Do Lado De Dentro escrita por Mi Freire


Capítulo 12
Cicatrizes


Notas iniciais do capítulo

Jesse revela alguns dos seus tantos mistérios.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/422544/chapter/12

"O verdadeiro amor nunca se desgasta. Quanto mais se dá mais se tem."

Não consegui encontrar Alana por todo o internato. Acho até que ela está se escondendo de mim, desde que soube que sua tentativa de me matar foi em vão. Mas ela não me escapa.

Amy me barrou no meio do corredor, fui com ela até o quarto, disse que tinha algo importante pra dizer e eu acreditei, curiosa.

— É sobre o Jesse. – ela sentou-se de frente pra mim, no beliche, e eu sentei na minha cama. Toda bagunçada.

— Eu sabia. – soltei um riso divertido. Pousei as mãos sobre o meu colo. — Tá. Mas e dai?

— Dai que aconteceu uma coisa estranha. E só penso nisso desde então. – ela me preocupou, mas não ousei interferi-la. — Ele foi um herói em te salvar. – seus olhos brilhavam só de falar nele. Mas logo voltaram ao escuro normal. — Assim que ele correu até mim, após o meu escândalo em te ver na água e não ter coragem de pular para ajudar, ele não pensou duas vezes e tirou a camiseta na mesma hora.

Soltei um riso imaginando o rumo dessa história. Mas Amy me repreendeu com um olhar duro e eu parei.

— É claro que eu aproveitei a ocasião para dar uma bela conferida em seu porte físico. Afinal, O Jesse é atraente de qualquer forma. – nisso ela tem razão. — Mas o que realmente me chamou atenção além do seu peito magro foram às tantas marcas, manchas, não sei, que ele tem nos dois antebraços. – arregalei meus olhos, surpresa. — Hayley, é sério.

— Me deixa ver se entendi – articulei. — Você viu algo nos antebraços dele que te assustou, foi isso? – ela assentiu rapidamente. — E agora você quer saber o que isso significa?

— Exatamente! – ela deu um pulinho, mesmo sentada. — Hayley, não são manchinhas ou marcas qualquer. São sérias! Pode até ser grave. E se ele tem algum tipo de doença de pele?

Essa conversa estava realmente me preocupando. E a preocupação e pavor na expressão de Amy me deixavam ainda mais impaciente e aflita.

— Vou tentar saber mais a respeito.

Sai correndo pelo colégio inteiro. Como se aquilo fosse a ultima coisa que eu tinha que fazer na vida antes de morrer. Sendo que na verdade, a última coisa que eu faria antes de morrer era acabar com Alana primeiro, dai, só depois eu morreria em paz.

Brincadeiras a parte, sai perguntando pra todos onde é que estava o Jesse, mais uma vez, ninguém soube me dizer ao certo.

— Jesse? – entrei em seu quarto. Era o último lugar que havia me restado. Já é noite e as luzes já estavam acessas.

Encostei minhas costas na porta de seu quarto e respirei fundo, praticamente sem ar após toda aquela correria. Ele ficou assustado com a minha presença repentina ali. Afinal, meninas não devem estar na ala masculina. Mas não importa. Foi fácil achar seu quarto, perguntei pra um ou dois garotos pelo corredor. O quarto dele fica enfrente ao de Tyler.

— O que está fazendo aqui? – ele largou os livros que carregava sobre a cama. Pelo o que pude ver, Jesse estava dando uma faxina no quarto que divide com outros amigos. Talvez da banda.

— Eu preciso falar com você. – me desgrudei da porta, me virei para tranca-la. Certificando-me de que ninguém iria entrar ali, não enquanto eu não saísse. Também não me importava se seria pega ou não pelo monitoramento. O que tínhamos para conversar era importante. Geralmente não deixo nada para fazer depois.

— Ah Hayley – ele riu. — Se veio mais uma vez me agradecer por ter salvado sua vida... Não precisa. Sério. Você já agradeceu...

— Nada do que eu disser vai ser o suficiente para agradecer o que você me fez por mim. – me aproximei, calmamente. — Jesse...

Fiquei o suficientemente próxima dele ao ponto de sentir sua respiração de encontro a minha. Nossos olhos se encontraram, perdidamente em meio a pouca luz do quarto. Não pude deixar de me sentir, de repente, tão pequena.

Toquei o braço dele. Coberto pela manga longa da camiseta branca que combina perfeitamente com sua pele amarela. Jesse abaixou os olhos e olhou para minhas mãos. Surpreso, talvez. Logo depois, em segundos, voltou a me olhar sem dizer nada.

Com a ponta dos dedos, lentamente, subi a manga da sua blusa, mas acho que ele nem percebeu. Estava com os olhos vidrados em meu rosto. E eu, sem tirar meus olhos dele. Ambos hipnotizados. Mesmo assim eu ainda agia sem ser percebida. Abaixei o olhar e vi tudo àquilo que Amy já havia me certificado de que eu encontraria cravado em sua pele.

Marcas. Feridas. Manchas. Arranhões. Cicatrizes.

— Jesse, você não se mutila, não é? – me afastei, deixando a manga da blusa dele suficientemente levantada para de longe observar.

Ele piscou duas vezes. Perdido. Até perceber de fato o que realmente havia acabado de acontecer ali. Eu o invadi.

— Não. – ele deu as costas, balançando a cabeça negativamente. — Claro que não. Ficou maluca? De onde tirou isso?

— Jesse, ta aí, na sua pele. – me pus em sua frente para que ele pudesse olhar pra mim. Encarar-me frente a frente. — O que significa isso?

— Hayley, não é dá sua conta! – ele realmente ficou ferido. Sem eu nem ter o tocado. Jesse abaixou a manga da blusa e se escondeu.

— Jesse! Não vire a cara pra mim. – eu meio que gritei, só para chamar sua atenção. — Olha pra mim! – ele não olhou. — Olha!

Gritei alto. Alto suficiente para assusta-lo.

— Eu me preocupo. – voltei a me aproximar, agora bem mais calma e com o tom de voz baixo, com os olhos dele nos meus. — Vamos lá. Não tente se esconder de mim. Eu quero poder ajudar.

— Mas não pode.

Ele sentou-se em uma das camas, se era a sua eu não sei, Jesse enterrou o rosto coberto de vergonha, dentro das mãos e começou a se mexer, muito discretamente, como quem estava chorando escondido.

Esperava de tudo, menos vê-lo chorar. Foi como se algo dentro de mim tivesse se despedaçado junto com ele.

— Encontrei na mutilação uma maneira de sufocar a minha dor. A dor de  perder meus pais ainda criança. – ele começou a se explicar, choroso, sem olhar pra mim. — Ninguém nunca soube. Mas sempre que eu estava sozinho em meu quarto, na casa da minha avó, eu pegava um dos meus objetos cortantes, eu tinha uma coleção deles debaixo do colchão, e começava a passar em minha pele enquanto chorava. No começo a dor foi terrível, eu sangrei tanto que pensei que iria morrer. Mas depois, fui me acostumando, me adaptando, e a dor já não era tão forte. Forte mesmo era a dor que eu sentia no peito por não poder ver meus pais. Nunca mais!

Fiquei de pé, ouvindo tudo com atenção, ao mesmo tempo em que achava que o ar me faltava nos pulmões.

— Hoje eu já não faço mais. Parei há um ano e meio. Porque descobri, mesmo sozinho, que não há nada que eu pudesse fazer para tê-los de volta. – ele enxugou algumas lágrimas. — Mas terei sempre que me esconder, por causa das marcas e das cicatrizes.

Jesse puxou a manga da blusa até o cotovelo. As duas mangas e me estendeu os dois braços, deixando a mostra, sobre a luz, as muitas marcas cravadas na pele. Algumas longas, outras nem tanto, profundas, leves, outras aparentemente mais graves em diversas formas.

Senti lágrimas se formando no canto dos meus olhos. Senti também um calafrio percorrer pela espinha. Imaginando, o quão terrível, foram os dias em que ele resolveu se cortar, sagrando até não parar mais, enquanto chorava e pensava nos pais. No escuro de seu quarto, sozinho e calado, tentando abafar o sofrimento e a dor.

Nós dois perdemos pessoas especiais. Mas agora ali, acredito que a perda dele tenha sido bem maior que a minha. E diferente de mim, ele encontrou uma maneira de tentar se livrar dela. Enquanto eu, por pura pirraça, só pensei em mim mesma enquanto fazia besteiras por ai, ainda mais depois de perder Brandon.

Ajoelhei-me na frente dele.

— Isso ainda dói? – perguntei, aproximando a ponta de um dos meus dedos para toca-lo.

— De jeito nenhum. – ele sorriu, finalmente. O que fez meu coração acelerar um pouquinho. De alivio. — Pode tocar, se quiser.

Toquei. Contornando com a ponta dos dedos os desenhos marcando em sua pele por ele mesmo.

Logo depois, sorrimos um para o outro. Um sorriso fácil e discreto, foi então, que não resisti a vontade de abraça-lo bem apertado.

— Nunca mais faça isso, tá? – olhamos um para o outro. Ele assentiu, abaixando o olhar. — Mas também, não sinta vergonha. Foi a maneira que você encontrou para tentar amenizar...

— Mesmo assim Hayley, tenho vergonha. Fui burro. Fui egoísta. Eu poderia te matado a mim mesmo. Mas não era isso que eu queria. Alguém poderia ter descoberto, me interpretado mal e me internado em uma clinica psicológica. Hoje, eu poderia estar livre das blusas de mangas longas, mas não posso, todos me olhariam torto, me julgariam e isso só faria com que eu me envergonhasse ainda mais pelos meus erros.

— Não diga isso. Pra tudo, há um jeito!

— A verdade é que eu não sou perfeito, Hayley. Tenho a música com salvação. Foi minha ultima saída para melhorar. Dediquei-me de corpo e alma a ela, tendo como proposito alcançar meus pais. Deixei de lado a mutilação. – ele sorriu, fraco. — Também, não sou o tempo todo feliz. E nem esse garoto bonito que alguns acreditam que eu seja.

— Ora – me levantei, sorrindo. — não diga tanta bobagem! Você está enganando a si mesmo. Você é maravilhoso, Jesse.

Dei de costas. Pela primeira vez reparando melhor a decoração de seu quarto e a colocação dos objetos. Pra um quarto de menino, até que estava tudo muito bem organizado, bem decorado, limpo e em ordem.

Decoração em tons de preto, branco e cinza. Postes de bandas cobrindo todas as paredes. No teto, adesivos de galáxias colados para enfeitar o ambiente. Sobre uma das camas, uma guitarra. Na outra um violão e em um dos cantos, do lado oposto do banheiro, um teclado.

— Gostei do seu quarto. – quebrei o silencio.

— Hayley – senti sua mão pousar em um dos meus ombros. Virei-me de frente pra ele. — Obrigado. – ele sorriu docemente. — Mas e você? Já sabe tanto de mim. Mas eu não sei nada sobre você.

— Não seja tolinho, Jesse. – eu ri, me afastando. — Você não precisa saber nada sobre mim. O mínimo já é o suficiente.

Abri a porta.

— Eu tenho que ir.

— Não, espera – ele correu até mim, depositando um beijo suave em minha testa. — Obrigado, mais uma vez. E por favor, Hayley, não conte isso a ninguém. Por favor.

— Não precisava nem pedir. – beijei seu rosto. — Seu segredo está guardado comigo. Até você ter coragem de compartilha-lo com o mundo.

No jantar, sentei-me com Amy, Nath e Eric no refeitório. As duas riam de uma das piadas que Eric fazia quando me sentei.

— E ai, descobriu alguma coisa? – Amy cochichou.

— Não era nada de mais. Apenas uma alergia.

Na quinta-feira, descobri que tirara B+ na prova de estatística. É claro que eu poderia ter tirado um A+ ou um A-, mas não queria deixar tão na cara que eu tinha a resposta de todo o gabarito. Assim, propositalmente errei algumas alternativas.

— Tirei um A+ - Tyler comentou, quando nos encontramos para beber cerveja atrás do ginásio aquela tarde, antes do treino dele.

Não muito diferente de outras escolas, no internato há uma chapa de estudantes representantes. No sábado à tarde, eles tiveram a ideia de reunir a todos para assistirmos filmes na sala de vídeo. Com direito a pipoca e refrigerante. O que todos adoraram. Mas tiveram que dividir os muitos alunos em grupos e sessões diferentes para todos participarem.

O filme escolhido foi uma comédia adolescente.

Todos riam juntos como um coral. O tempo todo, Tyler ficou em um dos meus lados, na fileira em que estávamos sentados. Tyler segurou minha mão, apertando-a vez em outra. Gostei da sensação, mas achei estranho o excesso de contato. Mas também não me queixei.

Do meu outro lado estava Amy, que parecia não se importar com as cenas engraçadas do filme. Acho que ela nem prestava atenção. Estava mais preocupada em Jesse, na fileira da frente, com Alexa ao seu lado.

— Amy, deixe de coisa. – eu a cutuquei, chamando sua atenção, sussurrando ao mesmo tempo. — Eles são só amigos.

— Pelo visto – ela cochichou de volta, com os dentes cerrados. — por pouco tempo. Olha só pra eles!

Ela pode até ter razão. Jesse e Alexa parecem cada vez mais próximos, mas isso não me preocupa. Apesar de Alexa ser bem conhecida e querida, sei que Amy é bem melhor. Só espero que Jesse ache o mesmo.

— Hayley? – Tyler sussurrou no meu ouvido. Provocativo. Dando-me arrepios. Olhei pra ele, sorria.

Ele agarrou meu pescoço e me puxou para um beijo.

— Pare com isso – disse logo depois. — Vamos assistir ao filme!

Porém, um grupo de meninas, na primeira fileira, três antes da nossa, não paravam de conversar um só quer minuto. Ergo meu pescoço para verificar melhor quem são elas. E olho feio para Alana, mas ela não vê.

Desde que ela me jogou na piscina, só tenho pensando na melhor maneira de dar-lhe o troco por isso. Ela nem olha mais pra mim e nem cruza meu caminho. Alguns dias eu me esqueço dela. Outros, penso em agir o quanto antes. Mas prefiro bolar um plano melhor. Doloroso.

— Ei. Calem a boca! – aumento o volume da minha voz. Tentando parecer durona e desafiadora.

Alana e as amigas viram-se para trás para ter certeza de que sou eu quem reclama enquanto todos estão calados tentando ver o filme. Alana me olha rápido, parece com medo. Volta-se para frente e cala a boca.

Ainda de mãos dadas, Tyler e eu saímos da sala de vídeo após o termino com Amy ao lado. Conversamos normalmente. Quando alguém esbarra em mim. Ou me empurra de proposito.

Torço para que não seja Alana.

Mas não, é apenas meu irmãos rodeados de garotas com um sorriso estupido estampado no rosto. Ele sabe me irritar e me deixar sem saber como reagir. Porque não quero fazer nada contra ele, apesar da minha capacidade.

— Seu irmão nunca vai gostar de mim. – Tyler comenta, quando já nos afastamos da multidão que sai da sala de vídeo.

— Eu nem sei por quê. – dou de ombros. — Acho que ele não gosta nem de si mesmo. – pauso. — Mas eu gosto dele.

— Você tem um irmão? – Amy pergunta, incrivelmente surpresa com a novidade. Eu não sabia, que ela não sabia desse detalhe.

— Sim. Oliver, aquele babaca, é o meu irmão do meio. Tem também a Elisabeth, minha irmã mais velha.

Não gosto muito de falar sobre minha drástica família. Então tento dizer o mínimo possível. Não quero me abrir demais.

Amy, ainda conversando com Tyler ao nosso lado, acaba revelando também um pouquinho sobre sua mãe. A unica família que ela tem.

Tyler, eu sei, porque uma vez ele já me disse, mas acaba dizendo de novo em particular para Amy, que é filho único de pais ricos. Ele sempre teve tudo só pra ele. Menos o amor dos pais. O que é revoltante pra ele. O que justifica quem hoje ele é.

Acredito que você é o que é, pelas experiências do seu passado, da sua infância, em casa, na escola ou com amigos e namoradinho. Alguns sofrem traumas maiores que os outros. E de alguma forma nem todos sabem lhe dar com isso, por isso se revoltam ou, em alguns casos, se isolam em um mundo privado e particular.

Até hoje busco respostas por ser quem eu sou. Sei que as grandes parcelas de culpa são dos meus pais e dos meus irmãos. Mas não que eu os culpe totalmente por ser quem eu sou.

No domingo teve mais sessões pipocas na sala de vídeo, mas eu só passei por lá pela manha depois do café. Passei o resto do dia no meu quarto, aproveitando o tempo livre, ouvindo musica e desenhando no meu bloquinho de desenhos, qualquer coisa que me viesse à cabeça.

Entre os muitos rabiscos, estava um par de olhos cor de âmbar misterioso e um tanto intrigante. Pertenciam eles ao Brandon ou ao Jesse?

Eu não saberia responder a essa pergunta.

Acabei acordando pela noite, depois de ter cochilado enquanto observava o desenho daqueles olhos, com o barulho de chuva lá fora. Uma chuva fraquinha de verão. Que em menos de uma hora e meia parou e deu espaço ao céu estrelado.

O cheirinho de terra molhada entrava pela janela do quarto me levando de volta ao passado. Antes mesmo de conhecer o Brandon.

Eu era só mais uma criança que dava em dobro trabalho aos meus pais e na maior parte do tempo me sentia muito sozinha. A solidão não era uma coisa tão ruim, muitas vezes me sentia bem melhor sozinha.

Mas eu sentia falta, como qualquer criança, de amiguinhos. Eu não tinha nenhum amigo de verdade. Daqueles que dormem em casa e viajam juntos. E veja só agora, eu tenho amigos. São poucos, mas é o suficiente. No começo eu dizia para mim mesma que isso era bobagem, eu não precisava de amigos. Mas agora que os tenho e posso os considerar uma parte de mim, só quero mantê-los por perto.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ainda estamos no comecinho. Ou nem tanto. Ainda há poucos leitores. Mas gostaria muito, do fundo do meu coração, que os poucos pudessem ao menos deixar um comentário. Só pra saber se devo ou não continuar.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Do Lado De Dentro" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.