Quando eu acordei ainda não tinha amanhecido totalmente. As fissuras no teto me indicavam que logo o dia ganharia vida, com o sol iluminando os locais caverna. Suspirei, tateando o colchão à procura de Jodi. Somente quando eu percebi que o colchão estava vazio, exceto por mim, é que a minha mente começou a trabalhar. O lugar que Jodi ocupava estava frio. Fazia tempo que ela tinha saído de lá.

Mesmo que ela não fosse mais tão importante para mim e que eu estivesse cogitando uma maneira de dizer para ela partir, meu coração deu algumas batidas descompassadas. Apesar de ninguém ter me dito, os acontecimentos do dia anterior me entregaram a verdade imutável. Ela falando que me amava, Ian fazendo questão de lhe falar “durma bem” em uma voz cheia de dor. Ele sabia que ela estava indo dormir. Dormir o sono da eternidade.

Jodi tinha ido embora.

E a percepção imediata daquilo me fez perceber o quanto eu desejava que acontecesse. O quanto eu já estava preparado, pronto. O quanto eu já sabia sem saber. Não tinha precisado nem ao menos pensar ou procurar provas.

Eu simplesmente já sabia.

Eu sentia.

Sem pensar na decisão de Jodi, saltei de minha cama e segui até o consultório de Doc em passos apressados querendo ver minha Sunny. Depois organizaria meus pensamentos. Depois procuraria Ian e perguntaria por que ele tinha me escondido algo tão essencial para minha vida. Depois.

Naquele momento, somente desejava ver os olhos prateados que tinha aprendido a amar com tanta dedicação.

Antes mesmo de entrar no consultório vi que o único criotanque que antes era ocupado por Sunny estava vazio, empilhado descuidadamente junto com os outros. Isso confirmou as minhas suspeitas. Entrei em um rompante no lugar. Sunny estava sentada em um catre em silêncio enquanto Doc anotava algumas coisas em seus papéis. Ambos se assustaram com a minha chegada.

— Kyle — a voz de Sunny estava trêmula e sua expressão denotava preocupação. Diferente de Jodi, muito diferente daquela forma intensa que ela despertou. Jodi não temia nada. Sunny, sim. — Eu sinto muito, Kyle, eu…

Ela gaguejava e olhava-me desesperada. Sua voz derreteu o gelo de meu coração e qualquer tristeza que me assolasse nos últimos dias se foi com um suspiro dela. Sunny. Sem titubear, cortei o espaço que nos separava e a envolvi em meus braços. Ela se afundou neles de forma aliviada.

A minha Sunny. Finalmente segura em meus braços. Pensei que pudesse começar a chorar de felicidade.

— Eu não pude, Kyle — ela continuava falando. — Eu não estava aqui. Não conseguiria…

— Shh — a interrompi, afastando-nos um pouco e segurando sua cabeça em minhas mãos. — Já chega disso, ok? Não precisa se martirizar. Está tudo bem.

— Mas ela era a Jodi!

— E você é a Sunny — completei com um sorriso débil em meus lábios. Ela continuou me olhando com o cenho franzido. Pigarreei. — É verdade, ela era Jodi. Quem eu queria que você encontrasse, quem eu perdi durante a invasão. Mas ela já era adulta e podia tomar decisões por si mesma. Ela fez o que queria fazer.

— Eu tive acesso às memórias dela — Sunny estreitou seus olhos. — Ela fez isso por você, sabia? Na mente dela eu era o seu sol. Ela pensava que nunca seria capaz de ocupar o lugar que eu tinha conseguido em seu coração. Ela queria que você fosse feliz. Ela te amava muito.

Assenti e a envolvi novamente em meus braços. Jodi tinha partido. Isso significava muitas coisas. Significava que ela me amava ao ponto de ter escolhido partir para me deixar ser feliz com uma alienígena. Significava que ela me perdoava e me entendia por eu ter deixado de ser o mesmo, por ter desistido dela e pela morte de seus pais. Significava que tudo ficaria bem.

— Ela não queria ir e mesmo assim foi — Sunny murmurou.

— Você também fez isso, não é? — beijei o topo de sua cabeça e acariciei seus cabelos. Fiquei em silêncio por um tempo. — Obrigado.

— Pelo quê? — ela levantou a sua cabeça para me olhar.

Lancei-lhe um sorriso pequeno e sincero.

— Por ter me dado a oportunidade de me redimir por todos os meus erros — sussurrei. Doc continuava no consultório, observando toda a cena, no entanto fingi que estávamos sozinhos, no nosso quarto. Acariciei o rosto de Sunny. — Por ter partido e me mostrado o quanto você significava para mim. Por ter me apresentado a um amor incondicional.

Ela ficou simplesmente me olhando por um tempo, sem dizer nada, sem demonstrar nenhuma reação. Então perguntou:

— Por que você pediu perdão a Jodi, Kyle?

Respirei fundo enquanto elaborava a resposta. Minha voz estava embargada quando respondi.

— Porque eu não carregava o mesmo amor incondicional por ela.

Ela acariciou o meu rosto. Estava com uma expressão preocupada.

— Eu sinto muito.

— Está tudo bem — e eu sabia que estava.

Meu coração batia por Sunny. Jodi… Sim, eu a amava muito, mas ela nunca seria capaz de me fazer feliz como Sunny. E eu era demasiadamente egoísta para conseguir pensar que ela ficaria bem ao meu lado; eu queria ficar bem. E Sunny me fazia bem.

Mas eu também queria que Sunny ficasse bem. Quando a via sofrendo, o meu coração se quebrava em pedaços. Eu queria protegê-la, deixá-la feliz. Eu queria fazê-la feliz.

Esse era o amor?

Quando encontrei Jodi, eu queria fazê-la feliz. E tentei até o último dia, até a última oportunidade. A verdade é que eu não consegui deixar Jodi feliz depois que ela perdeu seus pais para a invasão. Nada a contentava. E, mesmo agora, anos depois, ela jamais conseguiria voltar a ser a mesma, jamais se reconstruiria. Estava machucada demais. Ela não seria feliz, então eu jamais conseguiria ficar contente também.

Aquele era o amor.

O amor era aquela relação intrincada e mútua, onde os dois deveriam estar satisfeitos com a relação para ela existir. Eu sabia que eu amava Sunny porque eu era feliz com ela, mas somente se ela estivesse bem comigo. E sabia também que amava Jodi, porque juntos jamais seríamos capazes de ficar satisfeitos. Estávamos quebrados e machucados; eu nunca a deixaria contente e ela nunca me contentaria.

Mutualidade. Simetria. A minha relação com Jodi não seria saudável; pelo contrário, seria assolada pela dor da perda e pelos acontecimentos do passado. Com Sunny havia somente o presente. Ela era o meu sol. Iluminava a minha vida por estar inteira, intocada. Simplesmente minha.

Foi por isso que eu não senti culpa quando Jodi partiu. Era a única opção para ela. O único modo de descansar e de se esquecer de suas dores que jamais poderiam ser reparadas. E ela fez isso dando vida a outra pessoa. E me deixando feliz. Desejei poder agradecê-la por sua atitude.

— Ela não está aí, está? — perguntei a Sunny. Estava preocupado que ela não pudesse descansar em paz e que ficasse me vendo com Sunny, uma presença muda que traria somente sofrimento para todos os envolvidos.

— Não — ela murmurou. — Ela se foi.

— Se ela voltar me avise, tudo bem?

Sunny ficou me encarando com a expressão indecifrável por um bom tempo.

— Ela não vai voltar — era uma sentença definitiva.

— Por que acha isso?

Ela deu uma pausa.

— Porque ela me entregou a vida. Ela quis se aniquilar, desaparecer. Não foi roubada de si mesma. Não foi nada forçado. Ela entendeu que era o necessário e partiu. Ela vai descansar agora, Kyle. Ela nos deu a sua vida e não vai se esforçar para consegui-la novamente. Somos somente nós dois de hoje em diante.

Uma vida pela minha felicidade. Não achei que eu valesse tanto, mas se Jodi achou… Bem, como eu mesmo tinha dito, ela era adulta e sabia quais decisões estava tomando e no que isso implicaria. Se ela tinha me dado a sua vida em troca da minha felicidade, significava que ela realmente tinha me perdoado. E que ela me amava.

Abracei o seu corpo que era controlado agora pela alma que passaria o resto de sua vida comigo. Fechei meus olhos e pensei, como em uma prece: Sinto muito, Jodi, por ter sido o suficiente. Por nunca ter conseguido ser. Mesmo assim, você deu a sua vida pela minha felicidade e eu não poderia ser mais grato. Espero que encontre paz na escuridão. Espero que, de alguma forma, isso tenha te libertado… Eu te amo também, ok? Somente não fui capaz de dizer-lhe na noite anterior. Mas, sim, eu te amo. E sempre vou te carregar dentro de mim.

Seja feliz.

Adeus.