Bastarda escrita por Lena Saunders


Capítulo 8
Aquele do Passado


Notas iniciais do capítulo

Achei que algumas explicações eram necessárias, por isso esse capítulo foi dedicado à Siv, mãe da Kyra.

Quero agradecer todos os comentários e o carinho de vocês!

Boa leitura ;)

~Lena



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Caminhamos juntas pela floresta. Eu estava infinitamente preocupada em mantê-la longe da caverna de Valkíria, enquanto ela andava, sem dificuldades, entre as raízes das árvores, carregando sua aljava e uma bolsa cheia.

Nos sentamos em uma pedra alta de onde podíamos observar o mar. A areia arranhava a pele nua de minhas coxas e o vento bagunçava meus cabelos. Eu dificilmente poderia estar mais confortável. O clima primaveril tornava o mar belo e contido mas eu sabia que sob aquela superfície calma ele estava tão revolto quanto sempre.

Heike mexeu em sua bolsa e tirou algo de dentro dela. Demorei para entender.

– Isso era da sua mãe. Ela me pediu para entregar quando eu acreditasse que você estivesse pronta. Ela certamente não sabia o quão jovem você seria.

O elmo não tinha chifres, e sim belas asas de dragão. Era prata, com roseiras douradas se contorcendo. Eu conhecia aquele padrão.

– O escudo era dela, não era?

Heike se manteve em silêncio, respondendo minha pergunta com um aceno de cabeça.

– Ela o perdeu antes de você nascer. Era seu destino encontrá-lo. Quero que você saiba que ela estaria tão orgulhosa quanto eu estou.

Heike deu um sorriso doce mas eu podia sentir a tristeza em seu olhar.

– Aqui. - Ela me entregou o elmo e buscou outra coisa na bolsa. - Isso vai ser útil um dia.

– Não é como se eu pudesse lutar ou algo assim. Sou uma bastarda, mas ainda sou uma garota.

Ela parou de procurar o que quer que fosse imediatamente e se virou em minha direção, seus olhos cheios de dor.

– Ah, menina Kyra, não se engane! - Ela segurou minhas mãos, como Aires fizera na noite passada. - Ser quem você é não é uma limitação, pelo contrário. Diferente das garotas bem nascidas, você pode ser o que quiser, fazer o que bem entender!

– Bem, talvez eu não quisesse poder fazer essa escolha. - Puxei bruscamente minhas mãos das suas. - Talvez se minha mãe não houvesse sido tão tola, eu pudesse ter nascido em uma família normal, ter mãe e pai e não ser um fardo para você!

Eu estava abraçada com o elmo, as falanges de meus dedos embranquecidas pela força com que eu o segurava. Foi a primeira vez que falei com Heike sobre isso. Sobre nós e o peso que eu era para ela. Sobre a pontinha de rancor que eu tinha da minha mãe.

– Oh, menina Kyra, você não é um fardo. Não culpe sua mãe por ouvir seu coração. Você terá que fazer o mesmo um dia.

– Meu coração deve ter nascido mudo, Heike. Dever é dever e ponto. Ela deveria ter seguido o dela.

Heike estava... Rindo.

– O que foi? - Perguntei. - Qual é a graça?

– A única pessoa, em toda a ilha que não possui deveres é a que mais se importa com eles.

– Bem, talvez se todos fossem corajosos o bastante para seguir seus deveres, as coisas fossem menos complicadas.

– Menina Kyra, o que está gravado dentro do seu elmo?

Virei o objeto em minhas mãos. As letras haviam sido gravadas à ferro quente, em uma caligrafia bonita e trabalhada.

Coraticum.

– Era o lema dela. Ela sempre dizia isso.

– O que significa? - Perguntei.

– Vem de uma língua antiga. É dela que vem a palavra coragem. Significa "agir com o coração". Siv acreditava que, às vezes, a atitude mais difícil e corajosa que se pode tomar é a de abandonar tudo em nome do amor.

– Isso não existe. Já tenho 11 anos. Pare de me contar histórias, Heike.

– Você quer ouvir uma história? Eu tenho uma para você.

Seu sorriso era tão triste quanto seus olhos azuis que refletiam o oceano. Heike não era minha mãe, mas juro que as vezes eu podia sentir meu sangue correndo por suas veias.

– Você não chorou ao nascer. Pensamos que estivesse morta. - Ela começou a história como sempre. - Mas então, você inspirou e abriu os olhos mais azuis que qualquer um já havia visto. Greta, que era minha auxiliar, disse que você tinha a benção dos deuses e que isso refletia em seus olhos.Sua mãe chorou ao te ver. Não apenas pela emoção de ser mãe, mas também porque você tinha alguns pequenos fios laranjas em sua cabeça recém nascida.

Heike ficou em silêncio por alguns segundos, parecendo remoer o passado. Ela nunca tinha chego tão longe. Normalmente ela parava logo depois de falar dos meus olhos.

– Nós tentamos esconder. Greta foi buscar a tesoura enquanto sua mãe te segurava em seu colo.Hans, marido de sua mãe, estranhou a falta dos gritos típicos de quem dá a luz. Ele queria entrar no quarto a qualquer custo.

Quando uma criança demora demais para nascer, tanto ela quanto a mãe costumam morrer. A única coisa a ser feita é abrir a barriga da mulher e tentar tirar a criança. Eu sei. Já ajudei Heike a abrir algumas delas.Hans queria salvar seu filho. Seu herdeiro. Eu não o culpo por isso.

– Greta encontrou a tesoura tarde demais. - Heike continuou. - Hans cansou de esperar e partiu a porta em duas para entrar.Mandei Greta buscar ajuda imediatamente e sua tia saiu, deixando sua gêmea e sua sobrinha à própria sorte.Hans sorriu ao ver a esposa com o bebê no colo. Você estava enrolada em uma manta tão branca quanto a sua pele. Ele te tirou de seu colo e sua mãe não pôde protestar.

Eu bebia suas palavras como se fossem a única coisa que poderia me manter viva. Durante anos eu quisera saber o que exatamente acontecera no dia em que nasci, e eu finalmente tinha minhas respostas.

– Eu anunciei que você era uma garota e que precisava banhá-la para purificá-la.Ele disse que você era a garota mais linda que existia. Eu nunca o vi tão feliz. Até ele puxar manta para te entregar a mim. Ele quase te derrubou.

Heike não precisou explicar. Eu sabia o motivo.

Minha mãe, Siv, e seu marido, Hans, eram primos. Sua família casava os parentes para manter o que eles chamavam de "pureza do sangue". Os fios de seus cabelos eram quase brancos de tão loiros e todas as suas crianças nasciam com fios cor de ouro.

Mas eu não. Eu nasci ruiva.

– Ele te jogou de qualquer jeito no cesto e arrancou a espada da bainha. - Heike continuou, sua voz tremula. - Em dois segundos ele a enfiara em sua mãe. Eu ainda consigo me lembrar dos gritos dela. Você teria sido a próxima. Eu te peguei e tentei sair da casa. Mas ele estava disposto a qualquer coisa.

Deve ter sido assim que Heike ganhou a cicatriz que rasga seu braço esquerdo.

Hans não via uma velha e um bebê, mas sim uma bastarda tentando expor sua vergonha ao mundo. Se ele me matasse poderia cortar meus cabelos e dizer que não sobrevivemos. O corte que ele fizera em Siv era completamente justificável se eu estivesse demorando para nascer.

Ele me asfixiaria e tudo estaria acabado, sua honra intacta. Infelizmente, eu não lhe dei essa graça.

– Greta trouxe a única pessoa que encontrou: Alistair. Ele te viu, pequena, nua e ruiva em meu colo, com os gritos de sua mãe vindo do quarto, e não teve duvidas: partiu Hans em dois.

Acho que ofeguei nesse ponto da história. Alistair. Ele matou alguém para salvar minha vida. Então era por isso que ele me encarava com tanto ódio. Ele deveria esperar algum tipo de agradecimento que eu nunca lhe dei.

– Siv disse poucas palavras em seu leito de morte, embora tenha permanecido viva por horas. - Heike continuou, me tirando de meus devaneios. - Ela te segurava e chorava, enquanto distribuía beijos pela sua cabeça. Ela te amou, menina Kyra. Por pouco tempo, mas tão intensamente quanto poderia. Nós permanecemos ao lado dela e ela nos implorou para cuidar de você, para fazê-la feliz. Ele te pediu desculpas por ter te colocado nesse mundo, pelo menos, umas dez vezes. Ela morreu ao amanhecer e você não queria soltá-la. Você, com suas pequeninas mãos de bebê se agarrou ao cabelo dela e gritou, com mais ódio do que eu achava possível para uma criança tão pequena, quando ela parou de te segurar com força.

Eu sabia o que aconteceria depois. Greta já cuidava de muitas crianças e, por isso, Heike se ofereceria para me criar. A dor e o ódio. Isso parecia ser tudo o que havia desde que nasci.

– Você nasceu no equinócio de primavera, menina Kyra. O dia em que o inverno acaba e as flores voltam a nascer. Você nasceu na noite dos vaga-lumes, na noite da vida. Mas também nasceu em uma noite de muitas mortes.

Ah sim. Minha mãe e seu marido não foram os unicos a morrer naquela noite. Os pais de Aires e três outras pessoas foram assassinadas na taberna. Não há registro de outra noite em que houveram mais de duas mortes.

– Você traz a vida e a morte. É seu destino, sua sina. Eu li as runas naquele dia. Você pode não acreditar, mas está destinada à grandes coisas. Matará nossos inimigos e suas escolhas serão nossa perdição ou nossa salvação.

– Então você me trouxe até aqui e fez todo esse discurso apenas para me dizer que eu provavelmente vou dar um jeito de matar todo mundo?

– Não, menina Kyra. Eu te trouxe até aqui para dizer que você precisa acreditar em si mesma. Você já é tão avançada para a sua idade... Mas sua amargura pode matar todos nós. Precisa lutar contra isso e triunfar como sua mãe triunfou. Você precisa seguir seu sangue.

– Eu já luto contra tudo, Heike. Faço isso todos os dias desde que nasci.

– Eu sei, pequena. Eu sei. Talvez você devesse lutar um pouco menos.

– Mas daí todos passarão por cima de mim ainda mais. As coisas piorarão.

– Ou, eles podem gostar de você.

– Vamos encarar a realidade, Heike. Sou uma bastarda. Não importa o quão legal eu seja, eles não vão gostar de mim. Pergunte à Brenda. O aniversário dela é semana que vem e ela chamou todo mundo da nossa idade para seu estúpido baile, menos eu.

– Bem, ela pode ter medo de você.

– Nao há motivo para isso.

– Eu tenho quase certeza de que temos um espelho em casa... Você pode ser bem assustadora quando quer, menina Kyra.

– Bem, assustadora ou não, eu preciso estender as roupas. Vamos?

– Certo, vamos voltar. Mas não precisa estender as roupas hoje. Posso fazer isso.

Me levantei e caminhei atrás de Heike, enquanto me sentia mais pesada do que nunca. Eu pensava que descobrir mais sobre o meu passado me libertaria, mas eu não poderia estar mais errada. O elmo sob meu braço parecia querer me arrastar para o chão.

– Não precisa. - Respondi. - Eu posso fazer isso. Não há nada de especial no dia de hoje.


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