Melanie não tardou a chegar no lugar onde eu estava. Ela segurava um guarda-chuva sobre sua cabeça, mesmo que o vento quase o levasse. Eu não me importava com a chuva; pelo contrário, gostava dela. E quando ela ofereceu o guarda-chuva para nos cobrir, não aceitei. Ela suspirou e o desarmou, sentando-se ao meu lado e cansando de lutar contra o inevitável.

— Não acredito que estou tomando chuva por você, seu imprestável — ela resmungou.

— Eu também simpatizo com você, Melanie.

Ela riu fraquinho e me olhou.

— Sabe, eu acho que finalmente te perdoei por ter tentado matar Peg.

— E o que a levou a fazer isso?

Ela alargou ainda mais seu sorriso.

— Sunny. Eu vi o jeito como você a tratava… e percebi que talvez você tivesse razões fortes e pessoais para tentar matar Peg.

Fechei meus olhos e respirei fundo, tentando me esquecer do lugar onde eu estava. Quis transportar-me novamente para o dia onde encurralei Peregrina na sala de banhos e tentei matá-la por Ian; assim como por Jodi.

— Na minha mente — murmurei — se apaixonar por uma alma era um pecado. Uma… calúnia. E Ian tinha se apaixonado, sabe? Eu não queria que ele continuasse com aquilo. E também… as almas tinham levado Jodi; e eu pensava que ela era a minha vida. Como esperava que eu reagisse?

Ouvi-a suspirar, mas não abri meus olhos.

— Eu te entendo, Kyle — ela sussurrou. — E talvez só tenha simpatizado com as almas porque dividi a cabeça com uma.

— Para mim, esse não foi o caso — retruquei.

— Como foi quando você percebeu que estava apaixonado por Sunny?

Abri meus olhos.

— Bem, não foi fácil de entender. Ou de aceitar. Mas aconteceu, sabe? Todas as suas atitudes me conquistaram. E então um dia eu a olhei e percebi que não procurava mais alguém que não existia. Eu não procurava mais nada, porque eu já tinha tudo. Já tinha Sunny… — suspirei. — Deus, foi tão incrível, porque eu percebi que estava livre. Que não tinha mais que odiar tudo. Eu percebi que podia amar… e que não era pecado nenhum amar o que quer que fosse.

— Realmente, não é pecado amar — ela respirou fundo. — Nenhum pecado. Mas, Kyle… Ian me inteirou um pouco da história do que aconteceu ontem. Se você realmente a amava, então por que a acusou de mentirosa sem nem mesmo ouvi-la?

Estava envergonhado; o que não era comum para mim. No entanto, eu realmente estava e queria me enterrar sete palmos abaixo da terra. Porque eu tinha sido injusto. Ridiculamente injusto.

— Foi confuso… Eu percebi que Jodi tinha tomado o corpo e a primeira coisa que pensei foi: “agora não. Por que somente agora?”. Esse pensamento, infelizmente, logo evaporou. E eu me esqueci de tudo, me esqueci que sabia amar, que sabia perdoar e que as coisas tinham explicações plausíveis. Eu só conseguia pensar no motivo para Sunny ter mentido tanto tempo para mim e ter deixado chegar àquele ponto de extremo amor… para então a Jodi ressurgir e retomar o controle do corpo, mesmo que por apenas alguns segundos.

Mel franziu o cenho.

— Jodi foi sobrepujada. Você já sabe, não é mesmo? Sunny não mentiu nem por um segundo.

Engoli em seco.

— Como foi quando… você desapareceu? E, quando voltou, como arranjou forças para tomar o controle do corpo?

— Eu não vi nada quando desapareci. Não sabia de absolutamente nada que estava acontecendo; foi como se eu estivesse em um sono profundo e sem sonhos. E sobre tomar o controle do corpo… eu não precisei de força. Peg estava desconcentrada e entregue ao beijo. Foi muito fácil encontrar a passagem e dominar o corpo.

Uma pontada dolorida atingiu meu coração. Sunny estava entregue… tão entregue que não pôde controlar a tempestade chamada Jodi. Entregue a mim; e a primeira coisa que fiz foi acusá-la de mentirosa. Ela não tinha mentido nem por um segundo.

Sem conseguir aguentar a culpa que me corroeu, levantei-me em um salto e comecei a correr em direção às cavernas novamente. Eu precisava me retratar. Precisava dizer que eu estava errado o tempo inteiro. Precisava pedir perdão. A chuva me chicoteou violentamente; e pensei que fosse um castigo justo, mas, ainda assim, insuficiente.

Corri direto para o meu quarto. As pessoas que transitavam pelos corredores da caverna rosnaram alguns xingamentos — os quais não fiz questão nenhuma de escutar. Eu precisava chegar até Sunny. Meus pensamentos estavam preenchidos somente por sua imagem.

Derrubei a porta do quarto com um chute e encontrei uma Sunny assustada debulhando-se em lágrimas. E não pude evitar minhas próprias lágrimas. Senti-me o monstro mais terrível e o ser humano mais cruel. Como pude fazer aquilo com a mulher que amava?

Joguei-me de joelhos no colchão e puxei-a para um abraço desesperado e soluçante. Sunny enterrou sua cabeça na curva de meu pescoço e apertou seus braços finos ao meu redor, usando-me como seu apoio. O que fez eu me sentir ainda pior; porque eu tinha a abandonado no pior momento de sua vida.

— Sunny — afastei-me um pouco de nosso abraço e afaguei seu rosto com uma de minhas mãos.

— Kyle, eu não menti — ela sussurrou apressadamente. — Por favor, acredite em mim…

— Shh — firmei minha mão em sua nuca e encostei minha testa na sua, forçando tanto que minha cabeça não demorou a doer. — Eu sei, Sunny. Eu já sei que você não mentiu. Perdão — fechei meus olhos e deixei que minhas lágrimas se confundissem com a água da chuva que ainda escorria pelo meu rosto. — Me perdoe. Eu não devia ter te acusado, não devia nem mesmo ter pensado sobre a possibilidade. Eu sei que você não mentiu. No fundo, eu sempre soube. Mas… mesmo se você tivesse realmente mentido… eu percebi que ainda te amaria. Com tudo o que tenho. Com tudo o que sou.

Apesar da sinceridade de minha voz, Sunny ofegou e se desvencilhou de meu abraço em um movimento rápido. Suas duas mãos foram parar em sua cabeça e seu cenho se franziu de sofrimento.

— Sunny?

— É Jodi — Melanie murmurou. Quando me virei, ela estava parada encharcada na porta de meu quarto. — Ela não gosta que você fale coisas amorosas para Sunny e a faz sofrer por isso. Evite dizer coisas assim ao máximo, Kyle.

Estreitei meus olhos.

— Você fazia isso com Peg?

— É nossa única forma de defesa — ela deu de ombros. — Mas acho que Jodi está sendo especialmente cruel com Sunny porque elas ainda não são amigas. Eu tinha um pouco de dó de Peg por ela ter se tornado minha… irmã, praticamente. Ela salvou a todos que eu amava — ela suspirou. — Kyle, você se importa se eu falar com Jodi a sós?

Passei meus olhos rapidamente para Sunny — porque não conseguia a enxergar como Jodi — que estava encolhida na cama e murmurando palavras indefiníveis. Não quis deixá-la tão vulnerável. Não quis deixá-la sofrendo. Quis — pela primeira vez de verdade — que Jodi fosse suprimida novamente; e que fosse para sempre.

— É importante — ela insistiu. Balancei minha cabeça negativamente. — Por favor. Sunny vai ficar bem.

— Por que não consigo acreditar nisso? — murmurei.

— Venha aqui, Kyle. Eu preciso te explicar algumas coisas.

Respirei fundo e me aproximei de Sunny. Afaguei seus cabelos e beijei sua testa; o que a fez encolher-se ainda mais.

— Sinto muito, Sunny — sussurrei. — Por tudo.

Segui Mel de forma contrariada pelos corredores da caverna. Não queria me afastar de Sunny, mas Mel insistiu que ela não poderia escutar o que seria dito para mim. Depois de virar em uma quantidade razoável de corredores, ela se virou e me encarou.

— Você não pode demonstrar afeto por Sunny — disse. — Se não quiser que ela sofra. Se quiser demonstrar algum afeto, dê a entender que é para Jodi.

— Eu não quero dar afeto a Jodi — resmunguei.

Ela respirou fundo e cruzou seus braços.

— Deus, isso é mais complicado do que pensei. Porque é completamente o oposto do que acontecia comigo e com Jared. Jared queria a mim, não a Peg.

— Você não desistiu dele. E ele não teve que conviver com Peg — somente com Peg — por tempo o suficiente para se apaixonar por ela.

Mel me encarou. Percebi que talvez ela não tivesse gostado de meu comentário.

— Enfim — ela balançou a cabeça. — Jodi vai fazer de tudo para Sunny sofrer. Em sua cabeça, Sunny roubou o seu lugar; não o conquistou. Eu vou tentar falar para ela ser mais razoável… mas temo não conseguir isso. Então, Kyle, por favor, se você ama Sunny como demonstrou há pouco, deixe-a em paz.

— Você está dizendo para eu abandoná-la no momento mais difícil de sua vida?

Ela fechou seus olhos.

— Estou dizendo para você evitar o sofrimento dela. E essa talvez seja a única forma.

E então aquele era o meu castigo. O meu real castigo. Ter de me afastar de Sunny de verdade e não poder falar para ela o quanto aquilo era terrível para mim. Era o pior castigo por tê-la acusado; mas era o suficiente, como eu temia.

Engoli em seco.

— Mel, eu quero falar com Jodi — sussurrei.

— Não sei se é uma boa ideia.

— Eu preciso — fechei meus olhos. — Por favor.

Ela suspirou.

— Não seja cruel com ela, tudo bem? Chame-me quando tiver acabado.

Assenti e voltei pelo mesmo caminho que tínhamos feito. Minha mente estava confusa e acelerada; eu ainda não sabia direito o que dizer a Jodi. Para não atrapalhar Sunny? Para não fazê-la sofrer? Para ir embora?

Questionei-me o motivo de Jodi ter se tornado de repente uma estranha intrusa em minha vida, quando antes ela era a minha única razão de viver. Por que eu defendia tanto a Sunny e não a ela? Por que eu só conseguia pensar que as coisas estariam melhores se ela tivesse sido suprimida para sempre?

Quando entrei no quarto, Sunny continuava encolhida na cama. As suas lágrimas ainda não tinham secado.

— Sunny?

Ela permaneceu imóvel.

— Eu posso falar com Jodi? — odiei-me pelo meu pedido.

Vi seu corpo se mexer quando ela respirou fundo. Ela assentiu minimamente e se sentou encostada na parede, abraçando seus joelhos.

— Sinto muito — sussurrei novamente. — Mesmo.

Ela assentiu de novo.

— Jodi… você consegue me ouvir, não consegue? — eu sabia que sim; estava somente adiando o inevitável. — Quanto tempo… nove longos anos. Alguns lotados de sofrimento, outros preenchidos pela alegria — fechei meus olhos porque não conseguia visualizar Jodi no rosto de Sunny. — O mundo foi cruel conosco, não foi? Ele não aliviou a dor para nenhum dos lados. Eu sinto muito por aquele dia que você foi capturada, sabe? Eu poderia ter sido mais prudente — engoli em seco. — Mas aconteceu. E não havia nada que eu pudesse fazer para reverter a situação, então passei anos e mais anos sofrendo. Quando capturei Sunny e a tirei do corpo… Jodi, por que não retornou?

— Ela disse — Sunny começou com a voz rouca — que não sentiu nada. Nenhum estímulo. E que ela gostaria de ter sentido, porque odiou a ocasião em que voltou.

Apertei meus olhos com as pontas dos dedos. Não sabia o que pensar.

— Você não voltou, então a Sunny ficou para manter seu corpo vivo. Eu comecei a gostar dela. Foi aos poucos, mas…

— Basta, Kyle — Melanie me interrompeu de repente. Estava novamente na porta de meu quarto.

Abri meus olhos e fiquei alguns segundos parado antes de reencontrar a minha voz.

— Não disse que era para eu te chamar quando terminasse?

— Previ uma tragédia — ela deu de ombros e se sentou no meu colchão. Sunny tremia. — Estava certa. Agora pode ir.

— Mas…

— A Jodi está perguntando uma coisa — Sunny disse antes que eu pudesse concluir meu raciocínio. Melanie e eu voltamos nossos olhares para ela imediatamente; por causa disso, ela encolheu-se mais ainda. — Jodi quer saber… se você me ama — sua voz estava quase inaudível no final.

Pensei em tudo o que Melanie havia me dito e senti seu olhar me queimando; eu sabia o que ela queria dizer. Eu não deveria falar a verdade. Deveria mentir, se fosse preciso, somente para evitar o sofrimento de Sunny. Mas e se o verdadeiro sofrimento de Sunny fosse o triunfo de Jodi? Sunny era corajosa. Ela suportava as investidas de Jodi. Eu sabia que sim. E sabia que, naquele momento, a única coisa que me restava era dizer a verdade.

E assim o fiz.

— Sim, Jodi — para não parecer um covarde e mentiroso, encarei os olhos prateados. E quase pude distinguir qual parte era Sunny e qual era Jodi. — Eu amo Sunny.

Vi um resquício de felicidade naquele olhar dividido, logo apagado por uma dor que não podia ser medida. Sunny gritou e deitou na cama novamente, segurando sua cabeça entre suas mãos. Ajoelhei-me ao seu lado para tentar apaziguar sua dor, mas Melanie me puxava insistentemente.

— Kyle, você tem que ir.

Ver Sunny sofrendo foi pior que pensar que ela estava mentindo. Foi pior que a dor da última noite. As lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto e meu ar faltou. Eu precisava proteger Sunny. O que Jodi estava fazendo com ela?

Logo braços fortes me rodearam. Eu os reconheci imediatamente, no entanto não quis ceder a eles também. A dor de Sunny era a minha dor. Insuportável. Uma navalha dilacerando o meu coração remendado.

— Sunny — berrei por entre as lágrimas, tentando chegar até ela, tentando resistir.

Ela continuava encolhida tremendo. Teria valido a pena o esforço de dizer a verdade?

De todas as dores que eu havia sentido durante anos de eventos que me fizeram sofrer, aquela era a mais dilacerante. A que mais havia me destruído. Porque durante todos aqueles anos eu só reconhecia o ressentimento; no meu coração não havia lugar para o amor. E Sunny havia conseguido abrir meu coração. Ela havia encontrado o amor dentro de mim.

E então, naquele momento, eu estava lotado de amor. Amor que me fazia sofrer no lugar do outro. Quis correr para dentro do quarto novamente e abraçá-la; somente Sunny, não Jodi. Quis prometer que tudo ficaria bem, mesmo que fosse uma mentira. Quis estar ao seu lado para abraçá-la, acalmá-la, beijá-la. Mas Ian continuava me puxando para longe, para cada vez mais longe…

Até que não houvesse mais nenhum resquício de sua imagem. Cansado de lutar, deixei que ele me arrastasse pelos corredores da caverna. E não me importei que qualquer um visse meu estado deplorável.

Não havia mais dignidade a ser preservada para um homem tão cruel quanto eu.