Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 21
Segredo


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitores! Gostaria de agradecer a todos aqueles que me acompanharam até aqui e dizer que faço isso com todo amor para vocês.
E para quem ficou surpreso com o último capítulo, aí vão as explicações que fiquei devendo kkkk.
Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/554998/chapter/21

Cal

Ela então sorriu e se afastou lentamente. Enquanto se concentrava, respirou bem fundo e fechou os olhos. Seu rosto se contorceu em uma careta de dor e ela os abriu.

Seus olhos agora estavam idênticos aos meus, prateados.

Sam agora tinha os mesmos olhos que uma alma.

.

Todos os humanos presentes se afastaram dela, a mesma repulsa que antes era direcionada as almas agora estava tendo-a como alvo. Ela me fitou entristecida, procurando ajuda, mas fiquei sem saber o que dizer, sem saber o que pensar e como agir em um momento inédito como esse. Sam havia suprimido uma alma, uma alma igual a mim estava presa e amordaça dentro de sua cabeça.

Era algo impossível, inimaginável.

A Terra era realmente uma prova de fogo.

— Difícil de digerir, não é? — ela disse com amargura. — É engraçado ver a reação de vocês a mim, os humanos me olham com medo e as almas me olham com espanto. Mas vocês não fazem ideia de tudo o que eu passei para me julgarem desse jeito! — Sam gritou, suas palavras cortando o ar como facas. Dentro de mim não havia mais nenhuma parte que não estivesse machucada.

— Você está mantendo uma alma prisioneira! — Peg se exasperou, colocando as mãos sobre os lábios. — Isso me parece muito cruel!

Samantha começou a rir, uma risada louca e rouca. Quando terminou olhou Peg com mágoa.

— Você tem noção do que está dizendo, Peregrina? Cruel? Sério mesmo! Cruel é o sofrimento que eu e Adam sentimos quando olhamos para você e a única coisa que vemos é uma Grace morta. Isso sim é crueldade para mim!

— Não fale assim com ela! — Ian gritou.

— Me desculpem, mas sete bilhões de pessoas foram suprimidas por almas e eu, que resisti, sou a única aqui a ter cometido um ato de crueldade? — ela rebateu. Ian acabou se calando e todos fizeram o mesmo. O silêncio foi longo e era possível ouvir cada respiração, cada batida de coração.

— Como... como isso aconteceu? — Jared, o mais curioso e sensato de todos, foi o primeiro a quebrar o silêncio. Sam pareceu voltar a si e baixou a guarda.

— Não sei dizer — ela respondeu baixinho. — Eu e Adam fugíamos de buscadores quando fomos encurralados. Nos tornamos meras cascas que foram curadas, lavadas e entregues para serem usadas. Quando percebi, já não tinha mais o controle de mim, uma alma chamada Oceano de Luz agora estava usando o meu corpo. Vocês conseguem entender? O meu corpo, a única coisa que me disseram que não seria possível tomar de mim — sua voz estava embargada.

Ela então me olhou, procurando ajuda, mas eu não consegui sustentar o seu olhar. Ouvi então quando ela virou de costas e continuou a falar, a entonação cheia de desgosto.

— Essa alma era má, ela sabia que eu ainda estava viva e parecia sentir prazer em me ver sofrer, por isso fazia tudo ao contrário do que eu gostava. Era estranho, pois ela não absorveu nada de bom que havia dentro de mim e não se parecia em nada com as outras que, apesar de tudo, eram meigas e gentis. Luz ainda fez questão de viver com Cristais Vertentes, a alma que usava o corpo de Adam, só para me fazer sofrer ainda mais, mesmo que ela não tivesse nenhum sentimento maternal em relação a ele. Eu não podia suportar isso, ver meu irmão ser suprimido e me perder dentro de mim mesma... — ela pausou cansada. — Por isso decidi transformar a vida dela num inferno, Luz não teria o gostinho de viver bem à minha custa. Então, eu me fazia presente a cada segundo, não a deixando em paz em momento algum. E comecei a bombardeá-la com pensamentos, lembranças, qualquer coisa que não a deixasse sozinha em minha cabeça, qualquer coisa que a fizesse lembrar que eu ainda estava ali.

— Como foi esse processo? — Jared questionou.

— Não sei explicar, só sei que havia dias em que nossa cabeça doía como fosse se partir ao meio, como se inexplicavelmente eu estivesse expulsando suas conexões dos pontos de controle.

— Por que ela não avisou a ninguém sobre isso? — Melanie, que até então estava apenas observando tudo como uma boa Stryder, fez a pergunta sensata. Samantha riu de nervoso.

— Isso eu também não sei. Aquela vaca estava medindo forças comigo, estava decidida a me vencer, me pisotear. Vocês vêm com esse papo de: “isso nunca aconteceu em nenhum mundo”, mas vocês, almas, alguma vez já tomaram conhecimento de uma de vocês tão perversa desse jeito? — Sam cruzou os braços em defesa.

Eu e Peg apenas nos olhamos.

— Essa guerra mental estava a ponto de nos enlouquecer — Sam bufou. — Porém, um dia, Luz desapareceu da minha cabeça por alguns instantes e surpreendentemente eu consegui movimentar sozinha a minha mão. Foi muito rápido, apenas alguns minutos, e quando ela retornou nem se deu conta do que havia acontecido. Eu havia suprimido a alma por alguns instantes e ela sequer percebera. E essa retomada de controle foi mais do que suficiente para me fortalecer — ela pausou, respirou e continuou. — Foram meses nesse processo até que um dia eu simplesmente consegui o controle total. Luz ficou inativa, mas os olhos permaneceram iguais. Só depois de muito tempo descobri que eles simplesmente desapareciam quando eu não pensava muito nela dentro de mim. Era como se a cada vez que eu a repelisse dos meus sentidos suas conexões se retraíssem e saíssem do caminho. Acho que por isso é tão doloroso — ela agora chorava e todos nós apenas continuamos a olhá-la como se a qualquer momento ela fosse dizer que tudo não passava de uma brincadeira.

— E a alma em Adam? — Peg perguntou e Sam baixou a cabeça.

— Essa é uma história que eu prefiro não contar — ela respondeu. — Fiz o que foi preciso para salvar meu irmão, mesmo que não tenha sido a forma mais nobre.

Um silêncio absurdo se instalou e eu vi o quanto Samantha sofria por tudo isso. Eu tentei articular alguma coisa, mas nada vinha à minha mente, aquela criatura ali na minha frente era o amor e a destruição juntos. Eu não sabia definir o que estava sentido ou passando em minha cabeça no momento.

— Luz sofreu? — Perguntei depois de um tempo e Sam me fuzilou com o olhar. Na verdade, eu estava preocupado com o processo de supressão da alma, algo inédito em todos os doze mundos, no entanto ela interpretou a pergunta de maneira errada.

— Interessante sua pergunta, Cal. Eu perdi tudo e você se preocupa e pergunta por ela? Esse segredo horrendo que eu guardava com medo de ser julgada por vocês vem à tona e você, que eu pensei que fosse meu amigo, só quer saber se ela sofreu? E eu? Em algum momento sequer passou pela sua cabeça como eu me senti? — ela agora chorava mais intensamente e isso acabou comigo. Realmente eu estava preocupado com a pobre alma, mas Sam era mais importante para mim do que tudo. Se ela não tivesse vencido eu jamais a teria conhecido. Amaldiçoei-me por ter usado as palavras erradas e tentei tocá-la.

— Sam, eu não quis...

— Não toque em mim, Cal — Sam se esquivou e meu coração se partiu em milhares de pedaços. — Depois de ter entendido e perdoado os seus argumentos é assim que você retribui? — ela apontou o dedo no meu rosto. — Eu pensei que você fosse diferente, mas você é igualzinho as outras almas que só se preocupam com si próprias.

— Mas o que você fez é... — Peg tentou dizer algo, mas Sam a cortou bruscamente.

— Em nada diferente do que você e todas as almas fizeram com todos os habitantes desse planeta — Sam se defendeu. — No entanto a diferença entre nós é que esse corpo me pertence, ao contrário do corpo que você usa que um dia já foi de outra pessoa. Você realmente quer comparar as situações? Eu sou a vilã aqui agora, é isso?

— Sam, por favor — tentei argumentar, mas ela agora fitava o vazio.

— Todos vocês estão me olhando como se eu fosse uma aberração, como se eu estivesse errada em me tomar de volta. Por um momento eu pensei que pudesse ter uma vida diferente, mas sei que o meu destino é viver sozinha. Quer vocês queiram ou não, vou resgatar Nate e depois sumir. Não preciso de vocês.

Sam então foi embora, pegando o carro que antes estava sendo dirigido por Ian. Todos ficaram digerindo as coisas silenciosamente, como se o fato de Nate haver sido capturado não fosse ruim o suficiente.

Eu estava muito abalado com todos os acontecimentos, tudo muito novo e intenso para mim. Saber que Sam havia suprimido uma alma e que a mantinha presa era algo doloroso de pensar, afinal eu também sou uma alma. No entanto ela também tinha a sua razão, pois as almas haviam feito o mesmo com praticamente todos os humanos.

Ela tinha o direito de lutar por si mesma.

Mas qual o critério que indica quem merece ou não esse direito?

— Ninguém pode julgá-la, não há ninguém certo ou errado nessa história. Conversamos depois. Vamos embora — Ian se pronunciou e puxou Peg pela mão até o caminhão. Os outros os seguiram e fiquei sozinho com Jared.

— Dê um tempo a Sam. Ela vai precisar de um amigo e deve estar magoada com você do mesmo modo que você deve estar magoado com ela. Tudo ao seu tempo — Jared disse e eu respirei fundo. Havia dor em toda parte e eu não sabia realmente o que pensar diante de tudo o que estava acontecendo.

.

Voltamos para casa pensativos e eu era o que mais estava confuso com a situação. Sam era forte o suficiente a ponto de suprimir uma alma e isso só mostrava o quanto esse planeta era incrivelmente difícil. Isso jamais havia acontecido em qualquer outro mundo. Eu a amava, disso eu tinha certeza, mas essa “novidade” era algo que me amedrontava.

Era um mundo dolorosamente estranho.

Entramos na caverna praticamente escondidos, não queríamos criar um pandemônio com os últimos acontecimentos, no entanto Jeb nos esperava na entrada com a arma em punho e a mesma cara inexpressiva de sempre. Como Sam chegara a nossa frente provavelmente agora Jeb já sabia de tudo.

— Todos no consultório do Doc. Agora — ele ordenou e apenas obedecemos.

O seguimos em silêncio e quando chegamos à sala de Doc ele estava examinado uma Samantha nada contente. Doc analisava seus olhos com uma lanterna e parecia não acreditar no que estava vendo.

— Isso é inacreditável — ele repetia enquanto fazia algumas anotações. — Fascinante.

— Doc, já chega — Jeb interveio e o homem obedeceu. — Eu já sei de tudo o que aconteceu, desse modo não é necessário repetir. Agora vamos ao que interessa: descobrir como reverter essa situação. Nós precisamos fazer alguma coisa.

— Já está decidido. Não há “nós”, Jeb — Sam disse convicta. — Vou voltar lá ou para confirmar a morte de Nate ou para resgatá-lo caso esteja vivo. Fim.

— Isso não cabe a você — ele respondeu.

— Eu sou a única que pode fazer alguma coisa — ela continuou. — O incidente atraiu a atenção dos buscadores e pôr um humano lá fora além de suicídio é burrice. Além do mais, se Nate estiver vivo e passar por uma inserção, a alma em seu corpo saberá de tudo, inclusive das almas do nosso lado. Eu sou um elemento surpresa e posso transitar lá fora sem riscos.

— E o que você pensa em fazer? — Jeb questionou.

— Primeiro me recuperar e falar com meu irmão. Quero partir dentro de dois dias, no mínimo, e buscar as informações que preciso. Se ele estiver morto eu volto para avisá-los. Se ele estiver vivo eu darei um jeito de trazê-lo de volta.

Jeb ficou um tempo pensativo e eu não poderia dizer em que estaria pensando. Mas eu confiava que ele jamais deixaria Samantha fazer isso sozinha e sem planejamento.

— Deixemos isso para depois. Primeiro descansem e somente de cabeça fria falaremos com o restante das pessoas. Amanhã, após o almoço, decidiremos. Agora saiam — Jeb ordenou.

Quando todos os outros saíram, ele ficou frente a frente com Sam e disse algo que eu não pude ouvir. Ela tocou no ombro de Jeb com uma expressão suave, e antes dele sumir no corredor balançou a cabeça em afirmação. Os dois trocaram um olhar cúmplice e isso me preocupou. Com o consultório agora menos cheio, Doc começou a reexaminá-la e ela pareceu incomodada.

— Eu posso continuar a te examinar mais tarde? — ele perguntou, vendo que ela não estava bem por isso.

— Tudo bem, Doc — ela respondeu triste. — Parece que agora eu virei o mais novo experimento científico...

— Sam, será que eu poderia falar com você? — perguntei e pela primeira vez desde que chegara ali ela me olhou, mas sem responder nada. Doc foi para sua mesa e continuou escrevendo.

— Por que mentiu, Sam?

— Como assim? — ela perguntou indiferente.

— Você jamais esperaria dois dias para partir.

Samantha então fechou os olhos e suspirou antes de responder.

— Eu não quero que ninguém se arrisque desnecessariamente. Lá fora deve está um inferno.

— E quando você pretende ir?

— Isso eu não vou dizer — ela respondeu e saiu a passos firmes, mas eu a impedi segurando em seu braço e colocando-a frente a frente comigo.

— Escuta, você não pode fazer as coisas precipitadamente. Pense bem, deixe que todos nós pensemos em algo melhor do que você sozinha lá fora.

— Cal, sei que você deve estar preocupado com a sua amiguinha presa aqui — ela apontou para a própria cabeça e se soltou bruscamente —, mas não precisa se preocupar, ela está inativa, não morta. Então, quando tudo isso acabar eu vou libertá-la e mandá-la para um lugar bem longe. Aliás, seu você quiser, eu coloco vocês dois no mesmo criotanque e despacho para um planeta colorido onde vocês poderão viver felizes para sempre! — Sam disse, raivosa, e saiu apressada. Tentei ir atrás dela, mas Doc me impediu.

— Deixe-a, Cal. Ela precisa ficar sozinha para pensar. E eu acho que você também.

— Mas ela quer sair sem a ajuda de ninguém! Jeb precisa saber disso.

— E você acha que Jeb não sabe que ela fará isso? Quando ele adiou a conversa para depois já estava dando passe livre para Samantha fazer o que tem que ser feito.

— Vou falar com ela e convencê-la a aceitar ajuda. Um dos buscadores a viu e isso é perigoso — lembrei da expressão do buscador e senti um calafrio.

— Agora não. Ela está com ciúmes de você e com raiva de todo mundo. Quando ela se acalmar vocês conversam.

— Por que ela estaria com ciúmes de mim? — questionei assustado.

— Ora, Cal, você não é burro. Todos aqui nessa caverna já perceberam o que há entre vocês dois. Exceto, claro, vocês dois. Agora junte tudo isso com o fato que ela contou, com Nate lá fora sem sabermos nenhuma notícia, com o medo de perder tudo novamente. Dê um tempo a ela e depois disso vocês conversam. Só não se esqueça de uma coisa, Cal — ele me deu um tapinha de leve no rosto —: ela te perdoou e te aceitou mesmo você sendo quem é. E você? É capaz de fazer o mesmo por ela?

“É capaz de fazer o mesmo por ela?”

Minha cabeça estava um turbilhão de emoções. Eu não podia mais chorar por Nate porque não tinha certeza de sua morte, assim como também não podia alimentar esperanças em sua sobrevivência porque não tinha certeza de sua morte. E agora Samantha estava com ciúmes de mim, mas ao mesmo tempo havia me dito coisas horríveis. E ainda havia uma alma inativa presa dentro dela, o que de certo modo era algo doloroso de se pensar. Respirei bem fundo e senti como se estivesse novamente no mundo do fogo, o sangue queimando lentamente meu cérebro e meu coração.

— Ok, Doc. Tirarei um tempo para pensar — respondi a ele e sumi na escuridão do corredor.

Andei um pouco a esmo e evitei esbarrar com outros, eles que contassem o que estava havendo conosco. Apenas Nate me importava no momento e a segurança de todos dependia de sua morte ou vida. Tentei não pensar em Samantha, mas isso me pareceu inevitável, ela era dona de mim, dos meus pensamentos e de cada célula do meu corpo. Se eu, que era uma alma dentro de um humano havia sido aceito por Sam, por que eu não deveria aceitá-la sendo uma humana com uma alma dentro?

Claro que eu era capaz de fazer o mesmo por ela, por Samantha eu era capaz de fazer qualquer coisa.

Era egoísta pensar que ela era má e só então me dei conta do sofrimento que ela devia ter passado e da dor da traição que estava sentindo por não ser aceita. Por isso, decidi que estava mais do que na hora de resolver as coisas e tomar uma atitude.

Uma atitude humana.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O que será que ele vai fazer? kkki
Bom, gente que lê e nunca apareceu, eu gostaria muito de conhecer vocês e saber quais as suas opiniões. Pensem nisso com carinho, ok?
Beijinhos



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Mais que o sol" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.