Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 1
Incursão




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Peg

É estranho ser "aquela que mudou de lado", mesmo que a recompensa por isso seja tudo o que eu jamais imaginei ter. Amor, amizade, felicidade. Eu ainda estava me acostumando a ser quem eu havia me tornado, contudo, apesar de ser uma alma, eu nunca me sentira tão humana quanto agora ao estar entre a minha família, lutando por eles e sendo necessária.

Já estávamos há exatamente duas semanas nessa incursão, uma das mais longas desde que retornei no corpo que antes pertencia a Pet. Dessa vez não fomos para o sul, pois em nossa última incursão tínhamos ido nessa direção e não queríamos repetir os locais cedo demais. Com o meu auxílio não era mais necessário roubar e nos arriscarmos tanto como antes. Simplesmente percorríamos todos os supermercados e mercados das cidades, eu entrava e enchia os carrinhos com o que precisávamos e depois levávamos tudo para Aaron e Brandt que nos esperavam escondidos com os caminhões a alguns quilômetros de distância de cada cidade.

Enquanto andávamos pela estrada eu observava atentamente todos a minha volta e pensei que, apesar de tudo, nunca me arrependi das minhas decisões, nem quando eu e Melanie pensávamos que iríamos morrer no deserto procurando pelas cavernas de Jeb. Eu sabia que o que estava fazendo era o certo e faria tudo de novo se fosse preciso. Depois, quando decidi morrer para libertar Melanie senti que a liberdade também seria um pouco minha, já cansada de tantos milênios de peregrinação. A dor que sentia em meu peito era tanta que não queria que ela fosse apenas uma lembrança em um outro corpo quando acordasse séculos depois em um planeta diferente.

Não. Eu era humana em todo o meu ser e esse corpo, embora frágil, agora me pertencia por direito. Eu havia conquistado o meu espaço e me sentia grata por isso amando todos e principalmente Ian.

Meu Ian.

No início eu não conseguia separar meus sentimentos dos de Melanie e amei Jared até o meu coração sangrar. Mas quando consegui separar o que era dela do que era meu isso foi libertador e me permitiu ver as outras possibilidades. Confesso que tive medo de que Ian transferisse os seus sentimentos para Melanie, já que ele me amou com o rosto dela. No entanto Ian me ama no corpo que pertencia a Pet e quando disse que havia me segurado em suas próprias mãos, eu, a alma, tive certeza que nosso amor era verdadeiro. Toda a neve, safira e meia-noite agora pertencem somente a mim.

Pertencer. Como alma o sentimento de posse nunca foi comum entre os de nossa espécie. Entretanto, hoje não me vejo dividindo Ian com ninguém. E esse pensamento “egoísta” demais para uma alma me fez sorrir e perceber o quanto eu havia mudado em minha estadia na terra. Apenas um ano e alguns meses apagaram todos os meus milênios de existência em outros planetas. Aqui eu me sentia completa.

A viagem seguia tranquila enquanto o sol se punha. O contraste entre o amarelo do deserto e o vermelho e dourado do pôr do sol se mesclavam e pintavam um quadro natural indescritível que eu jamais vira em nenhuma das minhas vidas anteriores, basicamente desprovidas de cor. A vida de um humano era uma das mais curtas entre todos os hospedeiros que já tive, mas não me importava. Eu só precisava de mais uma vida.

Enquanto eu pensava, longos quilômetros avançaram por nós até o cair da noite. Nós nos sentíamos cansados e fadigados e com o término das chuvas o clima voltara a ser insuportável. Já nos limites da cidade troquei de lugar com Jared e assumi o volante do carro para o caso de sermos parados por buscadores. Eles agora eram bem mais hostis do que antes, portavam armas de fogo e atiravam para matar, a necessidade de exterminar os “terríveis e perigosíssimos” humanos se tornando maior do que a necessidade de novos corpos. Esse pensamento me fez tremer e uma lágrima ameaçou cair. Ian, que trocara de lugar com Melanie e se mudara para o meu lado, percebeu.

— Peg, você está bem? — me perguntou com seus olhos safira cheios de preocupação. — Você está sentindo alguma coisa?

— Não se preocupe, Ian — respondi tentando tranquilizá-lo. — É só cansaço.

— Algum problema? — Melanie se inclinou para frente para que pudesse ver o meu rosto. Ela também estava com um semblante preocupado.

— Não é nada, fiquem tranquilos. Acho que é só uma daquelas sensações que o corpo provoca sem termos explicação — falei sorrindo para acalmá-los e encerrar o assunto.

Ian pareceu acreditar, ele já tinha o seu próprio nervosismo para lidar e esconder, mas Melanie parecia sentir o mesmo que eu e me lançou um olhar de cumplicidade e infelizmente isso só me fez ficar pior.  Após uma hora chegamos ao centro da cidade, preparados para recolher o que fosse necessário. Eu argumentara que fazer compras à noite seria bem mais seguro já que todos poderiam ficar mais bem escondidos dentro do carro e assim o fizemos.

No primeiro supermercado as compras foram bem rápidas, ele estava quase vazio devido à hora. Enchi dois carrinhos com tudo o que estava na lista e ainda acrescentei alguns supérfluos para os que esperavam.

O caixa do supermercado era um senhor de meia idade, de olhos verdes prateados e extremamente simpático. Ele passou os itens um a um e entregou para um jovem organizar. Peguei a conversa dos dois no meio e pude entender que falavam de humanos.

— Acredite! — disse o mais velho. — Os humanos já estão exterminados. Pelo menos os nascidos antes da invasão. Agora a ordem é evitar a qualquer custo que os remanescentes façam mal a qualquer alma.

— Mas e as nossas irmãs que desejarem vir para este mundo? Se não há mais humanos para hospedar, a terra será fechada? — o empacotador perguntou olhando para mim. — O que a senhorita acha?

Fiquei atônita, sem saber o que dizer. Se as almas acreditassem que todos os humanos estavam extintos, talvez minha família pudesse viver em paz. No entanto, se por um descuido os buscadores ficassem sabendo de um grupo humano eles seriam agora muito mais preciosos devido à escassez de corpos. Um nó se formou em minha garganta.

— Não sei o que dizer — foi o que consegui responder.

O senhor sorriu para mim e me entregou as compras, perguntando se não desejaria ajuda para empurrar os carrinhos até o meu veículo, o que recusei gentilmente, pois queria sair dali o mais rápido possível.

Estranhamente não conseguia mais me sentir bem entre os da minha própria espécie, aqueles humanos que me aguardavam escondidos agora eram tudo o que tinha. E queria. Ao chegar ao veículo estacionado na vaga mais escura onde Melanie, Ian e Jared estavam ocultos, uma onda de alívio me invadiu.

Descarregamos o mais rápido possível e partimos. Ian adormeceu cansado ao meu lado e Melanie estava tão sonolenta que não prestava atenção em nada. Só Jared parecia perceber que havia algo errado comigo, mas apenas me olhou desconfiado.

Rodamos um pouco até encontrarmos um hotel, sempre tínhamos que tomar o cuidado de nos hospedarmos em um diferente a cada incursão realizando um rodízio. Como de costume fui até a recepção e forneci nomes falsos enquanto meus amigos entravam pelos fundos. Melanie e Jared ficaram em um quarto em frente ao meu e de Ian, assim seria mais fácil nos comunicarmos caso necessário.

Observei a estrada pela e janela do quarto e pensei novamente em todos os meus medos e anseios. Eu não queria que nada de mal acontecesse com a minha família e me senti fraca ao perceber que a única coisa que eu poderia fazer por eles era fornecer aquela comida roubada. Eu não poderia lutar contra esse sistema, mesmo com o apoio de Sunny e Cal. Almas ao lado de humanos seria visto como uma aberração e teríamos um destino tão triste quando o deles. Os pensamentos me esmagavam, sufocavam e ardiam em minha mente: Será que estávamos seguros nas cavernas? Como era possível que os buscadores, que eram almas naturalmente bondosas e compassivas, estivessem se transformando e se tornando más e egoístas, igualmente ou até piores aos seres que tanto julgavam como inferiores? Eu não suportaria perder ninguém da minha família e perdê-los para as almas seria uma dor maior ainda.

— Sei que você está preocupada conosco, Peg, mas fique tranquila. Estamos sendo cuidadosos, nada irá acontecer — Ian disse me puxando mais para perto de si, me amparando como se fosse capaz de ler meus pensamentos. — Eu amo você, sabia?.

— Eu também te amo muito — respondi. — Acho que ainda não sei lidar com os anseios humanos tanto quanto gostaria. Desculpe.

— Não se preocupe. Tudo tem seu tempo, não é mesmo? — suas palavras saíram entrecortadas por um bocejo.

Eu compreendi o seu lado e encerrei o assunto, pois o dia seguinte começaria cedo e teríamos que sair antes do amanhecer para diminuir os riscos. Nós nos beijamos castamente e deitamos abraçados, comigo encaixada em seu peito. Era para eu me sentir segura em seus braços, contudo uma sensação de angústia preencheu o meu coração de agonia me causando dor. Sem entender ainda todas as nuances do corpo humano torci intimamente para que não fosse nada demais.

Ian acreditava em uma entidade divina capaz de proteger os humanos do perigo, então pedi baixinho para esse ser divino que aliviasse o meu coração, protegendo a todos que eu amava e que ele quem sabe pudesse perdoar as almas por tudo que fizeram. Com as palavras dessa pequena oração ainda ecoando em minha mente cai na inconsciência.

O despertador nos acordou poucas horas depois avisando que era hora de partir. Nós nos arrumamos rapidamente e saímos juntos, com Melanie, Jared e Ian de cabeça baixa. Os três foram para o carro enquanto eu iria devolver as chaves. Dirigi-me até a recepção para fechar nossa estadia e me preocupei a ver várias almas conversando lá dentro, todas muito alegres, provavelmente reunidas para comemorar alguma coisa.

Foi então que tudo aconteceu muito rapidamente. Uma garota entrou em disparada acompanhada de um alto rapaz e ambas as almas pareciam muito nervosas. Ela tremia copiosamente enquanto era amparada por ele e um estalo ecoou em minha cabeça.

Só havia uma coisa no mundo capaz de causar tanto medo entre os de minha espécie. Uma coisa capaz de alarmar tanto as almas.

Humanos.

E o pior de tudo, com certeza os meus humanos.

— Humanos. Lá. Fora! — a garota praticamente gritou, atraindo a atenção de todos. As almas presentes começaram a se desesperar e o clima ficou tenso. 

— Você tem certeza disso? — alguém perguntou enquanto eu mal conseguia respirar.

— Sim! — ela respondeu. — São três... e... estão em um carro preto... Dois homens... e uma mulher — ela soluçava.  — Eu os vi!

— Alguém chamou os buscadores? — uma senhora perguntou temerosa.

— Já fizemos isso — respondeu o acompanhante da garota. Eles vão chegar a qualquer momento.

Com a afirmação do rapaz saí correndo como jamais corri em toda a minha nova vida. Eu não podia deixar que minha família fosse capturada, então daria a minha vida para protegê-los. As almas presentes no lugar provavelmente interpretaram a minha reação como pânico por haver humanos na área e apenas se entreolharam.

Ao chegar ao estacionamento avistei os carros dos buscadores indo em direção à entrada do hotel. Quando Ian me viu, correu ao meu encontro, o que me deixou ainda mais nervosa.

— Corram! — foi tudo que consegui dizer. Jared tomou o volante com Melanie ao seu lado e Ian praticamente me jogou para dentro do carro. Como os buscadores chegaram pelo lado oposto ao nosso eles por um milagre não nos perceberam sair. Eles então saíram dos seus carros prateados, estacionaram em frente ao hotel para nos procurar e desse modo ganhamos alguma vantagem. Na rodovia, nosso veículo deu um salto para frente e rapidamente ganhou velocidade.

Há tantos dias na estrada já estávamos muito longe do deserto. Não podíamos voltar e pôr todos em risco e por isso tomamos a direção oposta. Mesmo sabendo que o excesso de velocidade poderia nos delatar Jared pisou fundo no acelerador na tentativa de nos afastar de nossos perseguidores. Sabíamos que em pouco tempo eles estariam em nosso rastro.

Peguei uma das pílulas capazes de tirar nossas vidas e ela parecia pesar toneladas em minha mão. Segurei o veneno com força e pensei em como novamente o fim poderia se aproximar. Sim, eu morreria para proteger quem eu amava, mas não era justo. Não agora.

Quando cerca de trinta quilômetros ficaram para trás começamos a nos sentir mais confiantes, pois não havia mais sinal dos buscadores. Parecia que de algum modo conseguíramos escapar. Ian respirou aliviado e Melanie e Jared também. Porém, nenhum de nós sabia que essa paz duraria apenas mais alguns minutos.

— Parece que conseguimos despistar — Jared disse para Mel. Ian me abraçou e quase sorriu, mas parou assim que viu o meu rosto.

— Peg, você está se sentindo bem? — questionou preocupado.

— Estou aflita – respondi. — As almas desistiram fácil demais e isso não parece certo, pois buscadores são perspicazes e insistentes. Algo esta fora do lugar. Estou com um mau pressentimento — continuei ainda com a angústia martelando em meu peito. Embora todos os meus antigos hospedeiros não tivessem mais do que três sentidos eu já conseguia compreender o sexto sentido humano, uma espécie de aviso sobre os maus presságios.

Para nossa desventura, os sentimentos negativos só se confirmavam à medida que avançamos estrada acima e avistamos ao longe uma pequena movimentação no acostamento da estrada. O sol então refletiu o prata dos carros dos buscadores e soubemos no mesmo instante que tudo havia terminado. Uma emboscada havia sido armada. Com certeza os buscadores avisaram seus parceiros da cidade vizinha para que viessem ao nosso encontro e nos pegasse de frente.

Como estávamos em uma autoestrada com uma floresta de cada lado só tínhamos duas direções para seguir: retornar ou ir em frente, não havia nem uma via que a entrecortasse e nos desse ao menos uma chance de escapar. Embora os carros estivessem vindo em nossa direção Jared parou e eu me preparei para os nossos momentos finais.

Melanie, sempre tão forte, não chorava, apenas respirava furiosamente como um animal cheio de raiva. Ian me olhava com os olhos cheios de dor e me abraçava com tanta força que estava me machucado, mesmo assim não reclamei. Jared socava o volante inconformado, pois tomava para si toda a carga de nos proteger e sentia que falhara.

— Não é culpa sua — Ian disse para amenizar os sentimentos do amigo. — A culpa é minha. Eu olhei para a garota no estacionamento do hotel porque ela foi uma amiga minha antes da invasão, por isso não consegui evitar quando a reconheci. — Ele abaixou a cabeça, arrependido, e uma lágrima escorreu.

— Eu amo vocês — eu disse. — Desculpem por tudo o que nós almas fizemos a vocês, eu realmente sinto muito. Por favor, me perdoem.

— Não precisa se desculpar — Melanie olhou para mim e depois para Jared. —  Eu não quero morrer me lamentando.

— Não! — Jared gritou. — Ninguém aqui vai morrer sem tentar!

Nós então saímos do carro e corremos para a mata, pois mesmo com todos os riscos era a nossa única chance. Entramos a toda velocidade batendo em galhos e desviando de pedras. Eu não fazia ideia de como sairíamos dali caso sobrevivêssemos, mas sobreviver era o que precisaríamos fazer primeiro. As sirenes ficavam cada vez mais próximas e eu juro que ouvi um barulho muito parecido com tiros.

 "Não podemos morrer, não podemos morrer" eu pensava enquanto corria, sem me importar com os machucados e arranhões. Pensei em Jamie e em como ele se sentiria quando suas irmãs não voltassem para casa e o estoque de comida acabasse e todos começassem  a passar fome. Quem iria incursionar agora? Aaron e Brandt com certeza. Deus permita que Jeb jamais deixe Jamie sair das cavernas se algo nos acontecer. E que Sunny e Cal possam os ajudar de vez em quando, se nós morrermos.

Nós. Essa palavra cortou o meu peito como uma lâmina afiada. Eu preferiria morrer sozinha a saber que Ian também perderia sua vida. Pela primeira vez em minha existência senti ódio pelas almas e pelo que faziam. Eu agora entendia os humanos mais do que nunca.

Os minutos pareciam horas e cada segundo a mais de vida também era um a menos. Tínhamos avançado muito mata adentro, fazendo curvas para todos os lados, contudo eu conseguia ouvir vozes nos chamando e nos dizendo que eles não haviam desistido. Imaginei que não seria possível ficar pior.

Mas ficou.

A nossa frente o chão acabou e um pequeno penhasco esperava pacificamente para nos engolir, nos mostrando com aquela paisagem o quanto estávamos longe de nossa casa. Nada mais havia a fazer além de nos sacrificarmos por aqueles que amávamos.

Escutei mais tiros e isso me pareceu muito estranho, como se houvesse alguém revidando. Jared estava com a arma da buscadora, a mesma com a qual ela matara Wes, mas ela seria inútil contra o que estava acontecendo e ele disse que só atiraria quando algum buscador estivesse visível. Então, de repente começamos a ouvir alguém gritar: pulem! pulem!, mas não entendemos o que isso significava.

A mata farfalhava. Tiros mais próximos foram disparados em nossos pés, nos fazendo recuar para a beira do precipício. Um drone passou sobre nós, mostrando o porquê de não termos sido perdidos de vista um único momento. Jared atirou nele sem sucesso e assim que ele fez a curva nós nos viramos e ficamos cara a cara com ele, de frente para o precipício. Foi um ato reflexivo, pois jamais deveríamos ter dado as costas para os inimigos.

Jared se preparou para atirar de novo quando, inesperadamente, alguma coisa saiu da mata pelas laterais e se jogou sobre nós quatro tão rapidamente quem não conseguimos evitar, o impacto e o susto nos fazendo cair juntos do penhasco. Eu não consegui ver quem era e nem entender por que os buscadores tiram feito algo do tipo.

Eu tinha sentido a sensação de cair para a morte somente nas memórias de Melanie, mas me lembrei do pânico e de todas as sensações.

 Porém, agora era diferente.

Aquilo ali era real e eu não sabia se acordaria dessa vez.


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