Contos De Gaveta escrita por Mamy Fortes


Capítulo 8
Um dia.


Notas iniciais do capítulo

Hey, esse conto aqui muita gente já leu. Mas nada impede de que vocês me contem novamente o que acharam. Tô mesmo precisando de opiniões. Ah, e esse conto é um presente pra Morghan.



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Um dia gélido. Melancólico. A cidade surgia com os primeiros raios do alvorecer enquanto eu pedalava, obstinada a chegar ao meu recanto antes que o sol tomasse seu lugar no céu da manhã. Londres era uma cidade linda ao amanhecer, mas era algo que eu não veria.

Não naquele dia. Eu só queria chegar a tempo de ver gotas de orvalho nas flores silvestres, sem ter que ver o sórdido clima urbano.

Eu precisava de paz. Precisava do meu lugar debaixo do pinheiro, do meu livro debaixo do braço, do meu fone de ouvido emitindo um rock pesado. Eu precisava de mim.

A colina surgia, por detrás das curvas da estrada, e eu podia avistar o pinheiro ao lado da humilde casa de janelinhas redondas. Desci da bicicleta, e segui o resto do caminho empurrando-a, para olhar para cada margarida, maria-sem-vergonha ou violeta pelo ladrilhado até a casa.

Finalmente eu chegara ao meu pinheiro. Sentei-me na grama, sem me preocupar com o orvalho, abri meu livro, e liguei meus fones com meu tão nostálgico rock. Mas minha alegria durou pouco. O dia melancólico se tornara depressivo. Pingos caiam por entre os galhos, molhando as páginas do meu livro, enquanto eu tentava, inutilmente, protegê-lo. Corri para dentro de casa, e para a janela mais próxima. Pelo menos eu veria tudo por entre o vidro.

Mas os pingos estavam tão incessantes, que eu não conseguia ver nada, em absoluto.

Entediada, resolvi deitar-me e ler. Depois de alguns minutos, as letras já saltavam da página e tomavam formas, enquanto minha imaginação voava, e eu finalmente era eu mesma.

Finalmente a saudade se esvaia, e só sobrava a mim. Mas de repente, ao toque da capainha, foi livro pra um lado, almofada pro outro... E eu? No chão, é claro. Só me restava atender a porcaria da porta, obviamente.

Educada como não sou, com o melhor sorriso no rosto, eu a abri. Era um garoto, com umas correspondências, que, meio distraído, perguntou:

–-Morghanna? Morghanna de Carvalho?

–- Sim, sou eu mesma. – Respondi-lhe, indiferente.

–- Bem, acho que isso é seu. Entregaram por engano na minha casa, ali em frente.

Só então eu notei a casa, do outro lado da suntuosa estradinha, que até então me parecera desimportante e desabitada. E notei também que nos meus instantes de leitura, eu tinha simplesmente me desligado do mundo, e mal percebera que a chuva cessara. Notei ainda que o menino estava a me olhar, com as correspondências estendidas, a espera da minha resposta. Apresei-me em responder:

–- Bem, muito obrigada. – Disse pegando as cartas, no intuito de poder voltar ao meu livro, mas ele, erguendo os olhos e me olhando de frente, me disse:

–- Essa camiseta laranja por um acaso não é do Acampamento Meio Sangue, ou é?

Pronto, ele pisara no meu calo. Eu estava morrendo de vontade de voltar pra lá.

Estava morta de saudades daquele lugar. E agora, estava curiosa para saber como é que ele reconhecera minha camiseta. Bem, o jeito era deixá-lo entrar...

–- É, é sim. Não gostaria de entrar? – Perguntei, e ele prontamente respondeu, já entrando:

–-Claro, claro.

Sentamo-nos, e eu logo o interroguei sobre o reconhecimento do uniforme, por assim dizer, do meu amado acampamento. Ele me contou que o reconhecia porque aquele também era o seu acampamento. Digamos que eu não fui a pessoa mais crente do mundo, mas não me culpe por isso. Afinal, quais as chances de que dois campistas gregos tivessem casas frente a frente em Londres? Eram quase nulas!

Mas resolvi dar uma chance, e logo conversávamos animadamente sobre os verões passados por lá. Eu tinha cinco, dois a mais que ele. Com esse, eu completaria seis verões, e ele quatro. Me perguntei sobre o por quê de ele não estar por lá.

Eu também não estava, é claro. Mas que eu tinha descoberto que minha mãe Olimpiana na verdade era Atena, e não Afrodite, como nós sempre achamos. E de quebra, surtei e resolvi vir pra Londres, o lugar onde eu passava minhas férias com meus pais adotivos antes de me descobrir semideusa.

Não, é claro que eu não disse isso a ele. Mas de algum modo, acho que ele sabia.

Então conclui estava na hora de abrir o jogo. Encostei-o na parede, apesar do pouco tempo de convivência. E ele disse, com as mãos para o alto:

–- Morghie, venho observando você no acampamento desde que eu entrei. Conheço seus hábitos. E quando você fugiu, e Quíron nos pediu pra que alguém viesse buscá-la, me candidatei. Porque talvez essa fosse minha única chance de falar com você.

Irritada, tanto pelo apelido ridículo, quanto pela farsa, sai para a cozinha da pequena casa. Depois de um tempo, que provavelmente ele julgou como suficiente para que eu estivesse mais calma, o garoto, Dennis, foi me encontrar.

–- Morghie... – Começou Dennis.

–- Não me chame assim. Eu não lhe dou o direito. E saia já daqui. – Interrompi-o e desatei a falar, mas ele me respondeu, sem se abalar:

–- Eu sairei. Quando você me ouvir.

Bufei, mas resolvi escutá-lo. Dennis me contou que Atena em pessoa aparecera no acampamento, e lhe pediu para que ele me entregasse uma carta. E foi o que ele veio fazer.

Pediu para que eu olhasse o que tinha em mãos, e eu comecei a ler.

“Filha... (Como é bom poder dizer isso!) Saiba que eu quis muito te assumir, mas você parecia tão feliz sendo “filha de Afrodite”, e ela parecia tão feliz sendo sua mãe. Bom, não importa, afinal. O que importa é que agora estamos oficialmente assumidas como mãe e filha, quero que saiba que a casa para onde você provavelmente fugiu é e sempre foi um presente meu. Uma pequena biblioteca, com janelinhas redondas, como você costumava desenhar. É, eu sempre prestei atenção em você. Espero que me perdoe. Amor, Atena.”

Digamos que saber que ela me observava, e ter provas disso me abalou um pouco, e eu cai no choro. Dennis me consolou. E é o que importa.

Muito tempo depois, mais ou menos no meu décimo oitavo verão, nos casamos no acampamento, depois de termos comprado à casa que ele disse ser dele no dia em que nos conhecemos. Ou no dia em que eu o conheci, para ser mais sincera. Reformamo-la, e deixamos que a casa que mamãe me deu ficasse como anexo, como meu recanto feliz. Nosso recanto, agora.

No meu quinquagésimo verão, eu engravidei. Gêmeas lindas, com benção de Afrodite, que apesar de não serem semideusas, podiam ver através da névoa.

E no meu sexagésimo verão, ou agora, como preferir, eu escrevi a tarde em que eu e meu marido nos conhecemos, depois que minhas filhas me pediram para dar a elas este ano, ao invés de mais um dos milhares de livros que eu lhes dou todos os anos, e que elas amam, uma carta. Elas pediram que eu escrevesse uma parte da minha vida. Uma parte da minha história que tivesse me marcado.

E é pra vocês, minhas queridas, que eu digo agora: Essa é, sem dúvida, a tarde mais memorável da minha vida. Foi a tarde em que eu descobri que a vovó me amava. Foi a tarde que eu descobri que o papai me amava. Foi a tarde em que, depois que Dennis foi embora, eu fiquei no sofá, imaginando como seria a minha vida, imaginando vocês, ao invés de fazer as malas. Foi a tarde em que eu voltei para o acampamento, e em que, certamente, minha vida começou.

E eu quero que saibam que não importa como, por que, e pra que, eu amo vocês mais que minha própria vida. E vou escrever partes memoráveis da minha história para vocês, até chegar à parte em que a minha própria história virou de vocês, e a de vocês se enlaçou na minha, para que daqui a alguns anos, sejam vocês escrevendo a história de vocês para me presentear, e não ao contrário.

Amor, Morghan. Não, pera. Amor, Morghie.


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Notas finais do capítulo

É, é grandinho. E não é original. Mas não os dá o direito de me deixar no vaco, certo? Beijoos