Destino escrita por Eve


Capítulo 45
Capítulo Quarenta e Cinco


Notas iniciais do capítulo

Espero que quatro mil palavras sejam o suficiente para acalmar os coraçõezinhos de vocês por enquanto ♥
(Não vou continuar me desculpando pela lerdeza porque acho que já enjoou, né?)



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XLV

 

Atena demorou um segundo a mais do que de costume para compreender perfeitamente o que Ulisses estava pedindo. Olhou dele para Poseidon e viu que os dois se encaravam com sorrisos ferozes e mal contidos; ela os mataria ali mesmo se não tivesse ao seu redor um quarto das famílias nobres do país como testemunhas.

— Um duelo? - Foi ela quem quebrou o silêncio, tentando manter a expressão tão cordial quanto podia. - Qual a necessidade disso?

— É um antigo costume o campeão de um torneio desafiar seu senhor, milady. Essa é considerada uma das maiores honras para um cavaleiro. - Ulisses esclareceu, ainda ajoelhado. Atena sabia melhor do que pensar que os motivos para aquele desafio eram tão nobres.

— De fato. - Poseidon concordou, e ela nem precisava olhar em sua direção para saber que ele concordaria com o pedido de Ulisses. Aquela era a desculpa que os dois precisavam para levar a cabo a rivalidade ridícula que cultivavam há meses.

Ela fechou os olhos por alguns segundos e conformou-se de que não impediria o que estava prestes a acontecer.

— Não com uma justa. - Ela declarou, e seu tom não era de quem pedia. As justas eram um esporte terrivelmente perigoso e no torneio daquela tarde apenas por pura sorte nenhuma tragédia havia acontecido; mesmo assim, vários cavaleiros haviam sido retirados da arena com ferimentos preocupantes.

— Podemos usar lâminas. - Ulisses disse. - Sem fio, é claro. Detestaria derramar o nobre sangue de Lorde Valence.

A provocação estava mal escondida na ironia da frase, e Poseidon sorriu como se duvidasse que o outro homem sequer fosse capaz de brandir uma espada em sua direção. Atena soltou um suspiro resignado e sentou-se novamente na cadeira de espaldar reto que havia ocupado pelas últimas horas. Poseidon convocou um escudeiro para vesti-lo em sua armadura e Ulisses afastou-se para se preparar também. Os dois escolheram suas armas e tomaram posições no centro da arena; Atena já não respirava direito quando o arauto deu o sinal que autorizava o início da luta.

Nenhum deles usava elmo, provavelmente para ampliar o campo de visão, e como empunhavam espadas sem corte, a maior parte da armadura tradicional perdia sua utilidade e por isso vestiam versões reduzidas do equipamento. Os dois testaram o peso das armas em ambas as mãos e o terreno à sua volta antes de iniciarem o combate de fato. Poseidon foi o primeiro a investir e Ulisses desviou seu golpe inicial com facilidade, embora tivesse perdido um pouco da vantagem territorial no processo. Poseidon não deu tempo para que ele se recuperasse e investiu novamente, várias vezes em sequência. Ulisses conseguiu bloquear com sucesso todos os golpes e até contra-atacar algumas vezes, e depois de alguns momentos Atena percebeu a estratégia do marido: estava por enquanto apenas testando seus limites, cansando Ulisses e alimentando um falso senso de segurança no cavaleiro. Enquanto o homem mais novo pensasse ser capaz de defender-se plenamente das investidas do outro, seria mais confiante do que podia e talvez cometesse erros imprudentes na tentativa de superar o oponente.

Dito e feito. Após manejar sua espada contra Poseidon três vezes seguidas quase que num só movimento, Ulisses abriu demais sua guarda ao tentar um golpe mais ousado, e Poseidon - que havia cuidadosamente cedido cada uma daquelas pequenas vitórias a ele - aproveitou a oportunidade para com um movimento poderoso bloquear a investida da espada adversária. As armas produziram um som horrível quando suas lâminas foram arrastadas juntas; por um momento os dois permaneceram com elas cruzadas entre si, impossibilitados de se moverem. Mas enquanto Ulisses havia se provado mais rápido e ardiloso, Poseidon era inegavelmente mais forte, e surpreendeu o oponente ao não tentar livrar sua lâmina, erguendo o cotovelo rapidamente em vez disso e conduzindo o punho da espada ao rosto do italiano com mira e força insuperáveis.

Ulisses perdeu seu equilíbrio ao ser atingido em cheio na testa completamente desprotegida e caiu parcialmente sentado sobre a terra batida da arena com um estrondo. Ainda ergueu cegamente a espada para proteger-se, mas um golpe certeiro de Poseidon em seu punho fez a arma voar para longe. Deitou-se de vez, entregue e atordoado, e Poseidon aproximou-se dele com calma, virando a ponta de sua espada para o chão. As armas não tinham corte mas a extremidade ainda poderia fazer algum estrago quando pressionada na pele fina da garganta como ele fez. Atena pensou ter visto Ulisses engolir em seco, o metal pressionado de leve contra aquele ponto vulnerável, e por alguns segundos todos na arquibancada prenderam a respiração ao aguardar o desfecho da luta.

Poseidon correu com a ponta da espada da garganta até a mandíbula de Ulisses, e depois de tocá-lo rapidamente ali com o lado plano da lâmina, afastou a arma do oponente derrotado e lhe ofereceu a mão para ajudar a levantar-se. Atena suspirou de alívio e observou o sorriso convencido que ele ostentava ao erguer Ulisses ao seu lado e receber os cumprimentos do público. Os escudeiros correram para acudir Ulisses e ajudar Poseidon a retirar as peças de armadura que ainda usava, e os nobres deixaram seus estandes, cada um disputando a chance de ser o primeiro a parabenizar Poseidon pela vitória.

Atena aproveitou a distração que toda aquela movimentação proveria e retirou-se discretamente em direção ao interior do castelo. O dia cheio já havia cobrado seu preço há algumas horas quando uma leve fraqueza a acometera, mas quase esquecera disso até que o nervosismo daquela última competição trouxera de volta a sensação de sufocamento.

Encontrou Nik a caminho do gabinete e pediu que ela fosse até seu quarto buscar um dos frascos com a reposição de seu remédio que havia recebido de Apolo na sua última visita ao Olimpo. Esperou sentada até que a garota voltasse; a fadiga provavelmente era o resultado do cansaço e das noites mal dormidas mais do que qualquer outra coisa, mas não custava nada prevenir-se. Não podia se dar ao luxo de ter uma crise enquanto tinha hóspedes em casa.

Levantou a cabeça de seus braços cruzados sobre a mesa onde estivera repousando pelos últimos minutos quando ouviu a porta se abrir, mas era Poseidon e não Nik que adentrava o aposento.

— Deixou a arena antes de me parabenizar pela vitória. - Ele falou sem conseguir esconder a expressão satisfeita.

— Pensei que a chance de humilhar Ulisses em público te deixaria feliz o suficiente.

— E deixou. - Ele confirmou com um sorriso largo. Atena semicerrou os olhos em sua direção e ele completou - Não me olhe assim. Eu o poupei por ser seu protegido. Poderia ter feito pior.

— Poderia não ter aceitado o desafio. - Ela contrapôs.

— E você poderia não ter concedido seu favor a ele.

Atena calou-se por alguns segundos, confusa com o rumo daquela argumentação.

— O que isso tem a ver?

— Mostrou favoritismo. - Poseidon respondeu. - Os vassalos poderiam ter se sentido ofendidos.

— Ulisses era o único competindo por Atlântida, claro que mostrei favoritismo. - E à expressão desgostosa que ele fez, acrescentou - Ninguém pareceu incomodado além de você. Está mesmo com ciúmes de algo tão bobo?

Poseidon desviou o olhar e não respondeu de imediato, o que era confirmação o suficiente. 

— Não é como se eu pudesse competir com seu amor de infância. - Ele murmurou ainda contrariado e ela teve de se conter para não revirar os olhos.

— Nós somos casados, Poseidon. Como exatamente isso é uma competição?

“E quem disse que Ulisses foi meu amor de infância?” Ela poderia ter completado, mas foi interrompida pela chegada de Nik com seu frasco e uma taça d’água. Atena agradeceu à garota e misturou um pouco do pó esbranquiçado na bebida. Poseidon aparentemente reconheceu o que ela utilizava.

— Está se sentindo mal de novo? - Questionou com urgência, imediatamente se levantando e indo até ela, o assunto anterior já esquecido.

— Não é nada. Estou apenas tomando precauções.

— Tem certeza? - Ele insistiu, segurando seu rosto entre as mãos como que para se certificar de que ela não estava escondendo nada. - Podemos adiar o baile em alguns dias se for melhor para você.

— Estou bem. - Ela insistiu, olhando nos olhos dele enquanto falava. - E não temos tempo a perder.

Poseidon moveu os lábios como se fosse discutir, mas enfim desistiu e afastou-se novamente.

— Vou cuidar para que os vassalos retornem aos seus aposentos e pedir para que Bia mande servir o jantar a cada um. Aproveite para descansar.

— Obrigada. - Ela estava realmente grata pela compreensão e pela pequena gentileza. Poseidon fez uma mesura antes de retirar-se e ela eventualmente subiu os lances de escada a separavam de seus aposentos.

O dia seguinte chegou mais rápido do que ela gostaria e trouxe com ele o último evento que seria promovido antes do tão aguardado baile: a caça. Não era exatamente a melhor época para a atividade, mas os Valence tinham uma tradição antiga da prática que não seria dispensada pelos vassalos mais antigos caso os novos senhores considerassem deixá-la de lado.

Praticamente todos os homens ali presentes estavam no pátio equipando-se e preparando suas montarias para o início da perseguição. A maioria das caças de que Atena participara haviam sido realizadas com a ajuda de aves de rapina especialmente treinadas para isso, mas naquelas terras era mais comum o auxílio de uma matilha do que da falcoaria. Um grupo particularmente feroz de cães aguardava do lado de fora dos muros o momento em que seriam soltos nos bosques para encurralar suas presas.

Atena aproximou-se de onde a maioria dos senhores se reunia.

— Então você tensiona a corda assim... - Lorde Baignard explicava do topo de sua montaria, as duas mãos livres manejando uma balestra já que a bengala perdia o propósito numa cavalgada. - E aperta esse gatilho para liberar o dardo.

Ele acomodou a aparentemente pesada arma entre a junção do ombro com a clavícula e atirou num ponto distante. A flecha foi disparada tão velozmente que Atena só conseguiu vê-la novamente quando já estava fincada na madeira de uma das carroças no canto do pátio. Os homens ao seu redor bateram palmas admiradas.

— Impressionante. - Atena elogiou, capturando a atenção de Lorde Baignard. - Pensei que não participaria da caça.

— Por causa disso? - Ele riu enquanto dava um tapa na própria perna defeituosa. - Não se preocupe. Eu desenho minhas próprias celas, equipamentos e armas desde os nove anos. Daqui de cima, sou tão hábil quanto qualquer outro homem.

— Foi você quem desenhou essa besta? - Ele assentiu. - Tenho dois irmãos que são bastante aficionados por arco-e-flecha. Me pergunto se eles prefeririam essa arma.

— Provavelmente não. - Hefesto supôs. - Arqueiros costumam confiar mais na própria força e habilidade do que na eficiência de uma máquina.

Atena considerou o que ele dizia e acabou concordando.

— E a senhora? - Lorde Baignard perguntou. - Gostaria de tentar um tiro?

Ela riu.

— Agradeço a oferta, mas não.

— Que oferta? - Poseidon apareceu subitamente ao seu lado, uma mão apoiada na base de suas costas.

— Está pronto para começar, milorde? - Um dos senhores mais próximos questionou, impedindo Atena de responder.

— Sim, sim. - Ele tranquilizou os outros homens já impacientes enquanto caminhava em direção à sua montaria com Atena ao seu lado. Ulisses e os outros vencedores do dia anterior estavam por perto; teriam lugares de honra perto de Lorde Valence graças à bravura demonstrada no torneio.

— Tome cuidado. - Ela recomendou enquanto ajudava Poseidon a ajustar sua couraça no lugar.

— Eu sempre tomo cuidado. - Ele retrucou, e ao olhar cético dela abriu um meio sorriso. - Pode deixar.

Atena puxou o pedaço de tecido guardado em sua manga antes que mudasse de ideia e o amarrou em laço ao redor do pulso de Poseidon. Ele observou, imóvel e surpreso, enquanto ela terminava o arranjo e permanecia com a mão dele entre as suas.

— Isso… - Ele começou, finalmente encontrando seus olhos.

— Sou eu mostrando meu favoritismo. - Ela respondeu antes que ele terminasse a pergunta, utilizando propositalmente o termo que ele reclamara na tarde anterior. A fita não tinha significado algum para ninguém ali além deles dois, e isso bastava. Poseidon hesitou por um segundo e em vez de dizer algo simplesmente cruzou a pouca distância entre seus corpos e capturou os lábios dela entre os seus. O beijo foi breve e ele estava sorrindo quando se afastou.

— Não fique tão convencido. - Ela pediu, mas também estava sorrindo.

— Tarde demais.

Enquanto os homens se aventuravam nas matas, um generoso lanche havia sido organizado para as damas num dos cômodos mais externos do castelo, e criados circulavam entre as senhoras e suas acompanhantes levando bandejas com vinhos e aperitivos doces e salgados, enquanto músicos tocavam instrumentos de corda num dos canto do salão. Depois de cumprimentar todas as nobres e certificar-se de que estavam confortáveis e bem atendidas, Atena reservou-se a um canto mais isolado, ciente de que não era muito bem-vinda entre o círculo estrito daquelas mulheres que já se conheciam durante toda uma vida. Permaneceu perto da janela que dava vista para o bosque ao longe, esperando ansiosa o momento em que avistaria os homens voltando de sua incursão, o que significaria o fim daquele encontro e subsequente reunião apenas durante a noite no baile, quando apesar de tudo estaria mais confortável com Poseidon ao seu lado.

Gostaria de ter podido participar da caçada. Atena costumava acompanhar seu pai e irmãos, junto de Ártemis, quando este passatempo era promovido nas florestas do Olimpo. Seu papel em Atlântida era muito diferente, contudo, não permitindo a relativa liberdade de poder se arriscar no lombo de um cavalo perseguindo cães que encurralariam um cervo ou javali. Ainda mais agora que a maioria de seus convidados parecia mesmo acreditar que ela estivesse grávida.

— Elas dizem que eu sou uma bruxa. - Uma voz suave atrás de Atena interrompeu sua reflexão. Ela estivera tão absorta em seus pensamentos que por um momento havia esquecido que estava cercada pelas suas hóspedes. A estranheza daquela frase a fez engasgar-se de leve com seu gole de vinho. Tossiu e virou-se para a fonte da voz.

Lady Baignard estava confortavelmente recostada na pilastra mais próxima e parecia já estar observando Atena há algum tempo.

— Perdoe-me a distração, milady, mas acho que não ouvi direito.

— Eu disse - Ela enunciou pausadamente ao mesmo tempo em que parava um dos criados para tirar um aperitivo da bandeja que ele carregava. - Que elas dizem que sou uma bruxa. - Concluiu para em seguida colocar o doce inteiro na boca, lambendo as pontas dos dedos e dando um sorriso satisfeito. Atena tomou mais um gole do seu vinho enquanto decidia o que fazer com a informação.

— Elas quem? - Perguntou por fim, e com um não tão discreto aceno de cabeça a ruiva indicou as mulheres que sentavam em grupo no extremo oposto do salão fingindo não observá-las.

— E você é? - A pergunta lhe escapou antes que sequer pudesse ponderá-la melhor. Os lábios anteriormente curvados da outra mulher partiram-se numa risada delicada.

— Dificilmente. - Lady Baignard respondeu num tom divertido. Aproximou-se alguns passos e enlaçou um braço no de Atena. - Caminhe comigo.

Atena não teve muita alternativa a não ser acompanhá-la; Lady Baignard tinha um aperto surpreendentemente firme. Ela a conduziu através do salão até o ponto onde as outras damas se agrupavam e anunciou:

— Lady Valence se ofereceu para me mostrar seus exuberantes jardins, gostariam de juntar-se a nós neste passeio?

As mulheres declinaram a proposta com sorrisos educados e acenos discretos. As duas então se retiraram e caminharam até o acesso lateral mais próximo, que conduzia à área externa do castelo.

— Percebeu? Não suportam minha companhia. Mantenha-me por perto e não terá que lidar com nenhuma delas.

Atena não entendia aonde a ruiva pretendia chegar com aquilo.

— E por qual motivo eu gostaria de evitá-las?

Lady Baignard pousou os belos olhos verdes nos seus por um momento antes de declarar com um sorriso conhecedor:

— Você sabe que não é bem-vinda entre elas. Suspeito que sequer faça questão disso; tudo que precisa dessas mulheres é que não impeçam os maridos delas de apoiar o seu. O círculo de damas nobres rejeita todas as forasteiras que não se encaixam em sua inalcançável ideia de perfeição, e se for realmente tudo que ouvi sobre você, não gostaria de associar-se a isso.

— A senhora também é uma dama nobre. - Atena observou, surpresa com aquela franqueza e escolhendo não perguntar o que aquela mulher haveria ouvido sobre ela.

— Isso faz duas de nós. Talvez possamos começar nosso próprio clube. E não me chame de senhora, eu imploro. Afrodite está de bom tamanho.

Atena não costumava ser inteiramente franca tão facilmente com quem não conhecia, especialmente quanto a assuntos que pudessem ser considerados comprometedores, mas a sinceridade da outra dama lhe mantinha interessada.

— Mas eu nasci de um ventre camponês, Afrodite. - Ela comentou enquanto a grávida guiava as duas rumo às árvores. Deixou o assunto de lado por um momento para observar: - Deste lado ficam os pomares, não os jardins.

— São só plantas. - Afrodite retrucou, divertida. - Não faz diferença para mim.

Atena não conseguiu evitar de pensar o que Deméter e Perséfone fariam com aquele comentário.

— Mas e então? - Pressionou. - Qual a sua desculpa para que elas não gostem de você?

— Eu já disse. - Afrodite replicou calmamente enquanto adentravam as sombras das macieiras. - Elas acham que sou uma bruxa.

Quando não recebeu mais esclarecimentos, falou:

— Nós duas sabemos que são consideradas bruxas apenas aquelas mulheres que de algum modo não estão em conformidade com o que se espera delas. Que regras quebrou para angariar tal título?

Afrodite lhe lançou mais um olhar satisfeito.

— Uma mente afiada aliada a um rosto bonito. - Ela murmurou mais para si mesma. - Assim vai acabar atingindo todos os meus pontos fracos.

Atena não soube como responder àquele elogio que mais parecia um flerte. Frente a seu silêncio cheio de expectativa, Afrodite finalmente começou a explicar.

— Conheceu meu marido, Hefesto. - Quando Atena anuiu, ela continuou. - Nossos pais firmaram um noivado quando ainda éramos crianças. Quando completei 16 anos assinei os documentos que me tornavam sua esposa. Ele tinha apenas 12 e por isso o casamento ainda não poderia ser consumado. Nós continuamos vivendo separados em nossos respectivos feudos, sem sequer nos conhecermos pessoalmente até que ele atingiu a maioridade. Só então me enviaram para viver com ele, a Igreja nos concedeu suas bênçãos e passamos a viver de fato como marido e mulher.

— E qual o problema nisso? - Atena não entendia como aquela história poderia ter levado à inimizade das outras nobres nem ao rótulo de bruxa. Não era usual ver uma união onde o marido era mais novo que a esposa, mas também não era algo necessariamente condenável.

Afrodite tinha aquele sorriso de quem conhecia muito mais do mundo do que ela seria capaz de imaginar enquanto esticava o braço para um galho próximo à sua cabeça e tirava de lá uma maçã madura. Limpou a fruta levemente na manga do vestido antes de tirar uma mordida.

— Era esperado que eu permanecesse casta e intacta para meu marido enquanto aguardava que ele amadurecesse. - Ela explicou depois de engolir o primeiro pedaço. - Mas eu estava pronta para ser colhida. Não iria esperar longos e solitários anos até ter alguém para aquecer minha cama. Então tomei um amante.

Atena parou imediatamente de caminhar, atônita. Afrodite lhe lançou um olhar inocente por debaixo dos longos cílios e tirou outra mordida da fruta em suas mãos, permitindo algum tempo para que assimilasse o que acabara de ouvir. Aquilo certamente explicava o porquê da presença da dama escandalizar as outras nobres.

— Você… teve um amante? - Ela repetiu só para ter certeza de que havia compreendido direito. - E todos sabiam disso?

— Bem, não apenas um. - Afrodite a corrigiu como se aquele fosse um erro comum. - Mas até que eu descobrisse que as garotas eram muito mais discretas que os garotos os rumores acabaram se espalhando.

Atena agora estava terrivelmente corada. A outra dama lhe fez a gentileza de desviar o olhar enquanto se recuperava daquela notícia.

— E como você não foi punida por isso? - Atena enfim perguntou. Mesmo mulheres nobres acabavam perdendo quase tudo quando consideradas promíscuas.

Afrodite deu de ombros como se aquilo não fosse grande coisa.

— Nunca conseguiram fazer alguém depor contra mim. E eu certamente nunca confessei nada. Quando a noite da consumação passou, Hefesto atestou a todos que eu havia chegado até ele intocada. - Ela tirou um último pedaço da fruta e jogou o resto displicentemente por sobre o ombro.

— Confessou agora. - E ao olhar inquisitivo dela, completou - Acabou de confessar para mim que teve casos extraconjugais.

— Mas nós somos amigas. - Afrodite declarou, despreocupada. - Não entregaria esse meu segredinho, entregaria?

Obviamente Atena não condenaria outra mulher ao castigo inimaginável que certamente seria aplicado naquele caso, mas Afrodite não teria como estar tão segura disso.

— E ele não sabia sobre os rumores? Lorde Baignard? - Atena inquiriu, ao que a outra deu uma risada.

— Ele definitivamente sabia sobre os rumores.

— E a aceitou mesmo assim? - A pergunta escapou de seus lábios num tom excessivamente surpreso, ao qual Afrodite respondeu apenas com um erguer de sobrancelhas. Claro. Atena sentia-se como uma criança tola por demorar tanto a compreender a insinuação por detrás daquele olhar. Quem seria louco a ponto de recusar uma mulher como Afrodite em nome de boatos maldosos? Uma vez que sua noite de núpcias tivesse passado, contudo, ele teria descoberto a veracidade dos rumores. Poderia ter entregado a esposa para um destino terrível, mas não o fez.

— Teve sorte que o seu prometido estivesse tão disposto a defender sua honra.

— Ele teria que estar disposto a muito mais do que isso se realmente me quisesse como esposa. - Afrodite retorquiu, sem parecer nem um pouco impressionada.

As duas deram a volta nos pomares e retomaram a direção do salão.

— Somos amigas, então? - Atena arriscou após alguns passos silenciosos.

— Claro que sim! - Afrodite confirmou.

— Por quê? - A ruiva pareceu confusa ao ouvir aquilo - Poderia ter me deixado de lado como as outras senhoras. Não me conhecia. O que teria a me oferecer caso rejeitasse sua amizade?

— E eu estaria desesperada a ponto de precisar oferecer algo?

— Não desesperada. Mas deve querer algo que só eu posso oferecê-la, ou do contrário teria aconselhado seu marido a firmar uma aliança com Cronos. Vocês são os únicos dentre nossos vassalos que receberam um convite para se juntar ao lado inimigo. Ele poderia oferecer uma segurança que nós ainda não provamos ter.

Atena não sabia com total certeza se eles teriam recebido mesmo uma oferta de Cronos depois da tentativa fracassada de unir Hefesto e a pequena Héstia em casamento, mas era altamente provável que sim, o que fazia valer o blefe. Afrodite considerou o que dizia com uma seriedade na expressão que ainda não havia demonstrado.

— Tem razão. Cronos tem todo o poderio e tradição de um Lorde firmado em sua posição há anos, enquanto que vocês são jovens e inexperientes. Mas o que pode me oferecer é o nome de sua família, algo que Cronos nos negou. - A explicação de Lady Baignard confirmou suas suspeitas e criou outros questionamentos.

— O nome da família?

— Meu herdeiro chegará a qualquer momento. - Afrodite esclareceu, acariciando a barriga pronunciada com a mão livre. - Os Baignard têm domínios vastos, mas não tanto prestígio frente a outras famílias nobres. Uma união aos Valence mudaria isso.

Antes que pudesse falar algo Afrodite complementou:

— O que quero é a promessa de um casamento entre meu primeiro filho e sua primeira filha. - Ela falou sem rodeios. - E se nossa recém-firmada amizade não for o suficiente para me conseguir isso, posso oferecer algo de que precisa ainda mais.

— O quê, exatamente? - Sua curiosidade foi despertada pela confiança na voz da outra mulher. Afrodite respondeu prontamente:

— Lorde Beauchamp deseja que alguém dê finalmente um título de cavaleiro a Dionísio. Ele já fez o treinamento diversas vezes mas nunca conseguiu concluí-lo. Lorde Carteret está afundado em dívidas e precisa de ouro que nenhum outro feudo está disposto a emprestá-lo. Os d’Aguillon esperam que alguém resolva suas disputas de terra com os territórios de Lady Ide, e ela está disposta a ceder mediante ajuda nas colheitas.

As peças daquele mosaico rapidamente se uniam na mente de Atena.

— Poderia continuar. Sei tudo o que precisa para convencer cada uma dessas famílias a jurar lealdade à Atlântida, tudo que você não conseguiria descobrir a tempo já que as outras damas não estão dispostas a aproximar-se.

Aquelas eram informações valiosíssimas, e ao perceber a complexidade do plano que ela criara para assegurar sua posição, Atena fez uma nota mental de nunca subestimar Afrodite.

— Temos um acordo, então? - Ela pressionou ao ver que já estavam novamente próximas das outras convidadas.

— Temos um acordo. - Atena confirmou. Não interessava no momento se era incapaz de ter filhos; precisava das informações que Afrodite possuía e a única maneira de garantir que as obteria era concordar com suas condições.

— Mal posso esperar para sermos família além de amigas. - Ela falou com um sorriso largo e satisfeito, e Atena concluiu que aquele não seria um cenário tão ruim.

 


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Notas finais do capítulo

Essa atualização não veio logo em dobro porque os próximos dois capítulos são o baile e acho que faz mais sentido eles aparecerem juntos. Espero que estejam gostando!



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