Dezembro começou com uma névoa cinza. Era possível ver a fumaça das fábricas e o branco dos campos, o que quase lembrou Peeta de Nova York. Exceto que eram bem menos fábricas e o branco não era neve. A temperatura também era bem amena comparada com o frio do norte.

Peeta levou um tempo, mas conseguiu se acostumar com o sotaque espanhol dos californianos, as pessoas que costumavam chamá-lo de señor, e madames que passavam de nariz empinado olhando para as índias e as negras como se fossem muito superiores.

Katniss, durante um de seus estudos em conjunto com Peeta, fez uma bela imitação delas. “Não deixe se impressionar por esse ar de superioridade. Aqui em São Francisco ninguém tem sangue azul. Essas madames são as mesmas que mendigavam por um prato de comida ou ganhavam a vida em Cabarés. Não passam de caça fortunas. É o que todo mundo faz aqui. Procura ouro”

Katniss já estava morando com ele há uma semana. Os dois trabalhavam juntos em traduções, artigos que seriam publicados em jornais e montando as aulas de Francês que Peeta daria no pequeno Liceu Saint Patrick.

Durante o entardecer, os dois se sentavam na mesinha do escritório de Peeta e analisavam mapas. Estados recém-adquiridos, aqueles que eram a favor da mão de obra escravagista, aquelas que eram leais a União, e aqueles como a Califórnia que pareciam viver em um mundo a parte. O que era verdade, já que o estado nada mais era do que uma antiga colônia espanhola.

Haymitch insistira que todos eles teriam que ter uma espécie de reunião sobre a guerra que se aproximava. Ele, Tresh, Rue, Katniss e Peeta se reuniram na pequena sala da casa de Peeta durante um domingo particularmente chuvoso.

–Então, agora vocês são um casal?- Perguntou Haymitch estreitando os olhos assim que viu Katniss e Peeta.

Peeta se sentia constrangido pelo modo que o homem o olhava. Era como se ele estivesse querendo proteger Katniss de um pretendente mal intencionado, o que Peeta achava muito engraçado. Exceto quando Haymitch o ficava encarando de uma forma que deixava claro que ele sabia os segredos mais profundos de Peeta.

–Haymitch você sabe que não somos um casal. Mas sim, a partir de agora, para o resto de São Francisco, Katniss é minha noiva. Não preciso pedir que nos ajudem a manter a farsa não é mesmo?

– Legal. Como novo padrinho oficial eu devo dizer: Você tem sorte Peeta!- Disse Tresh fazendo uma mesura exagerada em direção a Katniss.

Katniss começou a rir constrangida. Peeta ficou vermelho e tentou evitar o máximo o olhar intenso de Haymitch.

–Tresh!- Disse Peeta.

–Muito bem, Ótimo! Estamos livres da bruxa da sua mãe Katniss. Desculpe, mas é o que ela é- diz Haymitch insensivelmente, ao que Katniss apenas dá de ombros- Mas, infelizmente, eu temo que ainda tenhamos que enfrentar uma guerra. Mais uma.

Peeta não pode deixar de perceber o jeito amargo que ele falava sobre guerra. Peeta sabia que ele havia atravessado uma. Sabia que Haymitch, mais do que ninguém, entendia tudo o que ela significava. Perdas, mortes, fome, crianças sem futuro. Um jogo cruel do qual ninguém saia vencedor.

–Haymitch, você disse que tinha novidades. Sabemos que a Carolina do Norte está tentando convencer os outros estados a se unirem a ela contra a União. O que mais pode nos contar?- Perguntou Katniss com sua praticidade costumeira.

– Aquele Jefferson Davis acaba de ser nomeado para ser presidente dos Estados confederados da América. Eu digo a vocês, se mais estados se aliarem a Carolina do Norte, será um longo inverno e uma primavera mais longa ainda.

–Haymitch, você acha que ele irão fazer isso? Acha que esse Jefferson irá conseguir algum apoio?

– Para falar a verdade Katniss, acho sim. Os aristocratas do sul não vão ceder assim seus privilégios. Eles possuem toda uma vida amparada na escravidão. Além disso, eles também sofreram com guerras contra os nativos.

– Haymitch tem razão- diz Tresh- Temos que estar preparados.

– Principalmente vocês- diz Haymitch se dirigindo a Rue e Tresh- Não digo isso apenas porque vocês serão os primeiros a serem chamados para lutar. Vocês correm perigo, sabem disso, não sabem? Ser negro a partir de agora vai ser muito difícil.

– Como se já não fosse- diz Rue

–Eu sei garota, mas estou avisando. A partir de agora, vocês serão culpados por todas as perdas do sul. Serão o alvo principal do ódio de qualquer aristocrata, mais do que já costumavam ser. Vocês sabem muito bem que as gangues estarão de olho em vocês não é?

–Nós sabemos nos cuidar Haymitch.

–Sei é por isso que você não tem onde morar não é?

– Haymitch! Você disse que não contaria a ninguém!

–Rue, o que aconteceu?- Perguntou Tresh preocupado com a irmã

Rue lançou um olhar apavorado para Haymitch. Peeta sentiu de repente a tensão no lugar e viu o quanto a pequena amiga de Katniss estava apavorada.

– Haymitch- diz ela numa vozinha fina.

–Rue, nos conte o que aconteceu. Você sabe que podemos ajudar, mesmo que eu mesma não saiba como me ajudar- Katniss disse encorajando a amiga.

–Eu sai de casa. Eu não...

–Acontece que o marido de Rue chegou mais uma vez bêbado e bateu nela. Rue revidou e ele acabou expulsando a garota de casa. Simples, assim.

–Eu decidi sair de casa Haymitch. Eu prefiro ficar na sarjeta a ter que conviver com ele, está bem?

–Eu não acredito! Vou matar aquele...

–Tresh não seja estúpido!- diz Katniss.

– Tresh se acalme! Rue você pode ficar aqui. A casa é pequena. Mas temos mais um quarto nos fundos. Ele fica ao lado do de Tresh, assim você pode ficar perto do seu irmão.

–Peeta é sério?

–Claro! Vai ser bom ter mais alguém com a gente.

–Eu posso cozinhar, arrumar a casa. Sei que vocês ficam o tempo todo estudando e nem se dão conta do quanto a casa está suja.

Katniss e Peeta se olham culpados.

– Bom, isso ajudaria, não vamos negar. Mas a verdade é que não precisa se preocupar em cozinhar. Eu mesmo gosto de fazer isso.

Rue dá de ombros.

–Também posso lhe dar umas aulas de tiro e alguma noção sobre plantas comestíveis, venenos, essas coisas. Sinceramente eu sei tudo sobre isso.

–É verdade- Diz Katniss sorrindo- Isso seria muito bom.

Haymitch revira os olhos.

–Já percebi que reuni os jovens mais problemáticos de São Francisco- diz Haymitch olhando para os garotos- Eu espero realmente que vocês saibam o que estão fazendo.

–Não!- disseram os quatro juntos. Sem saber o porquê, eles começaram a rir.

Peeta podia jurar que viu a sombra de um sorriso em Haymitch.

–Ótimo Peeta. Se você quer transformar sua casa numa pensão para todos que não possuem um lar, ou para abolicionistas, o problema é seu- Diz Haymitch mal humorado.

Peeta riu com gosto.

–Talvez seja exatamente o que eu esteja pensando em fazer capitão!

Haymitch solta um suspiro resignado. E eles passaram o resto do dia conversando e fazendo planos. Peeta fez um belo ganso assado no almoço do qual todos se sentiram felizes em provar. O único momento tenso foi quando Haymitch descobriu que não havia bebidas alcoólicas na casa.

–Droga de revolucionários! Sem bebidas!

Ao entardecer Haymitch acabou dormindo no sofá e Rue e Tresh foram passear pelo jardim. Peeta e Katniss ficaram na varanda da casa, observando os dois felizes. Katniss lia um livro que Peeta não conhecia. Ele logo descobriu se tratar de uma das obras de Voltaire. O professor descobrira que Katniss tinha uma paixão pelos escritores franceses e iluministas.

–Foi legal o que você fez por Rue- disse Katniss deixando preguiçosamente o livro de lado.

– Eu não sabia nada sobre o marido de Rue- diz Peeta pensativo- Quando ela se casou?

Katniss fez uma careta. Sem querer, Peeta percebeu, ele entrara em um assunto espinhoso.

–Bom, Rue casou aos 14 anos. Ela não estava apaixonada, como você pode imaginar. A mãe dela era uma escrava liberta. O pai dela morreu assim que ela nasceu. Lisbeth, sua mãe, não tinha como alimentar os dois filhos. Ela acabou casando Rue com um mexicano que não precisava de uma mulher, mas de uma empregada.

–Meu deus isso é... Horrível.

Katniss riu amargamente.

–Peeta, isso é o que acontece a todas as mulheres. Rue não ficou infeliz com o casamento. Pelo contrário. Era uma forma de alimentar sua família. Ela só se arrependeu quando ele começou a machucá-la.

–Quando foi isso?- Perguntou Peeta chocado

Katniss o olhou intensamente

– Dois dias depois do casamento. Ela ficou desacordada por dois dias. Não dá para perceber, mas o braço dela possui uma pequena deformidade por causa das pancadas.

Peeta sentiu seu estômago embrulhar.

–Escravidão, violência, fome, guerra. Ás vezes eu me pergunto, por que diabos viemos ao mundo apenas para destruí-lo- diz Peeta olhando para os dois amigos que corriam em volta do seu jardim.

–Eu me faço a mesma pergunta-diz Katniss pensativa.

Peeta observou Katniss tremer ligeiramente com o frio do entardecer. Sem pensar, ele tirou a casaca que estava vestindo e colocou sobre o corpo frágil da amiga. Katniss sorriu para ele e pegou sua mão.

–Você devolveu a liberdade para nós duas Peeta- disse Katniss num sussurro- Nunca poderemos lhe pagar.

– Eu não preciso que vocês paguem- disse Peeta olhando intensamente os olhos cinzas de Katniss.

De repente eles começaram a ouvir Rue cantando uma canção. Katniss se debruçou sobre a varanda para ouvir melhor amiga cantando. Peeta a seguiu e os dois ficaram ali, ouvindo a voz doce de Rue. Sem saber por que, muito próximos um do outro.

“Keep breathing

Until the water wash all the sins

Keep breathing along the river

I see the freedom coming soon

Keep breathing sister

I know, the freedom is coming soon

Keep breathing ,Until they can't hear you

I cry every night

waiting for the north star

Keep breathing sister,

i Know, i can see, It’ll shine

Keep breathing sister

I know,  the freedom is coming soon

Keep breathing , Until they can't hear you

Your body is bleeding

Your soul is broken

but i know sister,I can see

the freedom in your eyes

Keep breathing sister

I know, the freedom is coming soon

Keep breathing, Until they can't hear you”