Luz Negra I - Oculta escrita por Beatriz Christie


Capítulo 21
Capítulo 21 - Memórias De Uma Fugitiva




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Enquanto mil questões voavam em minha mente, tia Deborah apareceu no batente da porta.
–- Querida, você acordou! - ela veio em minha direção, para me abraçar.
–- Deixarei vocês a sós. - Enzo levantou-se. Antes de sair, ele me lançou um olhar profundo, como da primeira vez que nos vimos. – Farei algo pra você comer.
–- Não estou com fome. – Eu disse. Ambos ficaram em silêncio, de modo que também permaneci assim, encarando-os até que Enzo saísse do quarto. Como ele podia agir tão naturalmente depois de tudo aquilo? Então perguntei a mim mesma, será que ele havia contado á ela?

Quando tia Deborah flagrou-me fitando-a, ela encarou-me sorridente. Com um sorriso grande até demais, e eu conhecendo-a como a conheço, soube que não era natural. Virei-me para ela, mas quando abri a boca para falar, ela interrompeu-me.
–- Está muito calor, não é? – perguntou, enquanto levava uma mão á nuca. Percebi que ela parecia um tanto tensa. - Vista-se, encontrei esse vestido. – ela foi até o armário e pegou um vestido leve, simples e antigo, que eu não havia levado comigo para a nova casa. - Você, sempre distraída! Já liguei para o seu pai, ele acha que o “novo dono” nos permitiu passar uma noite aqui para nos despedirmos da casa. Em breve estará aqui pare te buscar. - ela disse, abrindo completamente a janela e fazendo todo o sol que estava lá fora inundar o quarto com sua luz. -- Nem acredito que minha garotinha que vivia por aí subindo em árvores em busca das flores mais bonitas irá fazer 18 anos! - ela aproximou-se de mim. - Você está uma mulher agora. - com um sorriso orgulhoso, ela passou a mão pelo meu rosto.
–- Tia Deborah...Pare de agir assim. – pedi, segurando sua mão gentilemente. Ela estava agindo como a minha segunda mãe, como sempre fora. Mas, algo no ambiente denunciava a falsa atmosfera que estavam tentando criar.
–- Vista-se e venha tomar café. – Ela ordenou, tentando dar um sorriso apaziguador, mas deixando em seu lugar um olhar angustiado.

Ela saíra, deixando-me sozinha com o vestido azul escuro. O vesti apressadamente e fui em direção á escada. Após descer alguns degraus, ouvi murmúrios.
"Você tem de contar á ela!", Enzo sussurrou. "Não podemos mais continuar drogando-a. Ela acha que aquilo no hospital foi um sonho, mas com a aproximação deles, as coisas estão ficando cada vez mais difíceis! Ela está desconfiada, vocês não poderão mais escondê-la de si mesma..."
Me drogando?! Esconder-me de mim mesma? Como?
"Não. Liane queria que ela tivesse uma vida comum, não temos o direito de acabar com isso!", Tia Deborah respondeu decidida.
"O único problema é que ela não é uma pessoa comum! Todas essas mentiras estão a colocando em risco, é graças a tudo isso que ela quase foi pega hoje, novamente!", ele disse, aumentando o tom de voz.
Me encolhi no junto ao corrimão. O que queriam dizer com eu não ser uma pessoa comum? Meu coração apertou ao falarem o nome de minha mãe. Ela.. Ela mentiria para mim?
–- Eu entendo seu desespero para que ela saiba de tudo, mas não é algo tão simples de se lidar... Ela é só... Ela é só uma garota. Minha garotinha corajosa e timida... - a frase de Tia Deborah foi interrompida e ouvi um choro sufocado. - Eu imploro novamente, imploro que a proteja!
–- Esse pedido é desnecessário... - Enzo encarou a janela, ficando de costas para Deborah. - Você sabe muito bem.
Levantei-me para que pudessem ver que eu estava ali. Tia Deborah encarou-me assustada, então saiu pela porta da frente, rumo ao nosso jardim. Enzo prosseguiu de costas, encarando a janela enquanto eu passava por trás dele, indo atrás de Deborah.
–- Mentir e fugir não adianta mais! – eu gritei, enquanto passava pela porta também. Ela parou de andar, mas se manteve de costas para mim. – Por que a senhora mentiu pra mim?
–- Eu... – Tia Deborah passou a mão pelos cabelo, um gesto de pertubação. – Eu não sei do que você está falando, filha. - Ela voltou a andar, rumo ao seu carro. Segurei-a pela mão onde segurava suas chaves.
–- A senhora pode fugir como eu fiz ontem quando me perseguiram, mas sabe tão bem quanto eu que isso não funciona, eu vi um deles na sua casa ontem. – ela arregalou seus olhos. - Eles virão tia, não importa o que façamos. -
–- Estou fazendo tudo que posso mas, perto deles não sou nada. – Ela respondeu, lágrimas brotavam de seus olhos.
–- Perto deles? Quem? – perguntei. Com minha outra mão, segurei sua mão trêmula. – Tia Deborah... Por favor!
–- Sua família. – ela disse, por fim.

–- A família de meu pai? – perguntei, aturdida. A família de meu pai sempre fora motivo de piada para tia Deborah que troçava da mania de grandeza dos Vidalgo. Nunca imaginei que eles poderiam lhe causar tanto medo.
–- A família de seu pai?! – ela disse com escárnio. – Não. Eles não são nada perto deles. Estou falando dos... – ela olhou envolta de nós, como se alguém pudesse nos ouvir, então sussurrou – Os Lake.
Os Lake... A família de minha mãe. A família que eu jamais conhecera pois, segundo minha mãe, após a morte de meu avô há 4 anos atrás, sem irmãos, ou tios ela se tornara uma órfã
–- Mas... O vovô sempre foi tão bom para nós, e ela não tem mais parentes.
–- Seu avô... Foi graças a ele que tudo isso começou! – ela disse, com pesar. - Sua avó o conheceu e desonrou a família, para se envolver com um comum. Então, anos depois, sua mãe fez a mesma coisa.
–- Um comum? – perguntei. Eu respirava rapidamente, como se estivesse em uma maratona, tentando acompanhar as informações.
–- Pessoas comuns. Pessoa diferentes de nós. Sua mãe e sua avó fizeram algo que um de nós jamais pensara em fazer. – As palavras saíam rápidas de tia Deborah, como tiros sendo infincádos em meu coração e mente. - Elas renegaram sua própria essência por amor, pelo desejo de viver uma vida comum. – ela aproximou-se de mim, olhando-me nos olhos. – Mas, você pode fugir de tudo, menos de si mesma.
–- A senhora sabe que eu não estou entendendo muita coisa, não é?
Tia Deborah percebeu minha angústia e me abraçou.
–- Não importa o que aconteça, saiba que ela fez tudo, assim como eu, para proteger-la.
Obviamente ela se referia á minha mãe. Lágrimas brotaram em meus olhos.
–- Eu senti tanto medo. – confessei. – Aquelas sombras que me perseguiram ontem, elas são Carregadores, não são?
–- Sim, são. – ela passou a mão em meus cabelos – Eles sobrevivem de medo e sofrimento. Se alimentam de almas humanas perdidas no desespero. – Senti um arrepio em minha espinha. – Mas você é mais forte do que tudo isso e é por isso que estão atrás de você.
–- Não tenho tanta certeza disso. Eu sou só... Sou só eu. A alguns anos atrás meus maiores problemas eram tirar notas boas em física, ou ir bem nos jogos de vôlei... Mas, isso tudo. Eu não consigo... – percebi que estava me desesperando.
–- Pare! Está vendo, é isso que eles querem. Que você se sinta assim, perdida e fraca. Que sofra!
–- Mas é assim que eu me sinto! – falei mais alto. Como ela poderia esperar que eu enfrentasse aquelas coisas?! – E não é assim que a senhora mesma se sente?! Vejo o medo na sua voz. Senti isso quando estávamos no hospital.
Tia Deborah desviou o olhar. Eu havia a deixado sem saídas. Ela soltou minhas mãos e andou até seu carro. Imaginei que ela fosse partir de vez, mas não. Ela pegou uma caixa, que estava no banco de trás, aproximou-se de mim e entregou-me uma caixa pequena e quadrada.
–- Eu deveria lhe entregar isso em último caso. Imagino que esta seja a hora.
Eles tentarão se aproximar de você, tome cuidado com estranhos. Você teve sorte até agora, mas evite ficar sozinha”. Essas foram as últimas palavras de tia Deborah antes de despedir-se de mim dizendo que me amava, entrar em seu carro e partir para algum lugar. Um lugar do qual ela disse não poder revelar onde era.

Com a misteriosa caixa em mãos, entrei para a casa novamente. Ajoelhei-me no nosso velho piso de madeira e coloquei a caixa em minha frente. Era uma caixa marrom com flores pintas em todo seu exterior, provavelmente pintada por ela. Abri-a e dei de cara com uma foto de minha mãe. Atrás da foto, datada de “11/03/94”, era o aniversário de 18 anos de minha mãe. Ela era tão bonita, apesar de eu agora e ela na foto termos a mesma idade, perto dela, eu parecia uma criança desajeitada. Deixei a foto de lado e dentro da caixa havia um livro, virando- o de frente, descobri então que era na verdade um diário. Sua tranca estava travada, vasculhando mais um pouco, encontrei a minúscula chave. Abri-o ansiosa, mas para minha surpresa, apesar daquela ser a letra de minha mãe, tudo estava em outra língua.
–- É russo. – Enzo falou, atrás de mim. Eu mal havia percebido que ele estava tão próximo. – Posso ler pra você, se quiser.
Afastei-me dele e peguei minha caixa nos braços. Lembrando-me do que tia Deborah havia dito, qualquer um poderia ser o inimigo. Ele olhava-me com seus olhos verdes firmemente, como um soldado. Aquilo deveria dizer que eu poderia confiar nele?
–- E você, o que é? -perguntei, diretamente.
Minha tia se referia ás pessoas normais como "Comuns", e isso definitivamente ele não era.
– Se eu fosse feri-la, já teria o feito.- ele respondeu-me.
Ele parecia seguro como sempre e suas palavras eram destemidas e sinceras. Enzo era muito, muito mais do que um professor sedutor de culinária, que era como as garotas de Roseburg o viam. Ele me salvara talvez mais vezes do que eu poderia saber, e se colocara em risco para isso.
–- Por que está me ajudando? - perguntei, as sobrancelhas erguidas.
–- Por algum motivo, eu não consigo... Não quero que você morra, nem que sofra... - ele apertou os olhos. - Seu choro me perturba! Algo aqui - ele colocou a mão no estômago - Acontece, quando eu sinto que pode acontecer algo com você.
Ficamos um tempo nos encarando por segundos, talvez até minutos, até que, com relutância, entreguei o diário á ele. Enzo ofereceu-me sua mão, e ajudou-me a levantar do chão. Seguimos rumo á cozinha que estava com a mesa posta. Vapor saía do chá quente e das panquecas de amora, enquanto Finny dormia tranquilamente em uma das cadeiras.



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Notas finais do capítulo

Tá chovendo tanto aqui na minha cidade quanto nos últimos cap :s