Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 4
Histórias


Notas iniciais do capítulo

Olá povo. Sei que está a fic está com uma cronologia lenta, mas algumas coisas precisam ser resolvidas primeiro para que a história faça sentido lá na frente. Nesse capítulo vocês saberão mais sobre Samantha e a história dela.
Agradeço a todas as pessoas que deixaram comentários incríveis, em especial a Gabi Lavigne e Ana Jomoholic que fizeram recomendação divas!! Suas palavras me marcaram muito, agradeço de coração. Esse capítulo vai dedicado a vocês e digo que não são só leitoras como escritoras maravilhosas. Beijos a vocês meninas e boa leitura a todos!!!



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Sam

— Contem-me essa história direito. — Disse para eles, pois eu até agora não havia entendido nada. Eu queria uma explicação coerente para o que estava acontecendo e os motivos que levaram aqueles humanos a se aliarem a uma alma. Eu olhava para o corpo de Grace sem acreditar no destino e minha vontade oscilava entre matar a alma e abraçá-la. Mas eu não seria capaz disso. Ainda era a minha menininha lá.

Eu podia ouvir a respiração compassada de Ian e os movimentos repetitivos que Jared fazia com as mãos quando Melanie pigarreou e começou a contar a história maluca deles.

— Bom — Melanie iniciou — há cerca de dois anos eu, Jared e meu irmão Jamie achávamos que éramos os últimos humanos da face da terra. Até o dia em que fui capturada e inseriram Peg na minha cabeça. A partir daí que tudo aconteceu...

Melanie falou sobre a sua não supressão, os desejos e o amor que a tal de Peg nutriu por Jared e pelo irmão da garota. Contou também como Ian se apaixonara pela parasita dentro dela e como ele e Jared travavam uma disputa impossível por duas mulheres que habitavam um único corpo. A garota então contou que a parasita quis morrer, mas como todos a amavam eles decidiram dar um novo corpo a ela.

Mas eles não poderiam dar algo que não lhes pertencia.

— Certo, certo — suspirei. — Tudo isso é muito bonito, quase um conto de fadas pós-apocalíptico. Mas isso não te dá o direito de usar as pessoas — disse me dirigindo à alma. — Vocês invadem, matam e quando se arrependem por que simplesmente não vão embora? Se você pode ir embora faça isso. Arrume outro corpo e me devolva a Grace para que ela possa ter um funeral decente.

— Isso não faz sentido, Samantha — Ian se exaltou colocando-se na minha frente. — Grace não está aqui, ela foi suprimida há muito tempo por uma outra alma que nem está mais neste planeta. A Peg não tem culpa do que aconteceu a sua amiga. Ela sequer a suprimiu — Ian tentava defender a alma e isso me deixava com raiva.

— Mas eu a conhecia desde o seu nascimento, isso não conta? — questionei e pela primeira vez Ian baixou a guarda. — Você faz ideia do que é reencontrar alguém que fez parte da sua vida e no final descobrir que tudo não passou de ilusão?

—Sim — ele respondeu e isso me surpreendeu. — Jodi nunca acordou...

E outra história maluca me foi contada sobre uma outra alma que também viviam com eles. Eu me perguntei se estavam todos loucos, se aquilo era verdade ou se era realmente um indício de esperança para nós. Contudo olhar para Grace e não vê-la era doloroso demais para pensar em qualquer coisa boa.

— Samantha — Adam chamou e a suavidade em sua voz me trouxe de volta. Ele estava com um semblante carregado de sofrimento, mas parecia analisar as coisas de modo mais racional. Adam tinha uma calma tão intensa que chegava a ser irritante. — Tente ficar calma. Você não percebe que nada mais pode ser feito?

— Como assim nada? Você não liga para ela? Para a morte dela? Ela era sua amiga! — eu bradei tão cheia de raiva que achei que nem Adam escaparia da minha fúria caso me descontrolasse. Tudo dentro de mim doía como se cada célula minha estivesse sendo corroída.

— Justamente por isso eu quero ouví-la! Eu quero saber tudo o que aconteceu com ela e principalmente toda essa situação. Você já viu isso alguma vez? — ele questionou e eu não soube o que responder. — Você não percebe que isso pode ser a esperança que tanto buscamos?

— Esperança? Eu não sei, Adam, se isso ainda poderá existir. Mas se você quer tanto falar com a alma, tudo bem. A escolha é sua — respondi e olhei para os outros que permaneciam no mesmo lugar. Eles agora estavam mais calmos apesar de parecerem capazes de tudo para defender a parasita.

Adam não me disse mais nada, apenas se virou e deu alguns passos na direção da parasita. Depois de olhá-la por longos segundos falou, já usando o seu tom de voz normal.

— Peregrina, quais as lembranças que você tem de nós?

Pensei em como ele deveria estar se sentindo. Será que ele gostaria de enterrar o corpo da amiga ou não suportaria a dor de mais um luto por ela novamente?

— Algumas somente. Não há mais quase nada aqui — a criatura respondeu. — Sinto muito. Samantha — ela se dirigiu a mim e odiei ouvi-la me chamar pelo nome — me desculpe, por favor. Eu não suprimi a Grace. Quando retiraram a alma que antes habitava o seu corpo ela não acordou. Esperamos quase um mês e nesse ínterim o corpo dela quase morreu. Eu sinto muito. Muito mesmo.

Mordi o lábio e fiz uma expressão aflita, engolindo lágrimas que queriam muito sair e se espalhar pelo meu rosto. Nada fazia sentido.

— Sam — Jared se manifestou —, eu compreendendo tudo o que passaram, mas eu peço que, por favor, vocês confiem em nós e na Peg. Ela agora é tão humana quanto todos nós.

As palavras de Jared me ofenderam e cada sílaba me atingiu como um tapa . Como ele poderia dizer que ela era tão humana quanto nós? Quanto eu?

— Eu posso até engolir o fato de que Grace não está mais aqui, mas não diga que ela é mais humana do que eu! Eu posso ajudar vocês a voltarem para casa e não vou fazer mal a essa alma, mas não me peçam para aceitar nada. E se por um acaso vocês fizerem qualquer coisa ao meu irmão eu não posso garantir o que sou capaz ou não de fazer.

— Adam está seguro. Fique tranquila — Jared proferiu e Adam balançou a cabeça em concordância.

Eu só conseguia me sentir traída e profundamente magoada, por isso saí imediatamente da presença deles, não tinha mais condições de olhar dentro daqueles malditos olhos prateados. Procurei um bom lugar onde pudesse ficar sozinha para pensar.

E também chorar.

Eu nunca poderia imaginar uma cena como essa. A raiva me consumia quando lembrava de tudo e as horas que insistiam em passar pareciam que tinham sido vividas há muito tempo, em um universo completamente diferente. Sempre achei que no dia em que eu encontrasse outros humanos seria o dia mais feliz da minha vida, no entanto infelizmente saber que eu e meu irmão não estamos sozinhos no mundo não foi tão confortador assim.

Na verdade, Adam não era meu irmão de verdade. Eu havia sido adotada muito pequena e nem fazia questão de saber quem eram meus verdadeiros pais. Davi e Mary surgiram em minha vida como um bálsamo e me salvaram de talvez ter um destino cruel. Adam viera alguns anos depois e de surpresa, pois os dois achavam eram velhos demais para conseguir ter um filho.

Os anos passavam e eu somente aceitava de bom grado todas as adversidades da vida. Com o tempo, as notícias nos jornais foram ficando cada vez mais amenas, as pessoas melhores e quase todos pareciam diferentes. Comecei a sentir que havia algo errado.

A ficha realmente caiu quando em uma tarde fui chamada por uns vizinhos para cuidar do filho mais novo deles enquanto eles saiam com o mais velho para uma apresentação. Eu carregava o bebê no colo enquanto o casal se despedia de nós e saia feliz. Seus olhos estavam normais e tudo parecia bem.

Quando todos voltaram algumas horas depois, percebi que o casal estava diferente, pareciam cautelosos e seus olhos carregavam o estranho brilho prata que eu me acostumara a ver nos últimos meses. Mais cedo, eu havia ajudado a mulher a fazer o penteado e seu pescoço estava liso e perfeito. Agora, sua pele ostentava uma delgada cicatriz cor-de-rosa que antes não estava ali, mas que parecia há muito cicatrizada.

Eles me olharam com ternura e seus olhos refletiram a luz da sala lançando pequenos reflexos em meu rosto, que me ofuscaram. E então eu entendi tudo, as mudanças nas pessoas, no nosso cotidiano e no mundo. De alguma forma, quem possuísse o tal círculo prateado nos olhos acabava se tornando diferente do que era antes. "Será que era alguma arma química ou algum tipo de lavagem cerebral?" pensei curiosa. No início parecia bom, mas eu gostava de ser como eu era e não pretendia mudar. Entreguei o bebê para mãe com pesar e saí de lá o mais rápido possível. Quando cheguei em casa tudo então se esclareceu.

Papai então me contou completamente apavorado que as pessoas estavam sendo dominadas por criaturas que eram inseridas em nossas cabeças e tomavam nossos corpos. Grace, que estava conosco, ouvia tudo com os olhinhos apertados de medo e a cada palavra se agarrava com mais força em meu braço esquerdo enquanto eu circundava Adam com o braço direito. Nossas famílias fugiram juntas e eles passaram a viagem toda fortemente unidos a mim, enquanto eu fazia o possível para esconder o temor que assolava meus pensamentos.

Seria realmente possível estarmos sofrendo uma invasão alienígena? Mas onde estavam as armas e as batalhas sangrentas, cheias de destruição e com o exército evacuando as ruas? Onde estavam as nossas chances de lutar? Será mesmo que estávamos perdendo o planeta para criaturinhas minúsculas que de alguma forma se uniam a nossa constituição corporal e nos usavam como cascas? Eu pensava em todas as possibilidades possíveis e quanto mais eu raciocinava mais a situação parecia surreal. Eu ainda estava no meio de um debate interno quando paramos em algum lugar a esmo.

Eu não fazia ideia de onde estávamos, pois passara a viagem inteira preocupada com Adam, Grace e com o nosso futuro. Parecia que estávamos em uma espécie de sítio abandonado.

— Chegamos — Mamãe avisou e nós descemos do carro, Adam e Grace ainda agarrados as minhas mãos, um de cada lado. Ao entrarmos na casa espantei-me ao ver cerca de onze pessoas espremidas no pequeno recanto. Alguns rostos eram conhecidos, vizinhos da família e alguns amigos, e outros eu jamais tinha visto. Porém, todos carregavam a mesma expressão de terror, incredulidade e desapontamento. Nós nos acomodamos nas instalações precárias enquanto os homens montavam guarda e apesar dos protestos de mamãe e dos choramingos de Grace me juntei a eles na vigia.

A noite foi longa. As histórias então começaram surgir e a ficar cada vez piores.

— Eu achava que era algum tipo de lavagem cerebral – disse me metendo na conversa dos homens. — Todos começaram a agir tão diferente do habitual, mas eu nunca imaginei que estávamos sofrendo uma invasão alienígena...

— Eu também pensei em tudo, menos em ET’s — um homem cujo nome eu não sabia respondeu.

— Almas, elas se chamam almas. Realmente muito irônico — papai suspirou mais para si mesmo do que para nós.

— Eles foram dominando aos poucos, roubando nossos corpos e nós idiotas nem percebemos. Estava tão na nossa cara! Burros! — alguém continuou, culpado.

Todos estavam apavorados, ninguém queria ter o seu corpo violado por uma forma de vida alienígena e ser extirpado do seu próprio corpo para que outrem pudesse usá-lo. Era um destino pior do que morrer, ser capturado e se perder dentro de si mesmo. Mas pior ainda era ver os corpos de seus entes queridos já mortos vagarem livremente por ai como zumbis, não poder sequer enterrá-los e ter um lugar onde chorar. Quando eu pensava em minha família, preferiria vê-los a sete palmos do chão do que dominados.

Nosso grupo de fugitivos conseguiu sobreviver às escondidas por cerca de cinco semanas, até o momento em que a comida que havíamos trazido começou a ficar escassa. Foi necessária então a realização de uma busca por comida em meio às almas, uma empreitada arriscada e perigosa para quem concordou em sair. Nós temíamos pela vida deles, mas não podíamos ficar a míngua, esperando enquanto nosso mundo era perdido. Assim que anoiteceu, eles partiram.

Durante três dias eles estiveram fora e nós, sem notícias, começamos a nos apavorar. Na manhã do quarto dia escutamos o barulho de carros e quando percebemos a realidade um verdadeiro pandemônio se instalou, todos nós corríamos de um lado para o outro enquanto alguém do lado de fora gritava: Buscadores! Fujam! Eu só tive tempo de ver papai me entregar uma mochila e mandar Adam ficar perto de mim.

— Vá para o oeste — meu pai indicou. — Fiquem fora da estrada e faça o possível para proteger o seu irmão. Nós vamos ficar e lutar. Agora!

Não tivemos tempo nem para balbuciar um adeus, pois fomos arrastados porta afora pela família de Grace. Eu ainda carregava a esperança de que talvez os que ficaram, por algum milagre, conseguiriam derrotar as almas e nos devolver a paz, mas minhas convicções foram lançadas fora no momento em que olhei para trás e vi mamãe sendo carregada desacordada por um homem vestido de preto.

Nós corremos desesperados e ganhamos alguns quilômetros de vantagem, entretanto rapidamente fomos alcançados pelos buscadores e suas motos velozes. Mas como havíamos nos embrenhado em uma mata densa com árvores frondosas, eu então vi uma saída. Fiz Adam subir o mais rápido que podia em uma árvore muito alta e o segui, me alojando com ele em sua copa escura. Embora gritássemos pela família de Grace, eles continuaram a correr e por isso foram encurralados.

Com a aproximação dos buscadores, a mãe de Grace a colocou em um buraco que encontrou e a encobriu de folhas, deixando-a camuflada em meio à paisagem. Ela se afastou do lugar onde havia deixado Grace e logo depois foi capturada.

Nós ficar suspensos até anoitecer e quando não ouvíamos mais nada além da nossa respiração resolvemos descer. Adam imediatamente correu até Grace a quando a retirou do buraco a garota estava catatônica. Nós nos movíamos lentamente, ainda sem conseguirmos acreditar no que presenciáramos.

Andamos por cerca de um quilômetro quando fachos de luz me ofuscaram e vozes desconexas chamaram por mim.

— Adam, Grace, Samantha! Graças a Deus vocês estão bem — Uma voz familiar proferiu antes de nos esmagar em um enorme abraço. Era uma vizinha e seu marido que milagrosamente haviam conseguido escapar. Eu não lembrava seus nomes.

— Vamos por aqui, crianças — o homem indicou o caminho para o leste.

— Não! — eu bradei. — Davi disse para irmos para o oeste e evitarmos a estrada. Nós temos que seguir suas instruções!

— O casal insistiu para que nós o obedecêssemos e eu recusei. Uma discussão se instalou, pois eu confiava em Davi e havia prometido a ele que cuidaria de Adam. Resolvi acabar com a contenda e puxei as crianças pelo braço.

— A menina vai com a gente — a mulher proferiu decidida. — Vocês não conseguirão sobreviver sozinhos. Você se responsabilizou pelo garoto, mas não pela Grace. Ela segue conosco.

Eu ainda tentei argumentar, contudo não consegui. O casal arrancou Grace dos meus braços e a levou para o caminho oposto que eu e Adam seguimos. Ainda olhei para trás a tempo de vê-la acenar para nós, chorando copiosamente no colo do homem. E desde dia nunca mais a vi. Nunca mais.

Até hoje.

A partir desse dia eu e Adam vivemos sozinhos e com medo, nos escondendo em buracos e esgotos como ratos. Nós passamos por muitas adversidades, mas pior do que o medo foi sabermos que brevemente morreríamos de fome.

Foi muito difícil ter que amadurecer e endurecer a força, tendo que deixar abruptamente de lado todos os meus sonhos e a minha vida e ainda por cima cuidar da segurança e do bem estar de uma criança em meio a um mundo completamente dominado por alienígenas. A morte nos perseguia e se fazia presente em todos os rostos e em qualquer esquina, se tornando tão íntima do nosso corpo como oxigênio.

Nós demoramos muito antes de virmos parar nesse lugar tão isolado e nesse meio tempo muita coisa aconteceu. Muita coisa boa e também muita coisa ruim. Mas nenhuma dor no mundo se compararia ao que acontecera naquele dia...

Eu nunca pedi a Adam para manter segredo porque achei que nunca iríamos encontrar mais sobreviventes, mas eu creio que ele não irá contar nada para ninguém. As lembranças daqueles dias ainda me causam dor e eu creio que nunca na vida poderei esquecer o que as almas mais uma vez arrancaram de mim, e principalmente as sequelas que ficaram no meu corpo e no meu interior. E agora mais uma vez eu tenho medo. O corpo de Grace estava vivo e respirando na minha sala, no entanto ao mesmo tempo ela não está mais lá. Olhá-la me causa náusea, contudo eu preciso ter meu autocontrole de volta. Eu preciso voltar a fingir que não tenho sentimentos.


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Notas finais do capítulo

O que será que aconteceu ela quer que Adam não conte a ninguém?
E ai? Não esqueçam de deixar o seu comentário, leva pouquinho tempo e me ajuda a ver o que precisa ser melhorado. Obrigada a todos que leram.