Luz Negra I - Oculta escrita por Beatriz Christie


Capítulo 22
Capítulo 22 - Um Amor de Inverno




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Peguei Finny no colo e sentei-me na cadeira onde ele estava, enquanto Enzo recostava-se no balcão de madeira da cozinha.
–- Por que ao invés de sentar nas cadeiras, você sempre se apoia em algo? - perguntei, distraída.
Era uma pergunta estranha, dada a tensidade do momento e de minutos antes. Enzo pareceu surpreso, mas respondeu-me.
–- Não sei. - ele encarava o diário. - Talvez ficar sentado nos deixe mais vulneráveis. Nunca pensou nisso? - Não, eu não havia pensando nisso. Eu que já tava tensa, comecei a olhar mais envolta. - Acalme-se e coma, seu dia será longo.
Sim, seria um dia longo. Com certeza meu pai não comprara aquele vestido para uma festa qualquer.
–- Isso não ajuda muito. - suspirei e apoei a mão no queixo. - Provavelmente, os melhores dentre os amigos de meu pai e meus familiares estarão lá.
–- E você os detesta. - Ele afirmou. Balancei a cabeça concordando. - Achei que a festa fosse sua. - ele prosseguiu encarando-me com uma sobrancelha erguida - Por que não deixa de ser reprimida e diz o que pensa pela primeira vez na vida?
–- Não sou reprimida! - endireitei-me na cadeira, reclinando as costas no encosto - E não vou comer sua comida, vai saber o que você colocou aqui. - olhei-o acusadoramente.
Ele sabia que eu havia escutado sobre eles estarem me drogando.
–- Eram só remédios para dormir, não lhe fizeram mal. Você estava surtando. - ergui as sobrancelhas, ele estava me chamando de louca?! - Psicologicamente falando.- ele prosseguiu. - E não dá pra colocar isso em panquecas!
–- Não me importa... Só leia logo, ou terá que me ver surtada de novo.
–- Se não comer, não lerei. - ele me disse. - Pare de ser teimosa!
–- Pra você querer tanto que eu coma deve ter algo aqui! - cruzei os braços. - Eu sempre acabo fazendo do seu jeito, já percebeu?
–- Não tem nada aí, Mellany. - Enzo puxou a cadeira que estava do outro lado da mesa, em frente á mim e sentou-se. Pela primeira vez reparei que ele estava com as vestes mais informais com as quais eu já o vira. Blusa simples branca de algodão, calça de moletom cinza e descalço. De vista, um homem muito comum e muito cansado. Percebi que, provavelmente, ele havia passado a noite acordado por minha causa. - Melhor agora? Vamos fazer do seu jeito. - Ele deu um sorriso forçado e irônico e abriu o diário novamente, começando a leitura. - 11 de março de 1994...– Senti um aperto na garganta, aquela era a mesma data da foto. - Você está bem? - Ele perguntou-me, desviando sua atenção.
–- Estou, pode continuar. – respondi.

"Eu sempre soube que esse dia chegaria, mas não imaginei que fosse ser um dia infeliz. As pessoas correm de um lado para o outro, pegando coisas pra mim e tento parecer tão alegre quanto elas. Estou sendo convincente? Acho que não. Enquanto elas brindam e trazem presentes, eu estou aqui escrevendo no livro que ele me deu. Meu Ricardo. Oh, santa! Quantas saudades... Em meu peito há um buraco, profundo e frio. Não imaginei que algo tão simples quanto este punhado de folhas de papel reunidas e cobertas por uma capa de couro me seriam tão úteis neste momento de solidão, onde todos parecem alheios a minha tristeza mas, como sempre, ele sabia. Todas estas pessoas que falam do meu futuro com tantas certezas, jamais me conheceriam tão bem quanto ele. Um comum, a desgraça, como meu pai o intitulara. Papai jamais entenderia, ele nunca provou do amor. Este sabor que desce pela sua garganta e mexe com seu estômago, que enfraquece suas pernas e cega seus olhos. Ele disse-me que estava cega, respondi-lhe que estava embriagada pela dose mais forte do amor.”

Por que minha mãe estava tão infeliz e o que fazia na Rússia? Enzo virou a página, prosseguindo.

–- Não tem data... – ele disse. – Estas páginas estão deterioradas, diferente das anteriores.
Olhei-o ansiosa, ele entendeu e prosseguiu com esforço.

“ A grã mestra descobriu meu segredo, o segredo que estava guardado entre mim e Deb agora se tornou nossa sentença. Mas, com a ajuda de minha amada irmã Vallery, estou partindo. Partindo de encontro á ele, meu grande amor. Para, enfim, cuidarmos juntos de nosso adorado bebê que carrego em meu ventre. Esta nevasca não nos impedirá, nem o mais valente dos cavaleiros de Tver teria a força de nosso laço. O encontrarei, sei disso. Sei disso. ”

Imaginei minha mãe, aos 18 anos grávida e sozinha, enfrentando uma nevasca ao lado da melhor amiga para encontrar seu amor. Um amor proibido. Mas, que irmã era essa? “Vallery” Minha mãe jamais falara sobre irmãos e esse pai do qual ela escrevera não me lembrava em nada meu doce avô.
–- As coisas estão um pouco fora de ordem. Imagino que o texto a seguir tenha ocorrido antes da nevasca. – Enzo avisou enquanto folheava o diário.

“ Aqui, onde todos os seus passos estão programados antes de seu nascimento, deixar de ir á aula de equitação, esgrima ou meditação já é um ultraje. Sair dos limites seria inimaginável para as outras garotas e elas não ousariam fazer algo assim, ainda mais se fossem filhas do Mestre Sacerdotal. Mas, apesar de eu ser, meu espírito de raposa não se continha naquela vida cinza e fechada. Eu precisava de ar, de cor, de vida. Não que nossas terras não fossem ricas, mas, o desconhecido sempre será mais atraente.
Certo dia eu e Deb saímos novamente dos limites das terras e fomos caminhar ao longo do Volga*, era uma de nossas aventuras. Ainda me lembro bem, inverno do ano passado, uma tarde tão fria quanto esta. Caminhávamos pelo rio, cobertas por nossas roupas grossas e o lenço na cabeça para privar que um comum visse nossos rostos. Não havia nada de incomum em nossa aparência, mas os comuns eram considerados inferiores demais para olhar-nos nos olhos. E foi exatamente isso que ele fez. Assim que nossos olhares se cruzaram, me senti extasiada. Um sentimento novo. Ele sorriu pra mim, um sorriso infantil e o mais gentil que eu recebera em anos. Senti minhas bochechas quentes, distraída pela presença daquele belo estranho de cabelos dourados e deixei meu lenço voar, partindo de encontro ao rio. Ele segurava uma câmera e desviou seu foco da paisagem para mirá-la para mim. Assustada, virei o rosto e o cobri com a mão. Ele deu passos rápidos até mim. “Me desculpe” ele disse, num russo enrolado e primitivo “Foi involuntário”. Acho que foi isso que me fez amá-lo. Ele fazia tudo que não nos era permitido, era livre. Meu Ricardo era tudo que eu desejava ser."

Apesar da reprovação e dos avisos de Deb, nos encontramos com ele repetidamente, sempre fugindo das aulas de meditação. Durante as conversas, ele contou-me que estava morando perto do rio há pouco tempo e que ficaria mais cinco meses e surpeendeu-se ao saber que eu falava sua língua. Não lhe falei sobre minha casta, os oito idiomas atuais e arcaicos que eu aprendera a vida toda, ou sobre como a vida dele perto da minha parecia um sonho, ou ao menos era o que eu achava. Apenas lhe disse que meu pai era um homem com sérias expectativas sobre mim e ele me disse que a família dele também era assim. Então, enfim, havia algo em comum entre nossas vidas tão distintas."
Cinco meses depois ele teria de partir, levando com ele minha alegria e deixando comigo um fruto de nossa curta história de inverno.”

A essa altura eu já estava muito emocionada e Enzo parou para dar-me um guardanapo.
–- Sua mãe fez algo muito arriscado...- ele estava pensativo. – Talvez mais do que ela pudesse imaginar.
Balancei a cabeça, ainda secando minhas lágrimas. Finny que havia saído de meu colo, agora voltara e estava esfregando seu pelo em minha perna.
–- A forma como me recordo dela, tão livre aqui em casa ou lá fora cuidando das plantas. Pintando a casa sozinha... Nunca... Nunca imaginaria que ela passou por essas coisas. Ela era realmente infeliz nesse lugar. – Respirei fundo. – Desculpe, pode continuar.
–- Melhor não, sei pai chegou. – Enzo fechou o diário.
–- Como você... – Neste momento, a campainha tocou. Olhei-o perplexa, como ele fazia isso? – Preciso pegar minha mochila lá em cima. Meu pai não vai achar estranho você estar aqui? – perguntei.
–- Vá, não se preocupe. Estarei por perto. – ele me disse, olhando-me diretamente com seus olhos verde musgo.
Saí da mesa e abri a porta para meu pai.
–- Oi, pai. Espere aí, só vou pegar a minha mochila.
–- Onde está sua tia? – ele perguntou, dando-me um abraço de cumprimento.
–- Ela já foi. Sabe, pra se preparar pra festa. – Tentei parecer animada. – Volto já.
Eu esperava que meu pai ficasse na porta aguardando-me, mas ele seguiu para dentro da casa. “Merda!”, se ele visse Enzo, a situação ficaria mais do que estranha.
–- Aqui não mudou nada, não é mesmo? – ele andou pela sala, então foi em direção á cozinha.
–- Não! – ele virou-se para mim aturdido. – Não vá ai por que eu fiz uma bagunça, já vou recolher. O senhor pode esperar na sala, o que acha? – puxei- o pela manga.
–- Não. Tudo bem, quero dar uma olhada, tenho boas lembranças daqui.
Ele prosseguiu seu caminho, segui-o nervosa. Mas, para minha surpresa, a cadeira onde Enzo sentara estava vazia. Até mesmo Finny havia desaparecido, só a caixa de minha mãe estava na mesa. Aliviada, subi para o quarto, onde minha mochila estava, imaginei também que Enzo estaria lá, mas não estava. Enquanto guardava minhas coisas, olhei novamente para aquela bíblia ao lado da cama. Nela havia um fita dourada que marcava uma página. Abri-a, salmos estavam grifados.

“Jó 7:8 Os olhos dos que agora me vêem não me verão mais; os teus olhos estarão sobre mim, porém não serei mais. 9 Assim como a nuvem se desfaz e passa, assim aquele que desce à sepultura (Sheol - 3) nunca tornará a subir. 10 Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu lugar jamais o conhecerá."

Um arrepio correu em minha espinha, senti uma presença atrás de mim e virei-me assustada.
–- Vamos? – ainda bem, era meu pai.

Assenti e saímos da casa. Tranquei-a e joguei a chave para dentro pela janela. Sentada no carro, olhei-a mais uma vez e ao lado da cortina semi aberta pudi ver Enzo na janela de meu sótão, olhando para mim antes que meu pai acelerasse.




*Volga é um rio que cruza a cidade de Tver na Rússia.


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Notas finais do capítulo

Amor + Tenso definem.
Muita matéria, muito acordar cedo, muita saudade das minhas férias :
Beijos ♥