Serendipidade escrita por Roxanne Evans


Capítulo 22
22




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22

..Então vou me enganar
Que agora não dá tempo
Que agora tanto faz
Que é hora de esquecer
E de me conformar
Do que um dia já foi meu
Agora não é mais

Você veio e mexeu comigo

Os dias não passavam de borrões, uns fundidos aos outros de maneira igual e irrepreensível. A tristeza do fim, a saudade de Jake, a raiva se seus pais e de sua própria falta de liberdade pareciam coisas demais para que pudesse aguentar sozinha.

Ninguém tocou no assunto por muitos dias.

No começo Nessie não saía do quarto, recusando-se a encarar o mundo, lentamente lidando com as notícias, mas, conforme os dias viraram semanas e essas lentamente avançavam para meses, tudo foi  gradualmente virando uma rotina. Lá no fundo de si mesma ela sabia que algo estava faltando, um sentimento de vazio lhe preenchia o peito. Ao contrário do que se poderia pensar, não era o mesmo sentimento que a invadia e atormentava tantos meses atrás, não. Naquela época uma parte de si faltava, uma parte que, mesmo com ajuda, só ela poderia achar. E ela a achara e fizera sua paz para com isso. Agora, diferentemente, era como se algo que lhe era muito importante tivesse sido colocado no lugar errado e por isso, agora se via perdido. Aquilo a atormentava e a seguia como uma sombra, tudo o que sabia é que algo precioso lhe havia sido roubado.

Finalmente, as cartas de aceitação começaram a chegar e comemorações deviam ser feitas. Nessie não estava com cabeça para nenhuma delas.

Ainda assim, como em todas as famílias funcionais, as pazes são feitas em silêncio e sem pedidos de desculpas, como se as peças do quebra-cabeça lentamente caíssem nos lugares certos por acidente e, por pequenos deslizes, tudo fosse lentamente voltando ao lugar, embora por muito tempo, a sensação de estranhamento permanecesse, uma mancha irremovível dentro do relacionamento.

Os filhos não são os únicos que erram.

E, por mais incrível que parecesse, aquilo nunca havia acontecido daquela forma. É claro que desentendimentos já haviam passado, assim como várias brigas, mas, até aquele momento, Nessie sentia como se fosse a única responsável pelos grandes erros, as grandes mancadas. Não mais. Ainda não estava decidida como era melhor. Seria mais difícil perdoar um pai do que aos filhos?

Ver a vulnerabilidade e defeitos em seus pais era o complemento inevitável de um amadurecimento sempre difícil. Assim como discordâncias de opinião. Não se sentia respeitada ou sequer ouvida. Ninguém quisera saber de seus motivos e explicações e isso, acima de tudo, a machucava, pois sempre achara que sua família era do tipo que ouvia e conversava. Aparentemente não sempre. 

Queria que mesmo depois de um possível ataque de fúria, tivessem ouvido o que acontecera, como as coisas haviam se passado. Queria que houvessem lhe dado voz e priorizado o relacionamento que tinham com ela, ao invés de querer resolver algo por ela, sem que ela pedisse. Ela sabia que o que tinha acontecido era nocivo, não fora saudável a ninguém.

Alguns dias antes de ir para  a faculdade, sua mãe bate à porta, entrando devagar sem esperar confirmação. Ao contrário de antes, havia uma tensão entre elas, algo estranho e feio. Nessie a encara, sentada, usando seus fones de ouvido.

—Sim? - Pergunta, pois sentia que, se não o fizesse, ficariam ali para sempre.

—Preciso falar com você - Ela parecia deslocada e etérea no meio do quarto. Engolindo em seco, a mulher se aproxima, sentando-se na beirada da cama. Nessie vira a cadeira em sua direção e a encara, abraçando os joelhos.

—O que foi mãe? - As palavras podiam não ser doces, mas o tom era passivo, quase sem forças.

—Você tem tudo o que precisa para a viagem?

 –Tenho sim. Alice teve certeza disso, como sempre - E embora sorrisse, havia um leve cansaço pesado em sua voz que faz Bella franzir o nariz. A morena remexe a colcha debaixo de seus dedos, como se tomasse força para dizer alguma coisa.

—Ainda não acredito que você vai embora. Parece tão cedo. - A voz era sentida.

—Eu não podia ficar aqui para sempre, poderia? - A afirmativa tinha segundos significados.

—Eu gostaria que pudesse.

 –Se eu ficasse, eu jamais poderia crescer.

—Eu sei, mas isso não faz desse momento menos difícil. - E dessa vez a voz embargava e Nessie não consegue evitar se sentir mal ao se colocar no lugar de sua mãe. Ela se levanta e as duas se abraçam. A mãe forte e apertado, como se sugasse, impregnando cada uma de suas memórias naquele contato. Aquilo faz a ruiva suspirar. Ultimamente nada parecia fácil.

—Nós ainda vamos nos ver e nos conversar mãe - E tenta confortá-la.

 –Eu sei - Mas ela chorava, sem largá-la.

—Eu te amo mãe. - Fala baixinho, uma confissão que não se deixava fazer a muito tempo, mais porque Bella precisava do que porque realmente estivesse sentindo.

—Eu também, minha menina - E se afasta, acariciando o rosto a sua frente - Vamos sentir sua falta, você sabia não é? 

 –Eu sei mãe. E eu a de vocês.

 –Na verdade, eu vim aqui te trazer uma coisa, mas eu não sabia se teria coragem... Depois de tudo o que aconteceu. Mas eu sinto que eu precisava. - Nessie arqueia uma sobrancelha, sem ideias do que poderia surpreendê-la a essa altura do campeonato.

E não poderia ficar mais surpresa do que quando sua mãe puxa uma foto e a entrega. Ao pegar em suas mãos, percebe que havia mais de uma foto presa com clipes. Sua mãe simplesmente beija seu rosto.

—Eu vou te deixar sozinha para que termine de arrumar suas coisas. - Murmura baixinho em seu ouvido. - Te amo, te amo, te amo! - E beija seu rosto de novo, várias vezes consecutivas, antes de sair, encostando a porta.

Movida por uma curiosidade nata e até um pouco de medo, Nessie encara uma foto de seus pais juntos com Rosie, Emmett, Alice e Jasper, todos com roupas de colegial, no meio do que parecia uma discussão quando a foto foi tirada. Aquilo faz a menina sorrir.

Rosie estava linda e posando, perfeita como sempre, enquanto Jasper apenas olhava. Emmett e Alice pareciam brigar, ele mexendo nos cabelos dela, que parecia estar batendo na barriga dele. Atrás de Alice, Edward estava incomodado, parecendo prestes a interferir na briga, embora ainda estivesse com os dedos enlaçados aos de Bella, que parecia estupefata, tudo capturado em um clique rápido e imortal.

Aquilo volta a lhe dar vontade de chorar.

A foto seguinte era recente, tirada na festa acontecida na casa de Rosalie. Todos bem vestidos, com copos na mão, encarando a câmera, um sorriso quase plástico em seus rostos. Tão destoantes daquela primeira foto, tão mais genuína. Evitando procurar o rosto dele no meio dos muitos, ela vira a foto, o coração levemente acelerado.

Ainda não havia superado a perda muito bem e a evitava, com medo de voltar para o buraco onde estava antes. A raiva que tivera de seus pais, o inconformismo, tudo ressecando, até chegar a uma resignada aceitação de sua nova realidade.

 E no fim, tudo o que realmente queria era um pedido de desculpas. Porque até conseguia entender o sentimento de traição que seus pais sentiram. Afinal ela realmente os havia traído, sua confiança, se portando de forma infantil e não os culpava nem um pouco com isso.

 O problema havia sido a forma como haviam lidado com o problema.

 Não era mais criança. E pela primeira vez se vira tratada como uma, depois de muito tempo e isso a machucara, a deixara marcada e a fizera perder algo que talvez houvesse sido uma das coisas mais importantes que já havia tido até então. Relacionamentos mal terminados e pendentes são sempre mais complicados, pois parece que nunca vão realmente embora.

Eles não haviam se sentado para conversar com ela. Não procuraram entender o que estava acontecendo nem durante e nem depois. Nenhum pedido de desculpas seguira o acontecimento. Ela ainda o esperava. Sabia no fundo de si mesma que ela ainda poderia fazer isso, ela podia tentar resolver as coisas com eles, sendo madura o suficiente. E acreditava que ainda faria isso, mais para frente, embora no momento, estivesse machucada e quisesse apenas um pouquinho de distância para respirar e processar todas as informações. Nunca antes estivera tão interessada na perspectiva da faculdade.

E não é como se não amasse ou respeitasse seus pais. Mas de alguma forma, o sentimento estava levemente amortecido, depois de tanto ressentimento, desgaste emocional. Realmente, talvez a distância entre eles fosse a melhor coisa que poderia acontecer.

 Ia pensando enquanto olhava as memórias que carregava em suas mãos, pausadamente. Ainda assim, nada poderia prepará-la para a última foto. Não sabia dizer se era o pedido de desculpas silencioso de sua mãe, mas, ao olhá-la começa a chorar sem nem sequer pensar a respeito.

Na foto, Jake, Seth, um homem na cadeira de rodas que ela deduzia ser seu pai e vários rapazes que ela deduzia serem seus amigos a encaravam, todos sorrindo, em poses quase engraçadas, meio palhaços.

 Abraçando a foto contra o corpo, ela se entrega completamente ao choro, ao sentimento vazio que se habituara a carregar dentro de si. 

E acima de tudo e de todos, mesmo que se soubesse totalmente culpada por arruinar a amizade de muitos anos de sua mãe com Jake, ainda se ressentia. Pois como ele pudera simplesmente deixá-la para trás, desistir? Como ele podia não ligar, não querer saber como ela estava, deixar as coisas acabarem como acabaram?

Ele não tinha vontade de vê-la, como ela tinha de vê-lo? Ele não achava que eles mereciam mais uma chance? Ele não iria minimamente tentar uma segunda vez, depois que tudo se acalmasse? Como ele pudera simplesmente ir embora? Será que ele sentia tanto medo quanto ela sentia? Pois conseguia entender se esse fosse o caso. Não sabia como ele falaria com ela depois de tudo e tinha muito medo de descobrir. Esse foi o principal motivo pelo qual não quebrara o silêncio imposto entre eles. Afinal de contas, depois de tudo aquilo, o que havia para se dizer?

Queria e queria muito, mas infelizmente não conseguira perdoar nenhum deles e muito menos a si mesma por tudo o que acontecera, por como as coisas haviam sido, e por isso seu coração era pesado, seu peso, oneroso.

—/-/-/-/-/-/-

No final, seus pais a acompanham até a universidade ao invés de a deixarem no aeroporto, fazendo questão de ajudá-la a descarregar todas as malas até o quarto do dormitório, que dividiria com mais uma menina.

Houve lágrimas e abraços apertados, além de despedidas.

Mas o que fez Nessie se sentir mais culpada do que tudo foi o fato de que, assim que se viu sozinha pela primeira vez, em muito tempo, o que realmente sentiu foi alívio, como se, pela primeira vez pudesse respirar fundo, ouvir seus próprios pensamentos, pensar em si mesma em primeiro lugar por um tempo, sem se reprimir ou sentir mal por isso.

 Obviamente que a culpa era pesada e dura, mas ela a engoliu inteira, disposta a fazer o melhor possível da chance que tinha ganhado, aproveitar ao máximo suas oportunidades, seu curso de artes e psicologia.

Como haveria de perceber, não se arrependeria.

Seu aniversário, 11 de setembro, foi logo na primeira semana de aula. E, como era o esperados seus pais não apareceram, embora tenha ficado horas com eles no Skype. E Alice e Rosie. E depois com Jane. E Seth. E todos mandaram presentes. Sua colega de quarto até ficou surpresa com a dedicação. Aliás, foi ela que saiu e comemorou com Nessie mais ao anoitecer, dançando e saindo para comer.

Bree Tanner era uma boa companheira de quarto. Ótima até.

A menina morena era bem animada, mesmo sendo tímida e, apesar de saírem para festas o tempo inteiro juntas, se divertindo e até dançando juntas, a menina sabia respeitar seu espaço bem e não forçava a intimidade entre elas. Ela era boa com limites.

 Além de sempre manter sua parte do quarto razoavelmente arrumada, o que só acrescentava pontos a sua pessoa.

Apesar de festeira, Bree era uma menina dentro dos padrões do ‘bom comportamento’. Não fumava, bebia pouco e tinha um namorado, chamado Diego, que namorara durante todo o colegial e agora a visitava todos os finais de semana.

Aparentemente ele era amigo de infância do irmão de Bree, ou algo assim. Foi no meio de um dos inevitáveis passeios que acabou fazendo com o casal durante um sábado feioso de chuva, que conheceu um dos melhores amigos se Diego, Riley Biers.

Riley era bem apessoado e conversava bem. Ele claramente se interessou por ela desde a primeira vez que se viram e, mais por querer saber até onde iam com aquilo do que qualquer outra coisa, Nessie se deixou levar.

Os dois ficaram juntos por quase seis meses. No final, teve de ser honesta consigo mesma e com ele e admitir que não o amava, mesmo que gostasse de sua companhia, atenção e amizade.

Seu coração ainda seguia, preenchido de saudades de outro, que estava longe e, até onde sabia, já podia tê-la esquecido. A verdade é que se recusava a acreditar. Afinal, o que tiveram havia sido real, mas, em um mundo como esse, o quão real poderia ser, uma vez que tinha acabado? As pessoas seguem em frente e não podia culpá-lo por isso. Ou não deveria.

O tempo não para de correr, os fatos se sucedem, um depois do outro, correndo em direção a um futuro incerto, embaçado e de formas indefinidas. Ninguém tem tratamento especial, tudo se transforma, toma nova forma e essa era uma coisa que precisava aprender a lidar.

Às vezes sequer pensar nisso a deixava tão mal, que sequer tinha vontade de sair da cama.

 Depois de Riley, houve Pauls, Ricks, Jonnahs e até uma vez uma Marie, vinda da França. Nenhum deles ficou, mas não podia dizer que não havia tentado.

Bree, depois de seu término com Riley, ficou sabendo da sua história, então não era estranho ela tentar animar a amiga, quando ela entrava em um de seus períodos depressivos.

As duas saíam para tomar chocolate quente fora do campus quando fazia frio e discutiam seus cronogramas e o tanto de tarefas que ainda tinham para a semana.

No final do primeiro semestre, sendo bem honesta consigo mesma, já estava se sentindo bem melhor e embora guardasse as memórias como preciosas, já não mais a destruíam.

Também foi nessa época que conheceu Riley. Ainda assim, depois daquilo, de Jake, não mais se apaixonou. Atração era comum, mas não era a mesma coisa, o sentimento era mais vazio. É difícil superar o primeiro amor.

—/-/-/-/-/-/-

—O que vocês acham desse aqui?

Fiéis a sua promessa, Nessie, Seth e Jane conversavam ao menos uma vez ao mês, muitas vezes os três ao mesmo tempo, por Skype, embora o nome de Jake nunca fosse citado.

No momento, Jane se preparava para uma festa e saía e entrava na tela, mostrando suas opções de vestido.

—Eu prefiro o dourado - Ness dá de ombros. Tinha feito pipoca. Em uma sexta-feira a noite, Bree sairá, indo passar o final de semana no apartamento de Diego. Nessie estava sozinha e pronta para fazer várias maratonas de Netflix.

—Não escuta ela não. O vermelho. - e Seth dá uma piscadela charmosa, que faz Jane rir e revirar os olhos. Nessie tinha de confessar que o costume recente dos dois de paquerarem na sua frente era um pouco incômodo. Na maior parte do tempo simplesmente se fingia de sonsa e os ignorava.

 –Você vai voltar para casa em Junho? - Jane perguntava animada. - Estou com saudade - e fazia um muxoxo mimado, se aproximando da tela. Ela pega a necessaire, tirando algumas opções de batom de dentro.

—Não sei ainda - é um suspiro. - comentei com vocês que consegui um estágio?

—Não!

 –Você não tinha dito! Parabéns!

Os dois amigos pareciam descrentes, embora, como sempre, Seth fosse mais empolgado e expressivo.

—Não sei se vou ter folga no verão - e coça o nariz com a manga do agasalho, para em seguida espirrar.

 –Crise alérgica?

—Nossa, tá fogo!

—Toma antialérgico.

—Não quero, é ruim pro corpo, vou ver se passa.

—Mas e então? Quer dizer que você não vai voltar, é isso mesmo?

—É, acho que não.

Um instante de silêncio se passa e Nessie começa a sentir raiva, mesmo sem olhar para a tela, sabendo que seus amigos trocavam olhares e talvez até mensagens pelas suas costas.

—Ness… Você sabe que eu te amo né? - Jane começa o discurso e a ruiva já a olha irritada, cruzando os braços. - Mas por um acaso isso não teria alguma a coisa a ver com seus pais? E o que eles te fizeram?

—Eu não sei do que você está falando - e insiste, teimosa.

 Mais uma troca de olhares que resulta em um suspiro irritado da parte dela.

—Vocês querem parar com isso, por favor?

 –E posso saber parar com o que?

—Isso! - e indica com o dedo os dois, apontando para a tela. - eu não sou idiota. Eu conheço vocês - e soava cansada e magoada.

—Nós também te conhecemos. - Seth seguia calado em meio a troca de ideias que se desenrolava.

—É só que eu sinto… que tem alguma coisa errada. Como se lá não fosse mais a minha casa mesmo, para eu voltar, vocês entendem? - e se referia, quando nota que ele faziam de novo.

 –É lógico que entendemos linda, é só que… você sempre foi tão próxima dos seus pais.

—As coisas vão mudando.

Foi só depois de dizer isso que notou o quanto aquilo era verdade até mesmo na sua vida. Como sempre, ela também não fora exceção. Da menina que havia sido para quem se tornara agora, do seu relacionamento com seus pais, com Jane, o próprio relacionamento entre Jane e Seth, nada era constante, tudo era mutável é isso a assustava. O mundo parecia um lugar muito grande para se estar sozinho.

A realidade era uma fluidez constante, sempre líquida, corrente.

—/-/-/-/-/-/-

Depois do estágio, que durou quase dois anos, algo relacionado a fotografia e edição de imagens para a parte publicitária de uma empresa, acabou arranjando um emprego na área de design e mais um estágio junto a sua professora de modelagem.

O tempo seguia a correr e agora Nessie desistira do dormitório, por seu próprio apartamento, que ainda dividia com Bree, uma vez que a dinâmica funcionava tão bem.

Nos dois anos desde que chegara a faculdade, seguindo ao terceiro, estivera na casa de seus pais duas vezes, durante o recesso das festas de final de ano. Tinha de confessar, fora a coisa mais estranha de sua vida. 

Havia sido desconfortável e silencioso. E nem tocar piano com seu pai ou sair para fazer compras com Alice tivera o efeito desejado, de consertar as coisas. Era como se sempre estivesse desconfortável com sua própria pele quando estava lá. Nada parecia natural, era como se fosse uma realidade alternativa e atuada.

Voltara para a sua nova casa com um buraco no peito ainda maior do que o que tinha de partida. Parecia que já se passara muito tempo para que as coisas fossem consertadas. Será que ainda era possível algo mudar entre eles?

Naquele começo de semestre do terceiro ano, no seu aniversário, também é quando recebe a primeira e única lembrança, que há tanto tempo, desejara.

Chega em casa afobada depois de correr, o rosto úmido de suor, o rabo-de-cavalo segurando os cachos no lugar.

—Chegou encomenda pra você - Bree havia voltado fazia pouco tempo da casa dos pais, para o início do ano letivo.

—Um presente?

—Deve ser, eu sei lá.

—Valeu Bree! - e corre para o banheiro, já tirando os sapatos, antes mesmo de bater a porta.

—Não vai abrir? - a colega para à porta, uma xícara fumegando em mãos, cheia de chá. Bree era viciada em chá. Faz bem para os nervos, ela dizia.

—Não tenho tempo. Estou atrasada para o meu encontro com a Ângela. Ela vai ficar puta da vida comigo. - Ângela era a professora orientadora de Nessie, com quem fazia um estágio de modelagem. Nessie a adorava.

—Mas eu estou curiosa. Seus presentes são sempre ótimos, principalmente quando não cabem em você, mas cabem em mim.

—Ah há, engraçadinha. Eu abro na volta, tudo bem?

 –Okaay - a voz com um suspirinho dramático fez Nessie rir.

A verdade é que com a rotina corrida que tinha, só foi se lembrar do presente de noite, depois do seu segundo banho, quando preparava algo para comer, na cozinha.

—Boa noite Nessie.

—Diego! - o recrimina - ponha roupas, por favor. Já falei pra você não andar só de toalha.

Ele riu.

—Já vou, já vou, só vim pegar um copo de água. - ele bebe em silêncio, enquanto a comida esquentava no microondas. - e então? O que tinha no correio? Já recebeu roupas e dinheiro, certo? Seriam passagens de avião? Você vai viajar?

E foi aí que se tocou que esquecera. Inconformada consigo mesma, leva seu prato consigo para o quarto e tranca a porta, só porque podia fazê-lo.

Em cima da cama, um embrulho de papel pardo repousava.

Ele bebericava alguns goles de sua bebida quente, enquanto encarava o pacote. O pega na mão e mede seu peso. É só quando nota, o pacote não tinha remetente. Não tinha nome, apenas um endereço de caixa postal.

Isso a intriga ainda mais e ele revira o pacote em mãos. Largando a xícara em cima da escrivaninha, dá total atenção ao presente misterioso. Levada pela curiosidade latente, rasga o lacre, precisando do auxílio da tesoura.

Dentro, uma surpresa maior do que o imaginado aguardava.

Ela não precisava de remetente para saber exatamente quem enviara aquilo. A única pergunta era por que agora. Por quê? !

Um lindo apanhador de sonhos, claramente feito a mão a encarava de volta. As penas eram discretas, de tons de branco e cinza, levemente amarronzado. O círculo era feito e esculpido a mão, onde vários lobos corriam, um atrás do outro, de forma infinita. Ninguém precisaria dizer nada para que soubesse, ele havia esculpido.

Uma nota cai do envelope, que ela não havia notado. Trêmula, ela pega o pequeno pedaço de papel, com cuidado exacerbado.

'Oi, tudo bem? Como você está?

Eu confesso que comecei esse bilhete milhares de vezes, mas isso ainda foi o melhor que eu consegui. Espero que este presente te encontre bem. Eu me lembro de você ter falado que queria um desses, então tinha planos de fazer um para você. Desculpe por chegar tão tarde. Também me desculpo por não mandar notícias. A bem verdade, não sabia o que fazer ou te dizer. Ou o que você queria que eu fizesse, além de não querer desrespeitar a Bells. O que eu fiz foi o melhor? Talvez tenha sido idiota da minha parte, não sei mais dizer.

Bem, me desculpo novamente. Não sei o que você pensa de mim agora e talvez isso nem seja importante. Eu precisava fazer isso, me desculpe se te faz algum mal.

Também sei que demorei para fazer isso. O presente estava pronto desde o seu aniversário de dezoito anos e agora eu finalmente estava pronto para enviá-lo.

Não consigo desejar nada além de felicidade para você. Feliz aniversário Ness.’

O coração dela aperta e ela começa a chorar, abraçando a carta contra o corpo. Não estava esperando por isso. Na realidade, achava já estar totalmente curada de tudo aquilo, de tanto tempo que fazia que não acessava aquele espaço da sua mente. Histórias sem resolução se comprovavam uma mácula incurável em sua vida.

Depois disso, cerca de dois dias se passam, até que tivesse coragem de tomar qualquer atitude.

Já era sexta a tarde quando, agora com banho tomado e a cabeça zunindo de leve, decide que precisava ao menos de notícias. Por que vinha evitando aquilo por quase três anos? Covardia, medo do que poderia ouvir? Insegurança? Talvez até um conformismo pacato e temor de mudar e enfrentar as coisas? Um pouco de tudo, provavelmente… Mas estava cansada de ser covarde, finalmente percebia isso.

Vestida para uma festa da fraternidade de Diego, em que iria com os amigos, sabendo que por isso não poderia se demorar muito, coloca na cabeça que aquele era o momento.

Com a porta encostada, senta-se na escrivaninha e liga o laptop. Espera ele iniciar com impaciência, o indicador batendo constantemente na madeira, rosto tenso apoiado na mão livre.

Entrando no Skype, sem dar uma segunda oportunidade de pensar no que fazia, ouvindo o coração zumbir de nervoso no seu ouvido, clica o nome de Seth.

O ícone verde mostrava que ele estava online. Volta a ficar nervosa, o tempo em que a linha dizia discar. E então, ele toca até cair. E então de novo e de novo. Já era a quarta vez quando, irritada, manda uma mensagem.

'Me atende Seth, eu sei que você está online.’

A resposta é imediata.

'Calma Ness, agora não é uma boa hora.’

Ela bufa e reajeita o cabelo sobre o ombro. É quando ele liga de volta. Assim que a imagem conecta, sem nem cumprimenta-lo, ela começa.

—Por que você não me atendeu?

—Não é uma boa hora. - e ele parecia preocupado, relanceando a porta. Aquilo a preocupa e imediatamente, muda de tom.

—Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem? - ao ouvir o tom que ela usava, ele volta a sua atenção para ela, finalmente, realmente e sorri.

—Calma, não é nada. Só estamos tendo uma pequena festa em casa, só isso, então tem um monte de gente aqui. Meu pai me mata se descobre que estou no quarto, falando com você.

Nessie ri.

—Relaxa, não posso ficar muito mesmo, tenho uma festa para ir.

—Bem que eu vi mesmo que você estava toda arrumadona.

—É sexta feira afinal, não?

—Justo, justo. - agora, cara a cara com o amigo, percebe que não sabia exatamente como abordar o assunto e se pergunta se esse não seria o motivo de não terem falado sobre isso.

—E como vão os fundos para a faculdade?

—Ah, vão indo né? Estou juntando - e ela conseguia perceber que ele queria que ela chegasse ao ponto, mas ela ia se aquecendo.

Ao contrário de si, a família de Seth não tinha o dinheiro suficiente para mandá-lo para a faculdade, então, desde os quinze anos, Seth trabalhava, para juntar fundos.

Nessie sempre o admirara por isso.

—Ele está aí, não está? - e a voz dela não passava de um sussurro desejoso.

Seth a encara, desarmado.

—Nessie…

É quando alguém bate na porta. O tempo que o corpo de Seth leva para se virar na cadeira, rápido, a porta se abre e Jake passa por ela.

—Seth! - e ele usava um tom divertido. - seu pai… - mas sua sentença praticamente morre no meio, quando seus olhos se conectam a tela, se conectam aos dela. - está te-...Intimando… na cozinha…

Eles pareciam hipnotizados e Seth grunhe baixo, se amaldiçoando mentalmente pela cena. Jacob se recupera primeiro.

—Hey, como você está? - e a voz dele era suave, macia, quase íntima demais para uma conversa por telefone.

Ela inclina o rosto para o lado e sorri, de forma contida.

—Eu estou bem… e você?

—Eu também. Recebeu meu presente?

—Sim. É lindo. Obrigada.

Seth se levanta, determinado.

—Se isso vai acontecer, não quero estar no meio, obrigado. Só desliga a tela quando sair, Jake - e dá uma piscadela para Nessie, que ri da sua atitude.

Quando volta seu olhar, a atenção de Jake estava tão fixa nela, que chegava a ser doloroso. A porta se fecha atrás do Quileute.

—Eu gostei do seu cabelo. - ele comenta, de forma quase tímida, se sentando na cadeira deixada por Seth.

Ela o toca, quase inconscientemente. O cabelo agora chegava somente na altura dos ombros, menos pesado e mais liso. A franja curta que cortara já havia crescido e agora ela a usava de lado.

—Obrigada.

Um novo silêncio, onde ambos apenas se miravam.

—Então… - e ele limpa a garganta - esse é seu dormitório da faculdade?

—O meu quarto? Não, não. Agora estou dividindo um apartamento com uma amiga. Não estou mais no dormitório.

—Ah.

—E você? Como você está? - ela não tinha certeza se queria a resposta daquela pergunta, porque, acabava de perceber, queria que ele estivesse bem, que estivesse feliz, ao mesmo tempo que se ressentiria se ele respondesse assim, queria que ele sentisse sua falta. Como ela sentia, ainda.

Dessa vez é no quarto de Nessie que batem à porta, a cabeça de Bree logo surgindo de troféu, por uma fresta aberta da porta, no quarto.

—Ta pronta gata? Bora? - e ela sorria, boba.

—To sim, um instantinho e já estou lá.

A menina encosta a porta e a ruiva a ouve rindo, junto ao namorado no corredor. Não tinha nem cinco minutos.

—Você devia ir.

—É uma festa. Nós vamos dançar. - ele sorri, mas parecia triste, quase saudosista, remexendo as mãos.

—Parece divertido.

—É a ideia.

—Eu devia ir também. Larguei uma conversa no meio. Vão se perguntar onde eu estou se não voltar logo.

—Foi bom falar com você.

—Com você também. - e sorriem, embora houvesse um sentimento muito errado no coração de Nessie. Uma deslocada e dolorosa sensação de fim.

—E Nessie?

—Han? - ela já estava desligando a tela.

—Você está linda. Boa festa! - ela riu e revirou os olhos. A tela estava escura. O que ela estava esperando que ele dissesse?

—/-/-/-/-/-/-

Vê-lo a abalou mais do que imaginara e passou os próximos dias pensativa. Sobre quem era e o que queria para si mesma.

Aos poucos, algumas ideias começavam a tomar raiz.

Ocupada como estava, o ano passa rápido, voando quase e mesmo se estivesse torcendo para que não, as pausas de final de ano iam chegando. Ainda não sabia o que fazer sobre isso.

Nesse ano, não namora, querendo ter um tempo para si e para firmar suas ideias no lugar. Se reencontrava aos poucos, achando seu centro.

Alguns dias antes do recesso ainda estava indecisa, embora com tempo livre, pois saíra do seu emprego de design e sua orientadora, Ângela, tinha ido viajar, só voltando no recomeço do próximo ano letivo. Estava com dificuldades para visualizar seus possíveis destinos.

—Você não vai para casa no feriado?

Era com Jane que falava e, ao invés de responder, Nessie simplesmente negaceia com a cabeça, falhando em encontrar as palavras. Isso faz a menina franzir a expressão.

—Não quer passar conosco então? Nós vamos esquiar, a gente aqui em casa.

Agradecida, Nessie sorri.

—Parece uma boa ideia, obrigada - e trocam um sorriso cúmplice. Era incrível como tanto e tão pouco mudara entre elas.

É quando um toque na porta chama a atenção da menina. Sozinha em casa, se remexe na cadeira. Bree fora para sua casa, na Califórnia, há duas semanas atrás. Estava praticamente sozinha no Campus a essa altura.

Vagarosa, coloca uma pantufa quentinha nos pés e se espreguiça, indo em direção a porta.

Sem pensar, abre devagar. Não esperava o que encontra atrás dela.

—Mamãe? O que você está fazendo aqui?

 

 


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Notas finais do capítulo

Terminada: 22 de abril de 2017.

Postada: 03 de Novembro de 2019.

Música: Tiê - Mexeu Comigo

Olá pessoas fortes que ainda acreditam de coração no final dessa história :)
Peço, como sempre, desculpas pelos meus longos sumiços. Como comentei no capítulo passado, a história está pronta e só falta revisar e postar. O difícil é ter o tempo para isso. Perdi um pouco o costume de escrever e é difícil voltar, quando a gente perde, porque as obrigações nos puxam para todos os lados. Ainda assim, vou chegar lá, não se preocupem! Vocês verão o fim dessa história, podem ter certeza!

Como um adendo bem aleatório, até acho bom ter demorado, sabiam? Esse é meu capítulo favorito da história toda, ver a Nessie crescendo e se tornando outra pessoa, o tempo dela na faculdade. Quando escrevi às vezes achava irreal ela (talvez ele também :P ) não terem superado. Mas não penso mais assim, o que me ajuda também haha

Hoje em dia estou cercada de pessoas que não superaram relacionamentos, principalmente os primeiros amores, ou aqueles mal resolvidos. Então vejo que é algo bem comum e real. Até mesmo o meu boy só superou a primeira namorada dele um tempo atrás, depois que já estávamos juntos faz um tempinho. Perceber isso foi muito interessante e trouxe certo alívio a história.

Suss.



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