Criança Domesticada escrita por AneenaSevla


Capítulo 11
Um Filho Pródigo - Parte 2


Notas iniciais do capítulo

"Amigos são a família que nos permitiram escolher".

William Shakespeare



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/513019/chapter/11

Thomas sabia. Ele nunca se acostumaria a andar de carro.

Agarrava-se nas laterais, tremendo violentamente, grunhindo e rosnando a cada solavanco.

Licia… a voz dele saía sofrida, e junto com aquele tom de voz grave ecoante era muito estranho. Falta muito?

– Calma Thomas, só um pouco de paciência - assegurou a garota no banco da frente - estamos quase chegando…

– Só um pouco mais - disse Kyle, tentando ajudar – mais cinco minutos.

Pelo jeito como ele estava amedrontado, ser totalmente cego não ajudava nem um pouco. Alicia ficou com pena dele, mas não tinha outro jeito, afinal, de todos os poderes que ele tinha só o teleransporte não havia se manifestado, e ela se perguntava por quê.

Ele ocupava toda a parte traseira do carro, os tentáculos se debatiam nervosamente, tentando achar algum lugar para segurar, sem sucesso, o que o deixava ainda mais nervoso. Apenas o terno não parecia sofrer com aquilo, a garota ficou admirada em como aquilo caía bem nele; nem mesmo um vinco.

Enfim, como Kyle tinha dito, mais ou menos cinco minutos depois, o carro parou, e Thomas relaxou, quase desabando no banco traseiro. As narinas dele apareciam e desapareciam na cara lisa.

Acabou? Perguntou Thomas. Acabou né?

A porta se abriu. Ele encarou Alicia, que sorria.

– Pode sair… – ela nem precisou dizer duas vezes, Thomas já estava se esgueirando para fora. Ele tinha trauma de lugares apertados que faziam o mundo se mover. Os membros negros serpenteavam, sentindo o mundo em volta, enquanto ele se levantava ainda meio tonto. Aos poucos foi se recuperando quando finalmente reconheceu a área ao redor. Ele respirou fundo, e de repente sentiu a mão dela agarrando a dele.

– Melhor agora? - Alicia perguntou, Thomas assentiu, ficando um pouco cinza na área das bochechas no processo. Kyle só assistia encostado no carro e sorrindo. Ela continuou. - Chegamos, estamos na entrada da floresta de Ardenas… bem, um pedaço dela, um dos terrenos do meu pai…

Ele observou. As árvores erguiam-se, majestosas e imponentes. Abetos, pinheiros e bétulas, carvalhos vistosos farfalhavam ao vento. Corujas piavam e morcegos voavam em busca de insetos para comer, e um esquilo em algum lugar estava ainda acordado no meio da noite. Um cervo pastava com seu bando mais a oeste, sem desconfiar de que estava sendo percebido, bem como um rato passeava por debaixo das folhas, tentando não ser visto. Mas o Jovem Slender o ouvia, o farejava, sentia suas vibrações.

Thomas sentia tudo isso, e mais: o instinto o fazia ir para frente, como se o vento, uma voz doce lhe chamasse.

Ele começou a andar, indo para dentro da vegetação, soltando devagar e despercebidamente a mão da garota. Alicia o seguiu de longe, por um momento ela quis chamá-lo, mas decidiu não incomodar, só queria tê-lo por perto.

Kyle ia impedi-la, mas sabia que a garota era teimosa, não adiantava chamá-la. Aliás, que mal tinha acompanhá-lo? Ele nunca a machucaria, ele sabia disso… ou pelo menos achava… decidiu segui-la assim mesmo, ela era filha do seu patrão, e era responsável por ela. Estou com um mau pressentimento..., pensou o homem.

O jovem Slender andava para dentro da mata fechada, experimentando aquelas inúmeras e novas sensações, eram milhares ao mesmo tempo, porém seu cérebro não estava desorientado. Muito pelo contrário, o mundo parecia fazer muito mais sentido que antes.

Caminhou e caminhou até chegar numa clareira. Sentia-se parte daquilo, como se fosse seu verdadeiro lar… as árvores o protegiam em todas as direções, o cheiro de terra molhada, clorofila e lodo o acalmava. Sentia tudo em todas as direções, inclusive um monte de formigas que faziam seu ninho a uns metros de distância de onde ele estava, e um gavião em seu ninho um pouco acima dele.

Eu… estou sentindo… tudo. Ele finalmente disse, enquanto tocava numa árvore, passando os dedos nas ranhuras da casca. Eu… nunca me senti tão vivo…

Alicia parou na borda da clareira, admirando o filhote de Slender se rejubilar com a novidade. Os tentáculos agora estavam serenos, mais abaixados, enrolando e desenrolando pacificamente na ponta. Ele estava em casa.

Por um momento ela notou-se triste. E se ele quisesse ficar? Ele era um ser da floresta, mas ele iria voltar pra mansão, não iria? De repente o pensamento de que estaria agindo de modo egoísta lhe passou. Ora, ele é um ser da floresta, o lugar dele é aqui... Mas ela o queria de volta, ele era o seu bichinho... o seu melhor amigo...

Sentiu uma dor no peito como um aperto, a dor da angústia. Thomas sentiu isso, e se voltou para ela, a encarando.

Licia? Está triste… Não foi uma pergunta.

– Ah, Thomas... não se preocupe, foi apenas um mal-estar…

Você está muito mal então… Eu vou te levar de volta...

– Não, você tem de ficar aqui… mas… - Thomas notou a agitação nos pensamentos dela, todos eles conflitantes e confusos.

Deve ser o lugar, de repente humanos não foram feitos pra ficar aqui. Ele se aproxima dela, se abaixando um pouco e estendendo os braços para carregá-la, mas sentiu uma presença e parou. Ergueu-se e ficou parado, inspecionando a área. Licia… ele começou, acho que nós não devemos ficar aqui por mais tempo…

Ela se surpreendeu. Nós? Então quer dizer que ele iria voltar? A confusão não havia passado, mas uma ponta de esperança nasceu no coração dela...

O que ela não se deu conta é que alguém os observava. E com raiva.

Thomas a abraçou e a puxou para si, os tentáculos se agitavam, ameaçadores. Ele não precisava encarar os lados para pressentir os arredores, mas o fez por hábito.

–Thomas, o que houve? – ela disse quando viu o Slender se agitar e a erguer do chão.

Quieta... Ele quase ordenou, se não tivesse falando devagar. Tem mais alguém aqui…

Alicia então tentou prestar atenção. Não viu nem ouviu nada, mas sabia que alguma coisa estava errada...

Embora estivesse altamente feliz por reencontrá-lo, Hellen não ousou se aproximar. Sentira cheiro de um humano, e isso poderia significar uma armadilha. Observou e andou cautelosamente ao redor, evitando ao máximo fazer barulho, inclusive pisar onde não houvessem folhas ou galhos.

Ele está tão perto… ela pensou. Vou acabar com aquele humano primeiro, depois vou recuperá-lo… Ele vai entender…

Porém, eles estavam perto demais pra ela atacar. Humano esperto.

Procurou nos arredores. Um outro humano estava meio perdido, alguns metros antes... e nenhum outro mais. Apenas dois, e um deles estava sozinho com seu filhote.

Resolveu dar-lhes o que eles queriam. Aproximou-se da clareira, revelando-se completamente. O filhote de Slender ficou tenso, chacoalhando os membros negros... e abraçando o humano. Isso a pegou de surpresa, e a fez se recuar levemente, como num susto. Os tentáculos dela não estavam à mostra, o que a fazia parecer um humano fêmea magro de três metros de altura.

Mas o que mais a surpreendeu foi o fato de ele não a reconhecer como um dele.

– Thomas… é… uma… uma… – a humana falava numa língua que ela não entendia, mas seja lá o que fosse, fez seu filhote rosnar audivelmente.

Ela rosnou também, mas não pra ele. Ele estava sendo controlado pelo humano?! O ultraje a invadiu, fazendo aparecer seus tentáculos cinzentos, e os agitar nervosamente.

Devolva-o! Disse a fêmea, rosnando mais alto. Antes que eu tire-o a força!

O quê? Alicia ficou mais confusa que antes. Agora eu boiei, do que está falando?

Hellen estranhou o fato dela conseguir se comunicar com a cabeça, mas isso só a fez se agitar mais ainda. O filhote de Slender abraçou Alicia mais ainda com os rosnados dela, num ciclo vicioso. Estava muito tenso, quase mostrando a boca de tão nervoso.

Uma longa pausa se seguiu, ambos se estudando. Alicia ficou parada, sabia que se desse um pio ia acabar desencadeando uma luta sangrenta.

Até que ele resolveu quebrar o silêncio.

Afaste-se... Ela é minha. Foi tudo que disse, contraindo os músculos da não-face.

Hellen não esperava por essa, então parou de mover os tentáculos, e o que seria a face voltou a ficar lisa. Ergueu-se, abaixando os membros cinzentos. Como assim ela é sua? O que está havendo?

Thomas parou de ficar tenso, mas não baixou a guarda, e abraçava Alicia como um filhote de humano abraçava seu ursinho de pelúcia.

Minha. Ele repetiu, quase de um jeito feral. Hellen entendeu que ele estava fora de si, e se afastou, abaixando os tentáculos e os guardando nas costas. Mesmo assim ele ainda não voltara ao normal, e por um momento ela pensou se ele a entendia. Mas é claro que ele entendia, o problema é se ele queria entender... E ela sabia muito bem o quão teimoso era um Slender quando irritado.

E ela não queria machucar seu único filho para acalmá-lo.

Encarou a fêmea de humano, hesitou por uns momentos e então disse para ela. Você, humano. Alicia a encarou, e Hellen teve de engolir o orgulho. Pelo menos por agora. Você parece saber controlar ele, então faça-o parar. Não quero derramar sangue de minha espécie por sua causa.

...

Alicia ficou olhando a criatura branca por um momento à sua frente, mas entendeu o pedido. Tocou a “bochecha” de Thomas, estava duro feito mármore, mas ela sabia que isso o acalmaria.

–Thomas… ela se rendeu. Pode parar...

Ainda encarando a fêmea, ele abaixou os tentáculos e se reergueu, mas ainda abraçando a garota. Pelo tamanho, parecia que Alicia era uma criança sob os cuidados de um tutor.

A fêmea não se aproximou, ficou parada, a dez metros de distância, quase o mesmo ponto em que ela estava antes. Um looongo momento tenso se passou até que Alicia se deu conta de que os dois estavam conversando mentalmente... ela só conseguiu entender uma parte da conversa, mas ficou aliviada por uma parte.

Os dois pareciam estar se entendendo.

Thomas se sentia estranho. Aquela criatura à sua frente lhe dava uma sensação diferente, algo como se fosse uma autoridade… e muito familiar.

Devia sentir mesmo. Você é um de nós, e mesmo longe, um Slender nunca se esquece de suas origens… Disse a voz feminina na mente dele, uma voz que ele achava muito familiar.

Quem é você? Eu te conheço? Ele continuou parado, observando os tentáculos dela ondulando de alegria, mas calmamente, como que apreciando a sensação. Se tivesse olhos, ela estaria chorando de alívio.

Sim, me conheceu, mas provavelmente não se lembra… ela leva a mão ao peito, que estava embaixo de um casaco de pele de urso, o pensamento cheio de orgulho.

Ele parou, erguendo-se, não conseguia entender. Desculpe senhora, mas não lembro… A senhora me é familiar, mas não consigo…

Não poderia. Você foi levado de nós quando pequeno, ela disse. E agora conseguiu voltar… Ela o observou melhor, se aproximando devagar. E tão bonito… admira-me que tenha conseguido sobreviver entre os humanos tão bem…

Ah, bem… ele ficou meio cinza. Sobre isso, a história é meio longa…

Tenho todo o tempo do mundo, querido… um sorriso se formou em sua cara lisa. Há muito para se conversar e explicar, então iremos com calma.

Agora ela estava próxima o suficiente para se perceber a diferença de altura: ele era pelo menos meio metro mais baixo. Thomas por meio segundo se admirou com a diferença, mas ficou feliz ao saber que ainda poderia ficar maior.

Eu sou Hellen, de Schwarzwald. E você… Ela começou, ele ia responder, mas ela interrompeu. Imagino que não tenha ainda um nome, coitado… geralmente damos nomes quando as crianças ganham seus tentáculos, mas…

– Thomas… - Alicia sem querer falou alto – você tá me apertando…

Ele encarou a humana, colocando-a de volta ao chão, e Hellen se lembrou dela. Uma aura de desprezo tomou conta da fêmea.

Não ouse tocar nela. Thomas não rosnou, seu tom no pensamento estava mais para um aviso.

Você está… protegendo essa humana?! Ela se afastou, negando com a cabeça. Como? Por quê?

Não toque nela. Ela é minha amiga, e se fizer qualquer coisa com ela, eu te mato!

Foi a vez de Hellen paralisar, tremendo em seguida. Estaria disposto a matar a própria mãe por essa… essa criatura?!

Thomas parou de rosnar, os tentáculos pararam de repente. M-mãe? Como assim?

A Slender se ergueu altiva. Sim, isso que ouviu. Eu não queria que isso começasse assim, mas… Ela de repente se encolheu, a confusão mental a atingiu. Oh, isso é terrível… meu filho é um traidor, amigo de humanos!

Espere aí, não é exatamente isso. Ele se ergueu também, ainda entre Hellen e Alicia. A fêmea o encarou.

Primeiro: eu não sou contra ninguém, nem mesmo sei o que é certo ou errado em minha espécie. Segundo, essa “criatura” aqui cuidou de mim desde que eu me lembro, e tem sido ótima para mim. Terceiro… eu fui criado entre humanos, certo, mas é você quem está julgando antes de conhecer, igualzinho a um humano.

Ela recuou, ofendida. Ele continuou, fechando a boca e abaixando as “armas”: Escute, eu não queria ofender, mas isso estava beirando ao absurdo, eu mal conheço você e de repente tenho de lutar contra você para proteger quem me criou.

Alicia não conseguia "escutar" uma palavra deles, mas ela entendeu que Thomas a tinha feito parar, mas ainda não conseguia relaxar. Podia ser trucidada a qualquer momento se assim o fizesse. Não conseguia parar de tremer, e de repente sentiu que podia enxergar no escuro de tão arregalados seus olhos.

Hellen então abaixou a cabeça. Tem razão… Ela levantou a cabeça de novo, meio nervosa. Mas ela é um humano, como você acha que eu iria reagir? Eles são inimigos naturais nossos, desde as mais remotas memórias de nossa raça!

Ela se aproximou, Thomas se agachou ameaçador, rosnando. Alicia se encolheu e recuou, acabando por levar um tombo, fazendo-a cobrir o rosto e quase guinchar.

Ela levantou os braços e abaixou os tentáculos. Calma… começamos errado, desculpe…

Diga isso a ela, olhe só como você a deixou… ele se afastou um pouco, mas só para Hellen permitir olhá-la. Ela suspirou.

Então a tire daqui. Quanto menos tempo ela ficar aqui, melhor pra nós.

Alicia se agarrou na perna dele, buscando equilíbrio, e ele a ajudou a se levantar. Hellen não recuou, mas ainda assim estava desconfiada, encarando-a.

Eu… entendo seu ódio. disse a humana, de cabeça baixa, evitando olhar para ela. Humanos são uns pestes, não é?

Ao sentir que a Slender não esboçou reação, a garota continuou, devagar:

Thomas chegou em casa quando ele tinha quatro anos… ganhei ele de presente, não sei de quem meu pai o comprou. Tou com ele desde então… eu aprendi a falar com ele… a telepatia. E…

Hellen ergueu uma sobrancelha invisível, meio incrédula. Thomas?! Esse o nome que recebeu?

Encarou o jovem Slender, que confirmou. Foi… Ela não é má, senhora. Você disse que estou bem, então…

A Slender demorou um pouco para aceitar, mas ouviu toda a história com atenção. Ao final dela, tinha mudado um pouco seu conceito sobre Alicia, mas não sobre os humanos. Tinha feridas demais para suportar, e a garota entendeu isso.

Depois de uns segundos refletindo, Hellen finalmente disse: Certo, ela pode não ser tão ruim, mas não posso permitir que ela continue com você. Não se quiser conhecer seu pai.

Thomas a encarou. Meu pai? Eu tenho um pai?

Sim. Eu posso ter sido compreensiva quando ela contou a história, mas Sean não vai querer ouvir uma palavra sequer. Vai matá-la assim que tiver chance, e isso se ele apenas sentir o cheiro dela…

Thomas no reflexo segurou Alicia com um dos tentáculos, puxando-a para si. Ela estremeceu ao sentir o medo dele. Então, não posso ficar mais com ela?

Não se quiser conhecê-lo. A escolha é sua.

Thomas pela primeira vez se sentiu dividido.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Eu sei, demorou PRA CARALHO, mas não me matem por isso. Eu apenas tava sem ideias até agora, e me deu vontade de continuar. Simples assim. =D



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Criança Domesticada" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.