SUNNY

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Quando vi o corpo de Kyle na porta do quarto, não pude acreditar. Ele tinha vindo ao meu encontro. Meu choro se intensificou; de medo e alegria. De dúvida. De confusão. De cansaço. Meu choro se intensificou pelo pesado fardo que estava carregando.

Não seja tola — Jodi murmurou — Ele somente veio aqui para te acusar.

Quis que ela se calasse por, pelo menos, alguns segundos. Mas ela continuava a repetir que ele veio somente para dizer que a queria novamente e que eu seria retirada do corpo que não me pertencia.

Mas o que aconteceu foi inesperado.

Kyle se deixou cair de joelhos no colchão disposto no chão do quarto e me atou em um abraço desesperado e sufocante. Seus braços musculosos e úmidos de chuva apertavam as minhas costelas; e não pude fazer nada senão usá-lo como apoio e continuar chorando. O que aquilo significava? Que ele acreditava em mim?

Jodi brandia absurdos em minha mente o tempo todo; absurdos que eu tentava ignorar. Ele está abraçando a mim! É o nosso reencontro e ele está muito emocionado! Eu te amo, Kyle. Eu queria tanto que não tivesse essa alienígena nos atrapalhando. Senti tanto a sua falta!

Mesmo que tentasse bloqueá-la, pouco a pouco suas palavras se encaixaram em minha mente. Elas faziam sentido. Kyle não abraçava a mim; ele estava abraçando Jodi.

E, no entanto, ele falou meu nome quando se afastou para me olhar.

— Sunny — e ouvi-lo dizer aquela palavra foi como se um remédio estivesse fazendo efeito e curando as minhas feridas.

Jodi estava tão estarrecida que se calou por alguns segundos.

— Kyle, eu não menti — sussurrei com a voz fraca. — Por favor, acredite em mim…

Ele segurou firme em minha nuca e encostou nossas testas.

— Shh — seus olhos azul safira se encheram de lágrimas. — Eu sei, Sunny. Eu já sei que você não mentiu. Perdão — ele fechou seus olhos bem apertados e suas lágrimas se confundiram com água da chuva que ainda escorria pelo seu corpo. — Me perdoe. Eu não devia ter te acusado, não devia nem mesmo ter pensado sobre a possibilidade. Eu sei que você não mentiu. No fundo, eu sempre soube. Mas… mesmo se você tivesse realmente mentido… eu percebi que ainda te amaria. Com tudo o que tenho. Com tudo o que sou.

Jodi despertou com a última sentença.

A dor que senti foi lancinante. Quase como se não houvesse nada além dela. Pensei que minha cabeça fosse explodir; os gritos e as palavras que Jodi brandia eram torturadoras. Pior que a ameaça dos humanos quando cheguei nas cavernas. Pior do que os pesadelos sem Kyle. Pior do que os primeiros dias quando ele me mantinha por perto somente por causa de Jodi.

Ele não te ama! Ele está confundindo tudo! Kyle, por favor, escute a voz da razão. Você não pode amá-la. Ela roubou meu corpo e tudo o que eu sou. Ela roubou o meu lugar! Ela é uma alienígena! Eles roubaram o nosso mundo, lembra?

Ele pode me amar sim — choraminguei, exausta de suas investidas. — O fato de eu ser uma alienígena não interfere em nada.

Ele odeia os alienígenas. Quer ver?

A lembrança que vi foi dolorida. Ela a escolheu cuidadosamente, sabendo que me derrubaria. Sabendo que me faria ter vontade de morrer.

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— Kyle, se algum dia eu for capturada… — murmurei tarde da noite, enroscada em seu peito.

O mundo ainda estava parcialmente nos eixos. Ainda vivíamos com meus pais e éramos humanos camuflados na cidade. Parecia incrivelmente distante a captura de qualquer um de nós… mas talvez não fosse tanto assim.

— Shh — ele beijou o topo de minha cabeça. — Você nunca vai ser capturada, ok?

Respirei fundo e prossegui, apesar da interrupção.

— Se algum dia eu for capturada e você tiver contato com a alienígena que estiver controlando meu corpo, por favor, não a deixe tomar meu lugar. Não se deixe conquistar — fechei meus olhos. — Prometa, Kyle.

Sua respiração agitou os fios de meu cabelo.

— Eu nunca vou deixar ninguém tomar seu lugar — ele sussurrou. — Muito menos alguma alienígena detestável. Eu os odeio e você sabe disso. Ninguém poderia me conquistar, Jodi. Ninguém, ouviu?

— Promete?

Ele deslizou sua boca para minha.

— Sim, Jodi, eu prometo.

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Senti o meu ar faltar. Eu não estava presente, mesmo que meu corpo ainda estivesse no colchão perto de Kyle. Não era capaz de ver ou ouvir. Só sentia dor. A mais profunda. A mais dilacerante.

Era incapaz de pensar em todas as promessas que Kyle tinha feito para mim também.

Fui quase incapaz de distinguir sua silhueta quando ele se agachou ao meu lado e murmurou: “Sinto muito, Sunny. Por tudo”. Pelo quê? Não pude descobrir; Jodi já preenchia meus pensamentos com mais frases maldosas.

Ele se foi. Ele não te aguenta, Luz do Sol Através do Gelo. Ele quer uma mulher de verdade. Foi decidir quando vão te retirar do corpo.

Tentei bloqueá-la, apagá-la de minha mente. Mas Jodi fazia questão de se destacar perante qualquer pensamento bom que eu me forçasse a ter. Ela não era gentil e não entendia que estávamos no mesmo barco, na mesma mente. Não entendia que sofríamos pelo mesmo motivo; por querer Kyle e por acreditar que ele nos amava com tudo o que tinha.

Era horrível. Toda a situação.

Tudo.

Mas já estava mais calma quando Kyle voltou ao quarto; forcei-me a respirar fundo e fechar meus olhos.

— Sunny?

Não tinha forças para respondê-lo.

— Eu posso falar com Jodi?

Senti-a explodir de empolgação em minha mente. Para evitar mais sofrimento, sentei-me disposta a ouvir o que quer que Kyle quisesse nos dizer.

Eu sabia! Sabia que você entenderia!

— Sinto muito — de alguma forma, senti que Kyle sussurrava para mim. — Mesmo.

Não sinta, Kyle — Jodi murmurou. — Não sinta por alguém que roubou o corpo de quem você mais amava.

— Jodi… você consegue me ouvir, não consegue? Quanto tempo… nove longos anos. Alguns lotados de sofrimento, outros preenchidos pela alegria — vi Kyle fechar seus olhos. Ele parecia sofrer. — O mundo foi cruel conosco, não foi? Ele não aliviou a dor para nenhum dos lados. Eu sinto muito por aquele dia que você foi capturada, sabe? Eu poderia ter sido mais prudente — ele fez uma pausa. — Mas aconteceu. E não havia nada que eu pudesse fazer para reverter a situação, então passei anos e mais anos sofrendo. Quando capturei Sunny e a tirei do corpo… Jodi, por que não retornou?

Senti-a mais calma em minha mente. Kyle estava dirigindo a palavra a ela; estava segura por causa disso.

Diga que eu não senti e que se pudesse teria voltado aquela vez, porque odiei a forma como voltei.

— Ela disse que não sentiu nada. Nenhum estímulo. E que ela gostaria de ter sentido, porque odiou a ocasião em que voltou.

Kyle apertou os olhos com as pontas dos dedos. Parecia transtornado.

— Você não voltou, então a Sunny ficou para manter seu corpo vivo. Eu comecei a gostar dela. Foi aos poucos, mas…

— Basta, Kyle — Melanie interferiu de repente. Ela estava em pé na porta do nosso quarto.

— Não disse que era para eu te chamar quando terminasse? — ele retrucou; não parecia feliz com a interferência inesperada.

— Previ uma tragédia — ela murmurou e se sentou no colchão também. Tentei imaginar o que ela estava tentando dizer. — Estava certa. Agora pode ir.

— Mas… — ele tentou protestar, contudo antes que pudesse fazê-lo Jodi me mandou perguntar algo. Ela estava com pressa. E, pela primeira vez, parecia tão angustiada quanto eu.

Pergunte se ele ama você.

— A Jodi está perguntando uma coisa — interrompi-o, mas me senti desconfortável quando Melanie e Kyle voltaram olhares curiosos para mim. — Jodi quer saber… se você me ama.

Foi o pior momento de tensão em toda a minha vida. Kyle pareceu estarrecido diante da pergunta; e então inclinou a cabeça pensando sobre o assunto. O que ele diria? Pela primeira vez, Jodi não me dirigia insultos. Ela estava silenciosa em minha mente, esperando pela resposta de sua pergunta. Eu também esperava.

Estava nervosa.

Ansiosa.

Não conseguia me lembrar se ele já tinha dito que me amava antes. Mas, afinal, não foi preciso. Porque ele me ajudou a criar uma lembrança, mesmo que o contexto fosse indigno de uma frase tão mágica aos meus ouvidos.

Ele estava decidido quando respondeu.

— Sim, Jodi — e meu coração já estava aquecido antes mesmo dele concluir a afirmação. — Eu amo Sunny.

Mesmo que Jodi tenha me feito sofrer depois, nunca tinha me sentido tão realizada e completa. Ele tinha afirmado com todas as letras o seu amor por mim. Ele tinha dito a Jodi — à mulher que ele costumava considerar como “amor de sua vida” — que me amava. Uma alienígena. Uma alma.

Uma promessa não cumprida.

Jodi não poderia estar mais furiosa.

E eu não poderia estar mais motivada.

Não entendi o motivo de Kyle ter sido retirado a força do quarto. O sofrimento que Jodi me fazia passar poderia ser superado; eu não tinha sentidos para lutar contra, mas explodia de êxtase nos confins de minha mente que pertencia apenas a mim. Apesar de estar satisfeita, não era capaz de atravessar a nuvem que me dividia do mundo real. Não era capaz de falar para que Kyle ficasse. Eu queria que ele ficasse.

Mas ele foi levado embora.

E nunca mais voltou.

A minha felicidade perdeu suas forças enquanto a de Jodi triunfava. O tempo era um grande sacana; Kyle não se aproximava de mim. Eu praticamente nem o via nas cavernas.

Depois de alguns dias deitada em sofrimento em um quarto alagado pela chuva, resolvi voltar a ajudar a comunidade. Não poderia me dar a oportunidade de sucumbir. Voltei a cumprir as tarefas diárias e a socializar com aqueles que me aprovavam. Arrumei também um canto para dormir no salão de jogos; sempre via Kyle do lado oposto ao meu, rodeado pela Melanie e pelo Jared. Tentei voltar a viver normalmente e esquecer de meus sofrimentos; no entanto, quando chegava a noite e Kyle estava tão distante de mim naquele grande salão, eu não conseguia aguentar. Deixava que todas as lágrimas acumuladas escorressem pelo meu rosto em silêncio e permitia que Jodi falasse suas acusações.

Com o tempo, passei a acreditar nelas.

A história de que Jodi tinha voltado estava se espalhando aos poucos. No começo, alguns timidamente me perguntavam se era verdade e eu respondia que sim. Depois a história passou a repercutir pelos corredores; e opiniões começaram a surgir. Opiniões divergentes e cruéis.

Alguns não aceitavam que eu ainda permanecesse no corpo. Outros compartilhavam da opinião que eu tinha conquistado o direito depois de anos sendo confiável e ajudando a eles. Logo, o tumulto se instalou. E as rivalidades surgiram.

Peg me contou que parecia com a época que ela tinha chegado; alguns humanos romperam laços com outros por conta de opiniões divergentes. Ela disse, ainda, que eles estavam sendo tolerantes comigo. E que eu precisava ser forte que logo o assunto seria esquecido.

Imaginei se queria que o assunto fosse esquecido.

Para que isso acontecesse, teria que se passar um bom tempo. E eu não sabia se podia suportar com a presença de Jodi e ausência de Kyle muito mais do que já tinha suportado. Perguntei-me por que ele continuava me evitando, mesmo que algumas vezes nossos olhares se cruzassem no salão antes de todas as luzes serem apagadas e em seu olhar houvesse um desespero contido. Desespero que me fazia querer consolá-lo.

Depois de noites em claro, percebi que talvez ele estivesse assim porque não me quisesse. E temi que tivesse percebido que não me amava.

Tomei a decisão que poderia ocupar algum outro corpo; não precisaria suportar Jodi em minha cabeça e Kyle poderia ser feliz exclusivamente com ela. Não precisaríamos ficar perto tão perto, somente o suficiente para eu ver que ele estava bem. Queria que ele fosse feliz; e sabia o quanto ele deveria sofrer com toda aquela situação confusa.

Estava prestes a procurar por alguém que me auxiliasse a concretizar a minha ideia, quando Lacey surgiu acompanhada de Sharon em um corredor aleatório. Ambas se postaram em minha frente como um muro, impedindo-me a passagem. Eram a favor de que eu fosse mandada embora.

— Eles deviam te mandar embora — disse Lacey em sua voz irritante. Ela era praticamente do meu tamanho, então pude encará-la com atitude. — Jodi deveria ficar. Jodi merece essa vida; você não.

Não gostaria de parecer uma alma indefesa diante de duas humanas tão detestáveis, mas Jodi não gostou que eu quisesse parecer firme. Somente ela tinha esse direito.

Lacey, me tire daqui — ela brandiu em minha mente. — Você é a meu favor. Sharon, peça para o Doc me retirar. Não permita que eu definhe aqui.

Shh.

— Como Kyle te suportou por tanto tempo? — Sharon questionou. — Você é uma alma boazinha. O pior tipo que tem.

Engoli em seco e não desviei o olhar. Não me permitiria parecer fraca; assim como não retrucaria.

— Eu só não te dou uma surra — sussurrou Lacey — porque sei que Jodi a sentiria também. Mas você é tão indigna de possuir esse corpo… Não suporto imaginar tamanha injustiça. Como Melanie pôde passar para o lado dos alienígenas?

Sem manter a minha promessa, retruquei:

— Talvez porque ela tivesse um grande e puro coração, aberto a qualquer tipo de amor.

— O que você quis insinuar, alma imprudente? — Lacey deu mais um passo, ficando bem perto de mim.

Sharon também avançou.

— Ela quis insinuar que já está na hora de você abrir sua mente e seu coração, Lacey — disse a voz firme de Jeb. Quando o olhei, ele permanecia com sua cara de jogador de pôquer e carregava a espingarda. Conhecida espingarda. — Faz bem, sabia?

— Nunca vou aceitar os alienígenas — ela rosnou. — Eles roubaram o nosso mundo! Eles roubaram a mim!

Por sorte, ela tinha se afastado de mim e se virado em direção a Jeb, dando-me espaço para respirar.

— Sinto muito por isso, Lacey — ele disse. — Mas há as almas que se redimiram. Aquelas que buscaram compensar o que fizeram. Como Sunny, Peg, Cal. Você deveria perdoar. Guardar rancor não levará a nada.

— Mas Jodi está de volta! — ela gritou, revoltada. — E essa alienígena continua em posse do corpo.

— Talvez porque ela tenha conquistado isso.

Não conquistou coisíssima nenhuma! — Jodi gritou em minha mente.

Mas as palavras de Jeb já tinham me atingido.

Estava um poço de emoções nos últimos tempos. E quando ouvi aquelas palavras senti-me grata pela primeira vez em dias. Jeb achava que eu tinha conquistado o meu lugar nas cavernas; e se a opinião de Jeb não importava, qual importaria?

As lágrimas escorreram silenciosamente pelo meu rosto. Para que ninguém as visse, retirei-me silenciosamente do lugar. Não me importei que Sharon e Lacey pensassem que eu fosse uma covarde. Não fazia diferença. Elas não importavam.

Comecei a andar a esmo pela caverna, entrando em corredores aleatórios. Tentei limpar as lágrimas, mas elas cismavam em continuar surgindo. Jodi me difamava repetidamente, chamando-me de tola por dar crédito às palavras de um velho maluco. Mas eu não me importava com ela também.

Naquele momento, ninguém me importava.

Bem, somente Kyle. Mas ele já era uma parte tão intrincada minha que não conseguia imaginá-lo como outra pessoa qualquer.

Estava praticamente correndo pelos corredores, quando esbarrei em algo firme.

Uma fortaleza.

A minha fortaleza.

Eu reconheci os braços que me rodearam automaticamente. Reconheci a respiração acelerada. Reconheci-o, mesmo que não pudesse vê-lo. Eu o sentia. Para mim, bastava.

— Sunny? — Kyle ofegou; senti sua mão em minha bochecha, tomando quase meu rosto todo. Não tive forças para responder. Ele colocou sua outra mão na minha face; e senti como se pertencesse a ele. — Sunny? — sua voz estava embargada e desesperada.

Meu coração ia sair pela boca.

Jodi estava sem reação.

Foi rápido. Seus lábios pousaram sobre os meus de modo pouco gentil; mas ainda eram grandes, macios e cálidos. Ainda eram suaves. Suas mãos eram carinhosas nas laterais de meu rosto. Suspirei e pousei minhas mãos em seu rosto também, sentindo sua barba crescida.

Ele só deixava sua barba crescer quando não estava bem. Quando não tinha força de vontade o suficiente para apará-la.

E então, no próximo instante, ele não estava mais comigo. Estava sendo afastado. Alguém o arrastava para longe de mim, para longe de tudo o que tínhamos construído. Ele protestava; seus protestos eram de cortar o coração. Seus gritos cessaram até parar definitivamente.

Jodi estava dividida e sem forças para gritar em minha cabeça.

Afinal, quem ele havia beijado?

Deixei-me cair de joelhos no chão poeirento; e, pela primeira vez em semanas, não chorei pelo sofrimento que Jodi me causava. Nenhuma de nós tinha triunfado. Sofríamos juntas; compartilhávamos da mesma dor. Portanto, chorei por nós duas. E ela lamentou e questionou aquilo que eu não conseguia.

Estávamos no mesmo barco.

E aquilo nunca tinha estado tão claro para mim.