Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 20
Olhos de alma


Notas iniciais do capítulo

Hosters, resolvi postar esse logo!!! Bom, espero que gostem e boa leitura!
Capítulo narrado pelo Cal < 3
Abram a mente para o impossível!



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Cal

Se eu pudesse contar os números da minha existência de acordo com as revoluções desse planeta em torno do sol, poderia dizer que tenho cerca de três mil anos terrestres. Contando com a quantidade de tempo que estive em hibernação dentro de um criotanque, viajando inconsciente pelo espaço profundo, poderia dizer que tenho até bem mais do que isso.

Uma alma jovem.

Uma alma relativamente jovem em comparação a tantas outras que medem seus anos em centenas ou milhares, porém extremamente velha em relação a um humano, mesmo se comparado ao mais velho de todos.

Nesse momento, estou vivendo a vida mais curta e conturbada que já vivi. Seu eu juntasse tudo o que os meus milênios já viram, não chegaria nem a um por cento de tudo o que já passei nesses pouquíssimos anos na terra, sequer se aproximariam do que eu imaginei em como seria viver aqui. Os ataques que machucam o corpo nem se comparam com os que acabam com a alma.

Ser um humano não é nada fácil e só agora eu vejo isso.

Meu corpo, antes vazio, se inundou de sentimentos distintos como amizade, alegria, esperança, arrependimento, e isso mudou todos os meus fundamentos de modo a fazer com que eu abandonasse minha própria espécie e encontrasse meu verdadeiro lar junto dos humanos. Então, eu conheci o amor e esse novo sentimento me surpreendeu, pois agora eu entendia como era querer estar tão perto de alguém.

O amor é sublime.

Mas machuca.

A incursão estava correndo bem, ter Sam ao meu lado era algo que eu jamais imaginei ver e isso me deixava feliz como eu nunca havia sido. A cada dia estávamos mais próximos e eu estava verdadeiramente apaixonado por ela, porém não sabia o que fazer com esse sentimento. Será que ela me aceitaria se eu demonstrasse isso a ela? Será que ela sentiria algo por mim também? Quando tivemos que dividir a cama controlei ao máximo o impulso de abraçá-la, meu corpo ansiava por ela de maneira inexplicável.

Sam gostava de se mostrar independente e durante muito tempo foi a provedora e protetora de si e do irmão. Ela costumava então fingir que tudo estava bem e isso era algo que me incomodava, pois eu gostaria de saber o que passava realmente em seu coração. Sam era forte, mas eu via em seus olhos que ela precisava que, pelo menos uma vez, alguém a protegesse. Então, prometi a mim mesmo que faria esse papel. Eu a protegeria.

Infelizmente não consegui cumprir a promessa.

Quando aquele buscador me olhou e reconheceu meu rosto minhas pernas travaram e fui tomado pelo medo de perder tudo o que havia conquistado. Então Sam se arriscou para salvar minha vida e Nate foi capturado sem que eu pudesse fazer nada. O luto foi devastador e me atingiu como um meteoro, uma dor pulsante e afiada como mil lâminas sobre minha pele.

Nada mais parecia fazer sentido.

Porém, o caos foi apaziguado pelas palavras de Samantha me confortando e cuidando de mim. Ela me surpreendeu se doando completamente e ofuscando sua dor para diminuir a minha, se fazendo forte para não me deixar cair. Naquele momento vi que assim como ela eu não poderia mais ter medo de nada, não se quisesse salvar minha família e mantê-la segura e em paz. Mesmo com o turbilhão que estava sentindo, ficar tão próximo dela me fez esquecer todos os momentos ruins.

Samantha era tudo aquilo que eu jamais encontraria em nenhum mundo. Era como um cacto no deserto, dura e cheia de espinhos, mas que se regado e observado com paciência se ilumina e desabrocha em uma linda e delicada flor. Ela era como a chuva, doce, viva e tranquilizadora, mas também forte e poderosa com seus ventos, raios e trovões. E que tudo fosse para o inferno e mesmo que eu corresse o risco de ter minha cabeça arrancada por ela eu precisaria tê-la em meus braços.

E foi o que fiz.

Não percebi o momento em que o nosso abraço se tornou um beijo. A sensação de tocá-la, de sentir sua boca na minha foi indescritível e não se comparava a nada que vivi em todas as minhas vidas. Eu era humano naquele instante e em meio a toda tristeza e angústia do momento somente aquela mulher foi capaz de me trazer de volta a vida. E por um breve instante apenas nós dois habitávamos a terra.

Enquanto eu me lembrava desse momento, Sam se remexeu inquieta ao meu lado. Assim como eu, ela também devia estar com a cabeça a ponto de explodir, mas pelo menos havia conseguido dormir um pouco mais do que eu. Depois do beijo, tentamos agir o mais naturalmente possível, mas ambos sabíamos que os últimos acontecimentos abalariam nossa amizade. Mesmo assim ela havia se deitado junto comigo e me consolado dizendo que faria de tudo para trazer Nate de volta. Sam acreditava que ele ainda estava vivo e comecei a acreditar junto com ela.

Pensar novamente em Nate me fez perder todo o autocontrole. Lágrimas amargas tomaram conta do meu rosto e novamente senti raiva dos meus semelhantes, das almas que tomavam tantas vidas sem sentir nenhum remorso por isso. A terra estava curada e em paz, não havia motivo para essa perseguição desenfreada continuar.

Mas, como Sam havia dito para mim, as almas pareciam realmente estar mostrando sua verdadeira identidade aqui na terra, aquele buscador era tão difícil e violento quanto o pior dos humanos que a minha espécie tanto temeu. Era um mundo estranho esse, capaz de nos tirar da ignorância e mostrar quem realmente somos. E, apesar de ser um planeta maior do que muitos em que há vida, aqui os encontros impossíveis pareciam acontecer com frequência, como se houvesse uma força maior que nos levasse a esses momentos. Destino, talvez? Eu não sei. Mas os humanos tinham bastantes motivos para acreditar em coisas sobrenaturais.

O que aquele buscador fazia ali, tão longe de minha antiga casa? Por que de todos os buscadores a entrarem naquele supermercado havia sido justamente ele a fazê-lo? Aliás, o que aquela quantidade de buscadores fazia ali àquela hora da manhã?

Lembrei então de sua expressão de nojo quando foi falar comigo pela primeira vez, pois eu havia tentando persuadir um dos curandeiros do meu antigo local de trabalho a deixar um humano ir embora. Lembrei de suas perguntas, de seu discurso inflamado sobre o quanto os humanos eram monstros que precisavam ser dizimados e que mesmo as crianças recém-nascidas deviam ser ocupadas antes que crescessem e pudessem se voltar contra as almas que as criavam. Seu olhar me julgando, querendo saber se eu estava me perdendo e se havia algum motivo para me fazer mudar de ideia, era puro ódio.

Agora eu sabia que não era assim. Nate havia me mostrado a bondade e a amizade e agora, ao olhar para Sam adormecida, eu jamais pude sequer pensar em qualquer um deles como um monstro. Eu sabia que eles tinham um passado e que havia feito mal a algumas almas, contudo, se eles haviam me perdoado e me aceitado em suas vidas, por que eu não poderia fazer o mesmo?

Um barulho estranho me tirou de meus devaneios, muitas sirenes ecoavam ao longe e pareciam se aproximar cada vez mais de nós. Acordei Sam e antes que ela gritasse pus a mão sobre sua boca. Rapidamente ela ficou atenta e entendeu que ficar ali não era mais seguro, aliás, havia sido uma loucura. Pegamos nossas mochilas e saímos pela janela que dava para um beco escuro, assim ninguém poderia nos ver sair. Andamos de cabeça baixa até alcançarmos uma rua arborizada e, aproveitando a escuridão proporcionada pela copa das árvores, corremos em alta velocidade. Em cerca vinte minutos conseguimos alcançar a rua principal, que estava movimentada devido ser sexta à noite e as almas manterem os hábitos humanos. Cruzamos a cidade praticamente inteira a pé e já estava perto do meio dia quando chegamos à rota de saída. Sem um veículo, seria impossível voltarmos para casa.

Depois de meia hora encontramos uma casa vazia, os donos deviam estar viajando e por isso haviam deixado o carro na garagem. Pegamos o veículo e mais alguns suprimentos e fugimos o mais rápido que o motor alcançou, aproveitando o horário para seguir sem empecilhos. Como eu já estava melhor, revezávamos no volante e só paramos para descansar uma única vez. Se continuássemos nesse ritmo rapidamente chegaríamos ao ponto de encontro junto com os outros.

— Vamos abandonar o carro e seguir os últimos quilômetros a pé, não sabemos se ele tem algum dispositivo de localização — Sam sugeriu quando estávamos próximos do local. — O caminho é longo e cansativo. Como está o seu ombro? Você acha que consegue?

— Sim, estou bem — respondi. — Que tal abandonarmos ele mais para o leste e seguirmos o caminho oposto? Ao menos daremos uma falsa localização aos buscadores caso o encontrem.

— Ótima ideia — ela concordou.

Andamos uma infinidade, mais do que eu poderia aguentar em um momento diferente. Quando chegamos ao ponto de encontro o sol já estava se pondo e todos haviam terminado de descarregar há horas, agora se preparando para voltar às cavernas que não estavam muito longe. Peg foi a primeira a nos notar.

— Por que demoraram tanto? Estamos esperando por vocês há horas — ela questionou e ficamos em silêncio. Peg então percebeu que havia algo de errado ao notar nosso estado e a ausência de nosso amigo. — O que houve? Por que estão a pé? — perguntou aflita. — Onde está Nate?

Sam apenas balançou a cabeça negativamente, nenhuma palavra precisou ser dita. Ela se afastou do grupo e Peg começou a soluçar, todos sem conseguir acreditar. A expressão de dor, horror e choque neles só abriu ainda mais a fenda em meu coração.

Contamos tudo o que aconteceu, deixando todos desnorteados. Vários falaram ao mesmo tempo, o medo estava tão presente que era quase palpável. Ian andava sem parar de um lado para o outro e Jared foi o primeiro a recuperar o controle.

— Se Nate está morto não há com o que se preocupar. Ele se foi, e junto com ele a localização de todas as células. Agora precisamos voltar para as cavernas e ficar inativos por algum tempo.

— Não podemos ter tanta certeza, Jared — Sam rebateu bastante aflita. — Como eu havia dito a Cal, Nate tem informações preciosas e creio que as almas farão de tudo para salvá-lo. Os curandeiros são muito bons, não podemos confiar. Precisamos voltar lá.

— Isso é muito arriscado — Ian se manifestou.

— Sei disso — Sam continuou. — Mas primeiro é preciso ter certeza e, caso haja uma chance de Nate estar vivo, devemos fazer o possível para resgatá-lo. Vocês não entendem? Se Nate for pego acabou tudo para todo mundo. Fim. Vocês querem perder o pouco que tem novamente? — Sam quase gritou e passou a mãos na cabeça com bastante fúria. Odiei vê-la nesse estado, odiei saber que ela corria riscos agora.

— Mas como faremos isso? É impossível! — Ian perguntou exasperado.

— Se Nate ainda estiver vivo e ferido temos alguns dias até os curandeiros o deixarem pronto para uma inserção. Com certeza eles colocarão um buscador nele para obter informações e logo depois Nate será descartado — Sam falou horrorizada. — Temos que ter esperança de que ele resista tempo suficiente.

— Tempo suficiente para quê? Não há como entramos em uma instalação de cura. E, além disso, Nate sabe que há almas do nosso lado, então Peg, Sunny e principalmente Cal não podem ajudar em nada — Jared opinou.

— Essas almas não, mas uma alma nova sim — Sam sugeriu.

— E onde arrumaremos uma outra alma que esteja do lado humano? E, se houver uma, o que não há, como convencê-la a nos ajudar? — me meti na conversa, sem saber aonde Sam queria chegar.

— Há algo que eu preciso contar. Algo que parece impossível, então tentem compreender. Posso confiar? — Sam deu continuidade atraindo a atenção de todos. — Você já ouviram falar de Kevin?

Forcei minha memória e me lembrei do nome.

— Kevin... — comecei a falar. — Sim eu me lembro desse caso. Essa alma tida por todos como fraca demais para esse planeta, e que antes se chamava Canção Corredora, havia assumido o nome e todos os hábitos de seu hospedeiro. Porém, o humano se negava a ser suprimido e lutava com todas as forças pela posse de seu corpo. Então eventualmente o hospedeiro conseguia assumir o corpo de volta e suprimir por instantes a alma nele inserida. Kevin foi descartado depois de agredir uma curandeira e tentar extrair Canção Corredora à força — contei e Peg afirmou o que eu disse. — Mas o que isso tem a ver com Nate e tudo o que está acontecendo aqui, Sam? — perguntei.

— Kevin não foi o único a conseguir reassumir o controle de seu corpo — Sam retrucou timidamente. — Houve outros como ele que se recusaram a perder, outros que conseguiram pegar o que é seu de volta. Pegar definitivamente, não apenas por um instante. Um humano mais forte do que tudo, forte o suficiente para ao invés de ser suprimido, suprimir uma alma. E vocês sabem que isso é possível, Melanie contou que esse era o medo da buscadora quando Peg estava dentro dela.

— Nós ainda não entendemos aonde você quer chegar, Sam — Peg articulou. — Como você sabe sobre Kevin? De que humano tão forte você está falando?

Eu também estava muito surpreso e curioso com o fato de Sam saber desta história. Olhei-a e pela primeira vez desde que a conheci ela pareceu insegura.

— Eu sou esse humano. Eu consegui suprimir uma alma — Sam disse e todos se olharam espantados.

O mundo pareceu acabar ali novamente.

— Há alguns anos eu e Adam fomos capturados e nos tornamos hospedeiros, mas não sei por que eu consegui depois de muita resistência retomar o meu corpo — continuou. — Eu fui mais forte do que Kevin e com isso consegui nos libertar.

— Isso. É. Impossível! — Peg arregalou os olhos.

— Claro que é possível! — Sam disse nervosamente. — Você contou que algumas vezes Melanie conseguiu assumir o corpo com você dentro, lembra? E nesse caso de Kevin ele fazia isso muitas vezes, a alma sequer lembrava de que havia sido suprimida por instantes. E outra coisa, vocês nunca estranharam o fato de eu e Adam termos marcas de inserção?

— Achamos que haviam sido forjadas como as nossas — Ian disse com uma expressão entre incrédula e maravilhada.

— Sam, explique isso. Nunca ouvimos nada a respeito — eu procurei em seu rosto uma nota de mentira ou brincadeira, mas não encontrei. — Em nenhum mundo isso foi sequer cogitado!

— Mas a terra é estranha, Cal, você ainda não aprendeu? — ela ironizou. — Parece que nada é impossível por aqui. Tanto que eu ainda posso fazer mais.

Ela então sorriu e se afastou lentamente. Enquanto se concentrava, respirou bem e fechou os olhos. Seu rosto se contorceu em uma careta de dor e ela os abriu.

Seus olhos agora estavam idênticos aos meus, prateados.

Sam agora tinha os mesmos olhos que uma alma.



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Trechos extraídos do livro A hospedeira.

Trecho do capítulo 02 — Ouvido em segredo: “Mas havia rumores sobre isto: sobre hospedeiros humanos tão fortes, que as almas eram obrigadas a abandoná-los. Hospedeiros cujas mentes não podiam ser completamente eliminadas. Almas que assumiam a personalidade do corpo, em vez do contrário. Histórias. Rumores desenfreados. Loucura.”

Trecho do capítulo 03 — Impedida: “— No começo, chamamos aquela alma de Canção Corredora... era uma tradução livre do seu nome no... Mundo Cantor. Mas logo ele optou por tomar o nome de seu hospedeiro, Kevin. (...) vários Curandeiros observaram diferenças marcantes no comportamento e na personalidade dele. Quando o interrogamos a respeito, ele afirmou que não se lembrava de certas afirmações e ações. Continuamos a observá-lo, com seu Confortador, e afinal descobrimos que periodicamente o hospedeiro assumia o controle do corpo de Kevin.”


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Notas finais do capítulo

Hei, galera, o que acharam? Bom, eu coloquei os trechos do livro pra vcs verem que eu não viajei na maionese (pelo menos eu acho kkkk).
Enfim, não esqueça de comentar, recomendar, indicar e etc kkk.



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