Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 3
Pequena Grace


Notas iniciais do capítulo

Pessoal, aqui está como prometido. Esse é o último capítulo narrado pela Peg e a partir daí teremos um novo rumo. Gradativamente as coisas vão se ajeitando para chegar exatamente onde eu quero.
Boa leitura.



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Peg

— Pequena Grace, você está viva! Eu não posso acreditar nisso. Ah, Grace, Grace. Finalmente você agora está em casa!

Meu coração parou. Samantha de algum modo conhecia minha nova hospedeira e essa informação foi uma surpresa para todos nós. Melanie, Ian e Jared pareciam estátuas de cera e suas respirações eram praticamente inaudíveis. Mais uma vez tudo se repetia em minha vida e nem sequer havia uma explicação sensata. Mais uma vez eu sentia a mesma sensação de estar roubando a vida de alguém.

A única coisa que eu conseguia sentir era tristeza e medo.  Enquanto eu pensava freneticamente, lágrimas saltavam como cascatas do rosto de Sam. Sua reação me encheu de dor e sua mão agora afagava os meus cabelos com ternura, tornando tudo ainda pior de suportar.

A primeira vez que a vi realmente tive a sensação de já ter visto seus olhos negros em algum lugar, mas puxando as memórias desse corpo não havia nada além das risadinhas de Pet, a antiga alma que o habitava. No entanto, no momento que Sam disse meu nome, quer dizer, o nome de Grace, foi como se um choque de realidade me fizesse despertar para o momento. Forcei a mente de todas as maneiras até conseguir encontrar uma lembrança vaga, tão distante que já estava opaca.

Uma adolescente de pele morena e cabelos castanhos, cortados bem curtos, jogava uma bola em minha direção. Seus olhos negros inspiravam confiança. — “Coragem, Grace, você consegue. Não quer ser capitã do time de futebol?” — “Eu não vou conseguir pegar, Sam” — uma versão menor de mim fazia beicinho. — “Não consigo ser boa como você” — ela chorou. — “Você não precisa ser como eu, precisa ser boa como você. Agora vamos tentar outra vez...”

Comparei a lembrança com a garota a minha frente e constatei que nada restara da primeira. Os cabelos dela agora eram longos e seus olhos negros, antes doces e gentis, agora pareciam carregados de dor. Embora ainda mantivesse a baixa estatura seu corpo estava mais forte e desenvolvido, a voz mais grave e as linhas em seu rosto mostravam o quanto ela deveria ter sofrido. Calculei que deveria estar com cerca de vinte e um anos.

Quem eu era agora? Eu deixara novamente de ser Peg “a humana” e voltara a ser Peregrina “a alma usurpadora de corpos”? Quem era Grace e o que ela era para Samantha? Amiga? Vizinha? Parente? Será que a terra era realmente o meu lugar no universo? Ver uma Sam chorando, completamente diferente da pessoa fechada de horas atrás me deixou completamente desarmada.

— Grace, eu ainda não acredito que você está viva! — ela repetia eufórica, fungando entre meus cabelos. — Quando te vi não consegui te reconhecer, mas senti alguma coisa diferente quando te olhei. Nossa como você cresceu! Seus cabelos louros nunca mudaram!. Onde quer que Paty e Benson estejam eu sei que eles devem estar muito orgulhosos em saber que o sacrifício que fizeram não foi em vão. Ah, Grace Carter, você era tão pequena quando nos vimos pela última vez! — ela falava sem parar, as palavras jorrando carinho. Meu coração sangrou mais ainda.

— Você não se lembra de mim? — continuou ao se separar de mim, mas eu só conseguia olhar para o chão. — Eu sou Samantha Collins, filha de Davi e Mary, seus vizinhos da casa amarela. Você brincava todos os dias com meu irmão Adam. Nossa como eu estou feliz — ela terminou de falar e me abraçou novamente. — Vamos, Grace, diga alguma coisa!

Então nós éramos vizinhas, pensei. Nós não, ela e Grace. Sam demonstrava amá-la muito e então vi que ela poderia não hesitar em me matar ao saber que eu roubei o corpo de sua amiga. Perguntei-me como ela reagiria ao saber que sou uma alma e que infelizmente Grace se foi há muito tempo e que, além disso, o seu pequeno corpo já havia sido profanado pelas almas duas vezes. Se eu dissesse que foi Pet quem a suprimiu e não eu, isso aplacaria sua raiva e diminuiria a minha culpa? Ou só aumentaria o seu ódio saber que sua amiga agora não passava de um fantoche, com seu corpo sendo usado a bel-prazer de quem o possuísse? Lembrei-me imediatamente de uma frase que disse a Melanie quando ela estava presa dentro de mim, sem escolhas, sem vida própria: “nenhum hospedeiro tinha me feito sentir tamanha culpa pelo que eu era”. E agora novamente essa culpa queimava dentro de mim como lava incandescente.

Lágrimas se espalhavam pelo meu rosto e eu não consegui reagir a nada disso, apenas pedia silenciosamente por socorro. Estávamos vivendo um momento parecido com uma bomba relógio, ninguém se movia com medo das consequências. O barulho da água caindo lá fora parecia ensurdecedor.

— Eu não consigo me lembrar de nada, Samantha. Desculpe-me — foi a única coisa que consegui balbuciar em explicação. Ela então me analisou detalhadamente e sua expressão se fechou ao ver os meus olhos. Os seus olhos faiscaram, ficando ainda mais negros, e então ela balançou a cabeça em reprovação.

— Essa não é a voz dela... — Sam sussurrou para si mesma, assustada com o que via e ouvia.

Recordei um dia que parecia ser em outra vida, quando ainda estava presa no corpo de Melanie. Ou ela presa dentro do meu, tanto faz. Ian estava se declarando para mim e eu o questionei, dizendo que ele amava somente o corpo e não a mim. Ian então me olhou profundamente, bem no fundo dos meus olhos prateados, e proferiu as palavras mais lindas que eu poderia ouvir: — “Não é o rosto, mas as expressões nele. Não é a voz, mas o que você diz. Não é a sua aparência neste corpo, mas as coisas que você faz dentro dele”. Com essas palavras Ian me fez ver que uma alma modifica o corpo que habita e o molda a sua personalidade. E Samantha de alguma forma também sabia disso. A voz que saia de minha boca pertencia a mim. Não a Grace. Os olhos não tinham sido suficientes para convencê-la, mas a voz sim.

— Isso é impossível! — Sam explodiu, tremendo sem parar. — Não, não, por favor. Digam que isso não é verdade. Eu não posso acreditar nisso — Sam repetia sem parar sacudindo as mãos em descrença. — Você é um deles? Você é uma ...? — seu rosto estava vermelho de raiva e ela cerrava os dentes, cheia de fúria. — Como... vocês... podem?

— Sam, calma —  Melanie colocou a mão nos ombros dela e foi repelida bruscamente.

— Não toque em mim —  ela gritou, olhando para os lados, com certeza procurando algo que pudesse usar para se defender. — Que tipo de gente vocês são? Tenho certeza que são humanos porque seus olhos não tem aquele maldito brilho prateado e, se não fossem, não estariam fugindo dos buscadores — ela deu uma longa pausa ainda processando as informações. — Mas... e isso... essa aqui? Ela é uma parasita igual aos que quase mataram a todos!

— Nós podemos explicar —  Jared interveio, firme, mas ela o olhou com desprezo.

— Não sei se isso é possível. Me expliquem por que humanos estariam passeando por aí com essa criatura usurpadora de corpos? E vocês a protegeram ainda? Posso saber que loucura é essa? Ela era só uma menina, ouviu? Só uma menina! —  Sam se dirigiu a mim, esbravejando, e Ian ficou entre nós por temer o que ela poderia fazer comigo.

Primeiro nós preferimos o silêncio, pois não haveria nada que pudesse ser dito de forma resumida. Eu mais uma vez estava roubando a vida de alguém e fazendo os seus ente queridos sofrerem a dor da perda e da derrota. Ódio não era um sentimento comum a minha espécie, mas naquele momento eu odiei ser uma alma e precisar sempre do corpo alheio para sobreviver.

Quando olhei para Melanie seu olhar estava perdido no vazio, com certeza tentando encontrar uma explicação plausível para a cena ali. Três humanos e uma alma que constituíam uma bela família não era nada fácil de explicar, uma história muito complicada e nem um pouco convencional no mundo em que vivíamos atualmente. Os olhos de Samantha faiscavam pela traição dupla. A primeira por me ver usando o corpo que pertencia a sua amada amiga. A segunda por ver humanos que deveriam estar do lado dela, uma igual em espécie e em luta, do meu lado.

— Ela é minha mulher. Eu me apaixonei por ela e ela está do nosso lado — Ian respondeu, quebrando o silêncio. — Ela não fará mal a você e nem a ninguém. Só nos dê uma chance de explicarmos como tudo aconteceu. Por favor.

Sam apertou as sobrancelhas e respirou fundo, digerindo as palavras que ele proferiu. Longos minutos passaram até ela responder alguma coisa.

— Olha, eu posso até tentar te entender. Você devia ser namorado da Grace, ela se foi e você deve estar tentando compensar a falta dela andando com essa coisa por aí. Eu já vi isso acontecer no início da invasão e realmente sinto muito que essa alma tenha roubado o corpo da sua namorada. Mas ela não é a Grace! Ela nunca mais vai voltar e você não pode ficar com ela como consolo.

— Não! – Melanie interveio. — Quando Ian se apaixonou pela Peg ela estava dentro de mim. Eu fui a sua primeira hospedeira. E agora ela faz parte da nossa família. Por favor, deixe-nos explicar.

Sam nos olhou com descrença e abanou a cabeça sem entender nada. De repente, para nossa surpresa, um rapazinho surgiu e caminhou até ela. Ele parecia estar com medo, mas sua expressão era muito mais calma do que a de Samantha, que ao vê-lo ali conosco o olhou com bastante raiva.

— Eu pedi para você esperar!

— Samantha, eu não gosto disso tanto quanto você, mas pelo menos vamos ouvir o que eles têm a dizer — a voz masculina ainda soava com notas infantis. — Se for tudo isso for uma mentira, quero saber o quanto são capazes de inventar histórias — o estranho veio para perto de mim e me encarou.

— Irmão... —  Samantha rosnou. —  Não se deixe enganar... eu não sei se quero ouvir alguma coisa.

O irmão de Samantha pareceu não ouvi-la de início, mas logou se voltou e ficou frente a frente com ela. Ele aparentava ter cerca de dezesseis anos e os dois eram completamente opostos fisicamente. Enquanto Sam era baixa o rapaz  era bastante alto para a idade, porém  ainda carregava traços da infância em seu modo de andar e de se portar. A irmã era escura, mas a pele do rapaz era clara apesar de estar queimada na face, nas mãos e nos ombros deixando-o com um ar saudável. Os cabelos louros contrastavam com grandes olhos verdes emoldurados por cílios também claros e a sua postura estava furiosa como a de Sam, mas o garoto parecia ser bem menos colérico do que ela.

— Sam, está na hora de você para de me proteger — ele falou para ela de um jeito envergonhando. — Eu já estou bem grandinho e, como falei, quero ouvir o que eles tem a dizer. Essa alma está no corpo da Grace, mas apesar disso eles parecem que a amam. Quero saber como e por quê. Ela era minha amiga desde que eu nasci. — o garoto finalizou.

— Adam...

Adam. Então esse era o irmão de Sam e amigo de infância de Grace. Era difícil de acreditar que os dois jovens eram irmãos por não carregarem  em seus rostos nenhuma semelhança entre si. Foi então que uma memória vaga, embaçada e quase inelegível tomou minha cabeça novamente. Em algum lugar estava guardada a informação de que os dois não tinham o mesmo sangue. Era estranho, mas as lembranças de Grace começaram a encher minha mente depois de tanto tempo adormecidas. Os dois continuaram a discutir até o irmão conseguir convencê-la a nos deixar falar.

— Sam, por favor — ele suplicou. — Eu quero saber o que aconteceu a Grace. Por favor, irmã.

— Tudo bem — Sam permitiu, indignada, depois de muito pensar. 

— Grace ainda está aí? —  Adam me perguntou de surpresa e eu não entendi como ele poderia imaginar que existiam pessoas resistentes. Os olhos dele nos meus, me analisando, me deixaram bastante envergonhada e por isso respirei fundo antes de responder.

— Não. Quando me puseram nesse corpo ela já havia sido suprimida há muitos anos por uma outra alma. Desculpe, Adam — o garoto apenas balançou a cabeça e se afastou.

— Mas... — a irmã interveio, não muito feliz em ter que remexer em tudo isso. — Vocês querem me convencer que o rapaz aí se apaixonou pela alma quando ela estava dentro de você? — ela questionou o que Melanie e Ian haviam dito — E como ela foi parar dentro da Grace? — Sam cruzou os braços esperando uma resposta. —  Isso não faz nenhum sentido.

— Eu amo a Peregrina, a alma. — Ian respondeu. —  E é uma longa história a que nos trouxe até aqui, a que permitiu tudo isso. E eu juro que apesar de todas as coisas ruins você irá nos entender.

Os dois irmão estavam desoladas por sua amiga, mas a curiosidade que eu representava venceu suas dores e eles aceitaram nos ouvir.

Porém, no final da história os dois simplesmente se retiraram sem dizer nenhuma palavra. E eu fiquei novamente com todo o peso do mundo em minhas mãos.

 


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Notas finais do capítulo

A quem chegou até aqui muito obrigada e queria agradecer também a todos que comentaram a fic, cada palavra de vocês me anima a escrever mais e melhor, além de me dizer se estão gostando e se estou no caminho certo. Opiniões são mais que bem vindas. Até a próxima.