Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 2
Outros




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Samantha

Mais um dia vazio, seco e completamente inútil. Não há relógios, calendário, meses ou festas de passagem de ano. A necessidade de contar as horas e saber as datas não é mais algo vital como antes. Os passos apressados dos humanos cessaram. O tempo parou de correr. No entanto, vivo com o medo constante de que para mim o tempo se esgote mais rápido do que deveria.

No passado, as pessoas privadas de sua liberdade e mantidas em cárcere sabiam que ficar trancadas em um recinto insólito era o mesmo que perder boa parte de sua vida, desse modo contavam os dias em que poderiam sair e se sentir livres novamente. Mas agora, nessa nova era, a única maneira de manter a vida era justamente o contrário. Fortalezas e prisões escondidas e intransponíveis são a única forma de continuar livre. Livre de perder-se dentro de si mesmo e ter seu corpo roubado e usado por alienígenas. Se alguém me dissesse isso há anos atrás jamais acreditaria nessa possibilidade tão assustadoramente impossível.

Parece loucura, mas é a realidade.

Antes me perguntava: como um dia poderia ser considerado vazio? Agora sei bem a resposta para essa pergunta. Experimente perder todo o seu mundo, todos os seus sonhos e todas a pessoas e coisas que você conhece. Quer saber como um dia pode ser vazio? Olhe para o lado e veja que você é única no mundo. E não de uma forma positiva e boa. Estou falando de única mesmo. A única mulher humana que sobrou na terra.

Bom, pelos menos era isso que eu pensava enquanto caminhava pela manhã.

Sai do meu esconderijo e verifiquei se havia deixado alguma pegada, alguma marca que nos delatasse. Meu irmão estava ali dentro em segurança e ainda havia um pouco de alimento para ele, sendo essas então as únicas coisas que importavam para mim. Ao constatar que não tinha deixando nada para trás, coloquei a mochila nas costas e comecei a longa caminhada até fora dali. 

Enquanto caminhava observei a floresta e a paz era quebrada somente pelos pássaros e pelos passinhos dos pequenos animais que costumavam caçar. Já quase no limite com a estrada parei para beber água assim que cheguei ao esconderijo do carro. Observei se não havia nenhum movimento e me senti segura para prosseguir com o silêncio imperando e me mostrando que eu estava sozinha. Sempre sozinha. O céu ainda azul me encheu de nostalgia e tristeza. Pelo menos tudo estava na mais perfeita ordem. O barulho de tiros.

Tiros.

Dei-me conta do que havia ouvido e procurei a direção de onde viera o som. Eu havia andado por horas e por isso estava longe de onde Adam estava, no entanto mantê-lo seguro era prioridade e uma promessa, pois por ele eu daria minha vida. Tiros era sinônimo de buscadores.  "Malditas almas!" – larguei a mochila e saí correndo.

À medida que me aproximava o zumbido de um drone ficou mais audível e os tiros continuaram a encher a floresta com o odor de pólvora. Isso só poderia significar uma coisa: uma perseguição. Almas não perseguiriam os seus, pois essa nova sociedade hipócrita era demasiadamente perfeita. Se os buscadores estavam atrás de algo deveria ser de humanos.

Outros humanos.

Dei a volta por uma parede de pedras e consegui avistar um grupo correndo desesperado e desordenadamente. Aquilo me pareceu tão surreal e incrível que eu não poderia simplesmente assistir. Havia humanos! Ainda havia humanos! E eles estavam ali, correndo perigo a apenas um palmo de mim.

Olhei para minha arma, espólio de um outro encontro com buscadores há alguns anos, e decidi que deveria usá-la. Porém, por pior que fossem as almas eu odiava matar outro ser, pois era um corpo humano que tombaria, então rezei para não precisar fazer isso novamente. Me consolei pensando que não havia escolha, nós estávamos extintos e se outros humanos estavam em perigo era minha obrigação ajudá-los. Lembrei das palavras de meu pai: “relaxe o cotovelo, Sam, mire um pouco abaixo à direita. Respire, garota, não tenha medo”.

Respirei compassadamente e comecei a correr atrás dos humanos, atirando na direção oposta na tentativa de afastar os buscadores. Eu podia ouvi-los e eles pareciam ferozes, estranhamente diferentes de como eram há muitos anos. A porcaria do drone passou a me perseguir e tentei acertá-lo, mas ele estava alto demais para que eu o atingisse.

Nós não iríamos conseguir, pois enquanto corríamos cegos os buscadores estavam sendo guiados. Eu não estava muito distante dos humanos e corri mais rápido na tentativa de alcançá-los. Foi então que percebi onde estava e um misto de pavor e alívio me invadiu.

Havia uma chance para nós. Mas ela poderia nos matar.

Comecei a gritar para que eles pulasse do penhasco, mas os imbecis deviam estar tão paralisados pelo medo que não se mexeram. Eu conseguia vê-los, mas eles estavam olhando para a direção errada e não me viam chegar. Atirei nos pés deles para ver se eles pulavam, mas um dos caras pegou uma arma e temi que isso virasse um confronto. Então, munida de uma coragem que eu nem imaginava que tinha, saí da mata com toda a força e me choquei contra eles, os desequilibrando e nos fazendo cair no penhasco.

A queda durou poucos segundos e minhas costelas doeram como o diabo ao baterem na água. Algumas pedras passaram raspando por minhas pernas, e a forte correnteza me jogou de cabeça em uma delas. Usei os braços para não me machucar muito, mas sem fôlego acabei afundando. Uma mão agarrou forte o meu braço e me levou para cima, me salvando e permitindo que eu respirasse novamente.

Engatinhei até a terra e coloquei para fora água e até pedaços de folhas. Uma mão bateu em minhas costas e era a de uma garota. Uma garota humana. Um cara me ajudou a levantar enquanto outro casal somente ficou abraçado mais distante de mim, a menina tremendo e chorando.

Eu estava muito feliz, aquilo era o mais perto possível que eu tinha passado de ter esperança, era o fim da solidão. Contudo eu decidi agir com com cautela, pois mesmo sendo humanos eu não os conhecia e não podia confiar plenamente neles. Depois de respirar fundo e controlar a ânsia de vômito consegui falar.

— Vocês deviam ter pulado quando eu mandei! — minha voz saiu rouca, machucada. O cara perto de mim sorriu.

— Desculpe ter demorado a tirar você da água. É que a Peg... —  ele olhou para o casal e parou de falar, o olhar duro. Imaginei que a menina não sabia nadar e eles deram prioridade a ela, mas não entendi o motivo de sua expressão ter se modificado.

— Quem é você? — a moça alta perguntou, meio desconfiada. — O que faz aqui sozinha? Como encontrou a gente?

— Calma aí, uma pergunta de cada vez. Eu moro aqui — respondi impaciente, tossindo. — Estava dando uma volta quando ouvi o barulho de tiros e vim verificar. Reconheci os buscadores e vi quando estavam prestes a matar todo mundo. Então eu atirei, obrigada — respondi, zangada. Os quatro ficaram me encarando. — E vocês, quem são?

— Eu sou Jared, e essa é a Melanie, e aquele é o Ian — o rapaz perto de mim apresentou a todos, mas esqueceu de dizer o nome da moça baixinha.

— Olhei nos olhos de cada um para ter certeza de que realmente eram humanos. Só não consegui ver os da garotinha porque ela não deixava. Senti uma sensação estranha ao fitá-la.

— Nós agradecemos — o rapaz chamado Ian se aproximou de mim e estendeu a mão. — Muito obrigado, senhorita?

— Samantha. Samantha Collins — respondi apertando a mão dele, ainda tonta. — Podem me chamar de Sam. E não precisa me chamar de senhorita. — outra respirada. — Nós estamos péssimos! — disse analisando a todos. — Aqueles parasitas não vão nos deixar em paz, precisamos mesmo sair daqui. — Comecei a olhar em volta, verificando onde estava e qual caminho tomar. — Faz anos que eu não vejo um humano, achei que era a última. Como vieram parar aqui? — questionei enquanto olhava para cima e via que parecíamos seguros. A correnteza nos ajudara com a distância.

A garota alta, Melanie, se encarregou de contar toda a história sobre a incursão e à perseguição dos buscadores. Escutei tudo com atenção.

— Vocês estão muito longe do deserto. Vamos andar muito, mas chegaremos num local seguro. Lá tenho remédio e comida — ofereci. — Sigam-me.

Virei de costas e não esperei resposta, apenas ouvi os passos deles me seguindo e continuei em frente. Avisei-os que a caminhada não seria nada fácil, o chão era íngreme e coberto de raízes, dificultando a nossa passagem. Andamos por horas e eu já estava exausta antes da metade do caminho.

Depois de muito caminhar entre pedras, raízes e um calor abafado, chegamos a uma pequena cachoeira. Minha fortaleza, como Adam costumava dizer, era linda e esse ponto da floresta parecia intocado pelo homem. A água descia em cascatas sobre as pedras altas e lisas e as árvores bailavam de acordo com o vento. O ar era bem mais fresco que o resto da floresta e pássaros faziam festa de galho em galho. O córrego descia suavemente mata adentro e o cheiro de terra molhada nos deixou serenos.

Meus ombros, antes tensionados, agora desciam suavemente enquanto respirava. — Venham por aqui — disse enquanto me dirigia a base da cachoeira. Uma cortina de água encobria nada mais do que grandes rochas e os fiz subir em algumas pedras e entrar em um buraco escondido por detrás do véu.

A entrada não molhava quem passava, porém era alta e próxima demais do volume de água e por isso aparentava ser intransponível. Qualquer um que olhasse não encontraria absolutamente nada ali, realmente era um esconderijo incrível. Quando todos nós transpassamos o buraco chegamos a um imenso salão vazio. Não havia nada lá além de sombras.

— Você mora aqui? Como? — Melanie perguntou curiosa.

— Eu não moro aqui — respondi. — Ainda andaremos mais um pouco dentro da caverna. Tomem cuidado.

Entramos em uma abertura lateral quase imperceptível os levei a um labirinto. Andamos em ziguezague pelos labirintos de pedra, descendo, subindo, esquerda, direita. Quando avistamos uma luz baça ao final de um corredor eles ficaram contentes e cochicharam quando os conduzi até o interior da caverna, que era iluminada naturalmente pelo sol que lançava seus raios através de uma grande abóbada.

— Sentem-se — apontei para uma "mesa"que Adam construira com restos de madeira e eles se acomodaram. — Esperem aqui que eu já volto — anunciei em voz alta e sumi em um corredor. Fui ao encontro do meu irmão, que estava escondido caverna adentro. Entrei em uma abertura que fazíamos de quarto e fiquei tranquila ao constatar que ele estava lá. 

— Adam — chamei e ele ficou assustado ao me ver de volta. — Temos visita.

— O quê? — Ele piscou aturdido. — Do que você está falando?

Contei para ele tudo o que aconteceu e Adam ouviu calado e sem fazer nenhuma objeção. Quando terminei imediatamente ele quis sair correndo para conhecê-los.

— Negativo, você vai ficar aqui. Tem alguma coisa estranha com eles, não estou conseguindo confiar. Estou sentindo isso. Dê-me um tempo a sós com eles, ok?

— Ok — ele concordou e voltei para junto do grupo. Como havia dito para Adam, eles pareciam esquisitos, se olhavam o tempo todo e faziam expressões estranhas. E, claro, pareciam querer esconder a garotinha a todo custo. Eles ainda permaneciam sentados  quando cheguei e conversavam baixinho entre si. Decidi que primeiro os ajudaria e depois tentaria descobrir mais sobre eles.

 Alguma coisa me dizia para ficar de olho. Havia algo errado, eu podia sentir, mas por Adam eu daria uma chance a eles e ouviria a história que os acompanhava. Ian quebrou o silêncio perguntando para mim há quanto tempo eu vivia ali e como sobrevivia sozinha no meio da mata. Respondi que vivia há anos nessa caverna e que era uma descoberta de antes da invasão.

— Esse lugar é um milagre — continuei a explicar. — Quase toda a área do estado é desértica e praticamente impossível de gerar qualquer coisa. Mas como estamos em cima de um imenso aquífero, aqui o terreno é mais fértil e propício à vida. Um pequeno oásis de esperança quase impossível de entrar sem se perder. Quando avistei os buscadores fiquei furiosa com a possibilidade de perder minha casa. Eles não se cansam de nos roubar — proferi entristecida.

Felizmente a conversa fluiu e eles me contaram como era a vida no deserto, mal pude acreditar na quantidade de pessoas que ainda estavam vivas e escondidas. Como a floresta não fora gentil conosco na fuga alguns deles estavam levemente machucados. Ofereci medicamentos e eles ficaram muito espantados quando retirei de dentro de uma caixa de papel pequenos cilindros prateados. Eram os remédios que as almas usavam em suas instalações de cura. Adam uma vez se machucara em uma queda e como aquilo era a único remédio disponível nos hospitais eu me vi obrigada a roubar e usar.

— Remédio de alma! — o rapaz disse sobressaltado ao reconhecer. — Como conseguiu isso? Você saber usar essas coisas?

— Mais ou menos. Precisei uma vez e como isso era a única coisa que tinha num hospital eu usei. No desespero a gente não pensa em nada. Por sorte isso não faz mal, aliás eles são muito bons até.

Eles os usaram para curar os machucados e eu apenas os observava enquanto isso. Ninguém perguntou o nome de nenhum dos frascos, aliás, eles pareciam conhecer aquilo bem intimamente. Tudo era muito estranho e por isso levantei bruscamente e cheguei perto da outra garota, que parecia ainda mais assustada do que antes. De algum modo ela me era familiar. Notei que algo a estava incomodando, pois evitava me olhar e parecia se esconder.

— Garota, você está bem? — perguntei e ela então levantou a cabeça, mas permaneceu de olhos fechados...

Não!

Eu conhecia aqueles traços!

— Sam — Ian iniciou com cuidado — tem uma coisa que você precisa saber. Uma coisa que talvez você não aceite muito bem no início.

Senti que de algum modo essa conversa não acabaria bem, pois Jared imediatamente ficou na defensiva. Dei dois passos para trás para analisar a garota melhor e memórias vinham na minha cabeça, me enchendo de certeza e confusão.

— Sam — a garota chamou meu nome e eu finalmente tive certeza. Todos pareciam muito assustados, mas eu não consegui entender o porquê, a única coisa que me dei conta no momento foi da imensa felicidade que senti ao vê-la. Lágrimas caiam de meus olhos e eu me lancei sobre ela num abraço que eu precisava há muito tempo.

Era um milagre.

— Pequena Grace, você esta viva! Eu não posso acreditar nisso. Ah, Grace, Grace. Finalmente você agora está em casa!


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