parava para refletir sobre a base de suas aspirações."

"Percebi que era hora de fazer algo, de agir. Contei ao nosso pai sobre os planos dela; os dois brigaram feio e discutiram como eu nunca tinha visto antes. Alice gritou comigo, me acusou te tê-la delatado — de tê-la traído. A dor da acusação em seus olhos naquela noite foi quase insuportável, mas eu disse a mim mesma que estava fazendo aquilo por ela. Porque não importava o quanto a machucasse saber que as coisas não dariam certo como imaginava, seria mil vezes pior se ela de fato comprovasse aquilo. E eu não tinha certeza se podia ajudá-la com os danos colaterais depois."

Eu respirei fundo, só então notando que estava prendendo a respiração. Encarei meus dedos; eles tremiam, minhas mãos também. Balancei a cabeça, buscando desviar qualquer pensamento inoportuno. Não vá por aí, eu disse a mim mesma. Não vá.

Relembrar aqueles acontecimentos era como mergulhar em uma piscina olímpica sem aquecimento; fundo demais, frio demais, e com um longo caminho a percorrer até a outra borda — caminho para o qual eu não havia me prepado, embora devesse. Naquele ponto eu começava a me questionar se estava realmente pronta para por tudo aquilo para fora.

Alguém tocou meu ombro. Dean, é claro. Ele me encarou com certa solidariedade em suas orbes esverdeadas, dando um pequeno sorriso quando nossos rostos se observaram por longos segundos.

— Você fez bem, M — sussurrou ele, e parecia sincero. — Fez o que achava correto por alguém que amava. Foi o certo a se fazer, não tem que se culpar por isso.

Eu balancei a cabeça brevemente, concordando.

— Eu sei, não estou me culpando. Não mais. — Seus olhos piscaram com surpresa, confusos. — Só fico me perguntando se ela alguma vez se deu conta do quão desesperada eu estava, sabe? — uma risada amarga escapou de meus lábios e eu suspirei.

"A verdade é que minha irmã foi ingênua inicialmente, mas nunca teve medo. Nunca, nem por um minuto. Talvez achasse, no auge da inocência que ainda restava à pequena Alice, que seu plano era perfeito e sem falhas. Mas não era, nunca foi. E eu sabia disso, e me sentia apavorada de pensar que ela poderia, algum dia, encontrar algum demônio que se aproveitasse da semente de ódio que germinava em seu coração. Me sentia aterrorizada só de pensar na ideia de perder outra pessoa que eu amava pra mais uma dessas coisas. Mais que isso: eu me recusava a deixar que algo assim se repetisse."

Meus olhos marejaram por instantes e foi quanto percebi algumas lágrimas gotejando sobre meus dedos. Rapidamente sequei os olhos, dando uma olhada de esguelha em Dean, mas seu rosto parecia perdido em algum ponto no horizonte.

Respirei fundo antes de continuar:

— Felizmente — ou não — não precisei me preocupar com isso por tanto tempo.

Dean piscou outra vez, surpreso.

— O que houve?

— Ela conheceu alguém. Um cara. Theo. — Contei. — Foi em uma caçada, por mais irônico que isso soe. Estávamos atrás de algumas Vetalas que começaram a capturar homens em um hotel de quinta na entrada de Los Angeles. Salvamos ele e mais um amigo, e a partir daí minha irmã e o garoto se tornaram bem próximos. Apesar de nosso pai nunca ter apoiado, acho que o relacionamento dos dois era uma boa ideia na época. Theo fazia Alice se esquecer do plano de vingança e da obsessão com as caçadas. Ele a tornava mais humana, e ela parecia não ver problemas com isso. Por ora.

Algo latejou em meu peito. Percebi tarde demais o peso de minhas próprias palavras. "Ele a tornava mais humana". Eu jamais havia dito algo tão irônico na vida.

— E por que eu ainda acho que essa história não tem um final feliz? — Dean me olhou com uma sobrancelha erguida, perguntando o óbvio.

— É porque não tem. — Eu disse, pesarosa. Nenhuma das minhas histórias tinha, sendo honesta. — Não tenho dúvidas de que Theo amava Alice e que o relacionamento dos dois era recíproco. Às vezes era até um pouco irritante, sendo sincera — eu ri um pouco ao dizer isso. — Mas, infelizmente, aquela história de amor estava destinada ao fracasso, assim como muitas outras coisas na vida da minha irmã.

"Sabe, depois que eu conheci você e Sam e a história de vocês dois, cheguei a uma conclusão um tanto engraçada: nosso sangue pode não estar relacionado, mas já passamos por muita coisa parecida, e a maioria delas não foi exatamente algo que possamos chamar de "experiência agradável". O fato é que talvez nós, Grace, sejamos como vocês Winchester; uma família um tanto amaldiçoada. E talvez por isso Alice fosse fadada a não ter o final feliz que queria. Que todos nós queríamos pra ela. Minha irmã estava contente com a nova vida que tinha, seu namorado e todo o resto. E até nosso pai, que não gostava muito do cara, aprovava o fato de que ele a fazia mais feliz que tudo."

"Mas então, em algum momento, tudo deu errado. Não sei exatamente quando ou porquê, mas talvez o destino tenha realmente algo contra nós, os Grace. Alice não imaginava que suas expectativas seriam estraçalhadas tão bruscamente, e admito que esse é um dos motivos que me levou a não nutrir o mesmo sentimento desde então. O amor pode iluminar as pessoas, Dean. Mas ele também pode, na mesma proporção, destruí-las de maneira irreparável."

Dean me encarou, desconfiado.

— O que houve, Emma?

Eu suspirei, chateada.

— Theo se transformou — revelei, séria. — Não sei quando aconteceu, nem como e honestamente não me importo. Mas sei que ele foi mordido por um maldito lobisomem em algum momento, e essa foi a ignição pra todas as outras drogas que aconteceram em seguida.

— Ele... espera aí, o quê?! — o Winchester parecia chocado com a reviravolta.

— É, eu sei. Essa foi mais ou menos a mesma reação que eu tive quando soube.

Dean balançou cabeça.

— Ele atacou vocês? — perguntou.

Eu suspirei, desviando o olhar.

— Ele... Bom, na verdade, pode se dizer que ele tentou se afastar de nós. Não sei se porque éramos uma família de caçadores ou porque não queria nos ferir, mas ele de fato tentou se distanciar.

— E não deu certo? — perguntou o loiro.

Eu dei uma risada amarga.

— Se tivesse dado certo, eu provavelmente não estaria aqui com você hoje — respondi.

Dean assentiu sem dizer mais nada. Acho que estava esperando que eu continuasse. Como não falei nada, ele incentivou:

— Então, você não exatamente respondeu a minha pergunta — disse. — Ele atacou vocês?

Eu suspirei outra vez.

— Ele atacou ela. Alice. — Meus olhos se fecharam por um momento enquanto eu refletia minha história. A história dela. — Não sei bem como funciona esse lance de amor, Dean — e mais uma vez, eu estava mentindo. — Mas, se essa coisa existe de verdade, o que Alice sentia por Theo era ainda mais forte. Ela não sabia o que tinha acontecido quando foi atacada, mas não o abandonou quando soube da verdade. Nem mesmo quando constatou que ele havia feito dela o que ela mais temia. O que nós passamos a vida aprendendo a caçar.

Dean puxou o ar, estagnado.

— Ele a transformou também — sussurrou baixinho.

Eu concordei.

— É. E por incrível que pareça, isso só serviu pra aproximar ainda mais os dois — contei. — Decidida a não abandonar o amor da vida dela e convicta de que não queria machucar a própria família, ambos bolaram uma fuga. E essa, meu caro, foi de longe a pior decisão que Alice já tomou na vida. — Meus punhos se fecharam sobre meu colo enquanto uma irritação característica me invadia. — Às vezes fico imaginando se ela faria aquilo de novo sem pensar duas vezes. Sempre chego a conclusão de que minha irmã acharia a própria ideia bastante estúpida se repensasse melhor.

Dean assentiu, sério. Seus olhos estavam fixos em mim e ele parecia avaliar minhas palavras.

— Sinto como se estivesse ouvindo um roteiro inacreditável pra algum filme de ação de Hollywood — comentou com um certo humor sombrio. — Enfim, o que sucedeu dessa fuga?

Eu respirei fundo, me preparando para os próximos acontecimentos. Aquela era sempre a parte mais difícil de contar.

— Eu tinha quinze anos quando aconteceu — sussurrei. Seus olhos estavam fixos nos meus e sua respiração era calma e regular, um contraste quase perfeito com o descompasso acelerado que era meu coração naquele momento. — Era uma noite incomum, disso eu me lembro. Estava frio e chovia bastante, lembro de achar, mais tarde, que aquela devia ser outra metáfora idiota do destino ou qualquer outra força superior para me informar de que tudo estava prestes a dar errado.

— E então?

— Eu não sabia na época, mas naquele ponto os Remanescentes já estavam ligados à minha família — suspirei. — Não sei se você sabe, mas os Clãs de Raça são responsáveis por cuidar de alguns "filhotes" que eles mesmos transformam. Foi o caso de Theo. Ele foi transformado por um membro do clã e por isso foi convidado e se tornar parte da organização. Em troca, eles ofereceram treinamento e prometeram ajudá-lo a controlar o próprio estado. Eles, inclusive, disseram que ele poderia controlar as próprias transformações depois de um tempo. É claro que Theo aceitou, estava desesperado. Creio que o plano inicial era sumir do mapa e ingressar na organização sozinho, mas depois que acidentalmente transformou Alice, ele fez com que eles a aceitassem também. Por algum motivo, disseram sim ao pedido desesperado do garoto. Acho que a ideia de ter uma caçadora entre eles era excitante, provavelmente.

"Então, naquela noite, quando Alice secretamente decidiu nos abandonar e ir para alguma sociedade secreta que eu até então não fazia ideia de que existia, eu me senti traída e furiosa. Era como se todos os anos que trabalhamos juntas desde a morte de nossa mãe houvessem sido jogados no lixo com desprezo."

"E eu fui atrás dela. Tentei alcançá-la. Céus, eu juro que tentei, mas não deu certo. Alice não queria falar comigo, e eu ainda não sabia porquê. Ela estava estranha, com um papo esquisito de querer nos proteger. Falava como se fosse a última vez que conversávamos. Eu ainda não entendia, mas ela estava certa."

— Espera, vocês ainda não sabiam que ela havia se transformado? — interrompeu-me Dean.

Eu neguei com um meneio.

— Não. Eu fui atrás de respostas, mas foi só depois que a tragédia já tinha acontecido, então digamos que fui um tanto inútil nesse quesito.

Dean balançou a cabeça, como se estivesse indeciso entre me contradizer e ouvir o resto da história. Eu prossegui:

— Enfim, não tenho muito o que dizer sobre assa parte, você já deve imaginar o resto — falei, dando de ombros. — Noite chuvosa, dois carros em alta velocidade, pista escorregadia. Basta ligar os pontos — falei. — Meu carro derrapou direto para o rio, mas Alice e Theo não tiveram tanta sorte. O carro dos dois bateu em uma árvore e — acho que isso devia acontecer só nos filmes, mas não foi o caso — explodiu. Infelizmente, a pessoa errada sobreviveu naquela noite. É claro que, depois disso tudo, a única coisa que realmente me surpreendeu foram as circunstâncias irônicas do meu "salvamento".

Dean parecia não saber o que dizer.

— Emma, eu... Eu sinto muito — ele sussurrou.

— Sei que sente. Todos sentem — respondi, indiferente. — Fui encontrada por um amigo mais tarde, um caçador também, mas eu já estava fora do lago naquele ponto. Acordar foi uma das piores coisas que fiz naquela noite. Porque, por mais irônico que soe, acordar só fez com que o pesadelo se tornasse dolorosamente real.

Dean abaixou o rosto, pesaroso. Ele realmente não tinha ideia do que responder e eu não o culpava. Um silêncio pesado se instalou entre nós, como se de repente a gravidade houvesse entrado em colapso. Eu me senti de volta àquela noite, as lembranças me preenchendo como a água em meus pulmões na ocasião. A situação era diferente, mas a sensação permanecia a mesma.

— Por que você disse que seu salvamento foi algo irônico? — perguntou Dean, depois de um certo tempo.

Eu suspirei.

— Porque meu salvador foi justamente meu pior inimigo: o assassino de Alice. Pior que isso, eu o conhecia bem — contei, aturdida. — O conhecia bem até demais. O suficiente para saber que, assim como eu, ele estava tão abalado na época com o que acabara de fazer que não seria capaz de sentir o remorso de imediato.

O olhar de Dean endureceu, como se o loiro soubesse exatamente de quem eu estava falando. Respirei fundo, dando de ombros antes de continuar:

— Eu não vi seu rosto quando meu carro bateu, mas o vi quando ele me visitou dias depois, deixando em minhas mãos o peso de suas ações, como se sua confissão fosse lhe conceder algum tipo de anistia automática — meu semblante ficou frio enquanto eu terminava de falar. — Eu nunca o perdoei, e acho que nem ele mesmo foi capaz disso durante todos esses anos.

Dean franziu o rosto, ainda sério.

— Emma, de quem estamos falando?

Eu suspirei. Um silêncio abrasador se instalou entre nós. Finalmente, outro segredo seria revelado. Outro fardo.

Eu estava prestes a desdobrar outro fragmento do meu passado, um que seria mais pesado que todos os outros, e também mais doloroso — e o olhar de Dean era suficiente para que eu entendesse que, assim como eu, ele também sentia, perfeitamente, o peso daquelas palavras.

— Estamos falando de Justin Blake — respondi friamente. — Foi ele quem me salvou da morte naquele noite, depois de matar minha irmã e o namorado, dez anos atrás.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo: Chegamos a parte final do passado de Emma. Aqui, nossa caçadora revela seus últimos "fantasmas" para Dean, o que leva ambos a tomarem uma decisão definitiva com relação à Sara. Bobby está de volta e quer respostas, enquanto Sam e Sara parecem ter algo a discutir com o Winchester mais velho e nossa caçadora Grace. O que será?



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