Destino escrita por Eve


Capítulo 46
Capítulo Quarenta e Seis


Notas iniciais do capítulo

*cuidadosamente limpando a poeira acumulada* estão servidos?



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XLVI

 

A caça havia sido um sucesso; todos os senhores envolvidos, ou seus representantes, haviam conseguido abater pelo menos um animal. A atividade conjunta havia instaurado um agradável clima de camaradagem entre os homens ali reunidos, e todos aparentavam estar em bom ânimo e relaxados enquanto retornavam ao castelo a fim de preparar-se para o baile. 

As senhoras já não estavam à vista quando adentraram as muralhas da fortaleza, decerto há muito envolvidas em seus próprios preparativos, e a comitiva de caçadores dispersou-se cada um a seus aposentos, os servos do castelo adiantando-se para recolher os frutos da caçada e levá-los até as cozinhas interna e externa, onde seriam preparados tanto para o banquete quanto para as festividades da população do vilarejo. 

Poseidon seguiu até a torre de seus aposentos e lá encontrou seus pajens, que já o aguardavam. Tomou um demorado banho, e depois que havia conseguido livrar-se de todos os resíduos de terra, sangue e suor que acumulara nas últimas horas, teve seus cabelos aparados e a barba feita por um dos jovens. 

Usaria naquela noite o traje cerimonial do senhor de Atlântida, o mesmo que há gerações adornava os ocupantes daquele posto em ocasiões solenes. A indumentária era nas cores dos Valence, na variação local - enquanto no brasão dos Valence de Ótris o preto se sobrepunha ao azul, que aparecia apenas em pequenos detalhes, os Valence de Atlântida sempre ostentaram em seu brasão proporção inversa: o azul profundo, muito escuro e brilhante, guardava mais espaço em relação ao negro fosco. 

Os pajens, já bem treinados, rapidamente o adornaram com todas as peças da complexa vestimenta, que por ser tecida majoritariamente em veludo e couro, era pesada e firme ao toque. O gibão era decorado em fios de ouro, ele percebeu. Quando enfim ficou pronto, dispensou a criadagem e dirigiu-se até o portal que separava seus aposentos do da esposa. Um toque rápido na porta e ouviu a voz dela autorizando sua entrada. 

Poseidon há muito convencera-se de que Atena era a mulher mais bela que ele já tivera a satisfação de contemplar. Em muitas ocasiões aquele pensamento era reforçado: quando o recebeu no Olimpo, no dia de seu casamento, em tantas outras situações do cotidiano. Mas naquele início de noite, ao deparar-se com a imagem de sua esposa à luz do pôr do sol e das tochas que iluminavam seu quarto, quaisquer remotas possibilidades de que um dia pudesse mudar de ideia quanto àquela conclusão foram de pronto aniquiladas.

Atena também vestia o traje cerimonial da senhora de Atlântida. Era, entretanto, difícil imaginar que a indumentária existia há décadas e havia abrigado outros corpos que não o de sua esposa, uma vez que parecia ter sido perfeitamente moldada à sua silhueta. O corpo do vestido, em belíssima seda azul, envolvia sua delicada cintura e moldava seu busto como se tivesse sido costurado à sua pele. As longas mangas, amarradas por complexos laços dourados que iam do interior de seu cotevelo até seus pulsos, complementavam os adornos também produzidos em fios de ouro na volumosa saia. Um manto negro repousava sobre seus ombros, com pele de arminho adornando seu belo pescoço. 

Suas magníficas madeixas estavam completamente presas num alto e entricado penteado, do qual prendia-se um delicado e translúcido véu cujas pontas alcançavam a altura de seus quadris e prendiam-se em alguns dos anéis de ouro que enfeitavam cada um de seus dedos de ambas as mãos. Estava, além disso, ostentando as tradicionais joias daquele domínio: colar, brincos, broche e adereços de cabelo em pérolas alvas. 

— Muita informação? - Ela quebrou o silêncio que ele sequer saberia dizer há quanto tempo durava, afastando um pouco os braços de si e rodopiando parcialmente a fim de contemplar-se no espelho. - Não quis quebrar o protocolo e por isso vesti o traje completo, mas algo me parece estranho. 

Decerto a composição era bastante diferente das escolhas usuais de Atena, que geralmente vestia-se de forma pragmática e sem tantos adereços, mas nem de longe parecia inadequada. Pelo contrário - em sua opinião enviesada e suspeita, ele arriscaria dizer que parecia que ela havia nascido para envergar essas vestimentas. Pigarreou e umedeceu os lábios, percebendo o quanto sua boca havia subitamente ficado seca. 

— Você está formidável, milady. - Conseguiu enfim pronunciar. Não conseguiria, mesmo que quisesse, verbalizar quanta satisfação lhe preenchia ao vê-la usando sua cores, e como para ele aquele era um lembrete explícito de que ela era sua. 

Atena o encarou através do espelho, ainda de costas, e sorriu envergonhada.

— Você também não está nada mal. - Declarou, mas seu olhar demorou-se em analisá-lo de cima abaixo pela sua imagem no reflexo. Poseidon sentiu um aperto na garganta, e de repente aqueles aposentos pareciam demasiadamente quentes, abafados e apertados. Afastou de leve o próprio colarinho de sua pele, também para ter o que fazer com as mãos e desviar o impulso de cruzar a distância até a esposa e tocá-la. 

Queria poder entender melhor em que pé estavam. Uma reconciliação expressa não havia ocorrido, mas sem dúvidas encontravam-se em melhores termos do que há algumas semanas. Ele ainda não tinha certeza de ter sido perdoado, mas ao mesmo tempo, Atena se reaproximara e até havia lhe concedido seu favor durante as celebrações. Não sabia o quanto daquilo era uma perfomance para os vassalos, mas esses breves momentos em privado o faziam suspeitar que havia sim algo de espontâneo em seus atos. 

Ainda que fosse explicitamente perdoado, Poseidon não sabia exatamente o que isso poderia significar: que ela queria retomar o bom convívio? Que priorizava a cumplicidade e parceria que haviam edificado no comando de Atlântida? Que queria, de fato, ser sua esposa, e não apenas ocupar formalmente esse posto? 

De repente, ameaçou sentir-se tonto. Fechou os olhos por um segundo e respirou fundo. Aquele não era o momento propício para a espiral em que estava prestes a sucumbir. 

— Devemos ir? - Atena perguntou, e quando ele abriu os olhos novamente ela estava à sua frente, a meros dois passos de distância. Conseguia sentir seu perfume dali, e percebeu que mais um momento e ele cometeria alguma loucura, ou ainda pior, falaria algo de que se arrependeria depois. 

— Sim. - Respondeu de pronto, abraçando a oportunidade de mudar de cenário. Devia oferecer-lhe o braço para que descessem até o saguão juntos, mas de repente flagrou-se temoroso dos efeitos que a proximidade lhe causaria. 

Atena ergueu as sobrancelhas, impaciente, e com a periferia de sua visão, Poseidon notou a porta do quarto abrindo-se. Só então percebeu que as criadas da esposa estiveram ali todo este tempo, e ele, tão completamente absorto em sua figura, não havia reparado. Sacudiu discretamente a cabeça como que para clarear os pensamentos e enfim ofereceu o braço a Atena, que o aceitou, e deixaram seus aposentos em seguida.

Poseidon passou o trajeto inteiro pensando em questões militares para ocupar sua mente. Listou os exércitos dos vassalos do maior para menor, classificou os melhores cavalheiros e comandantes, elencou os principais pontos fracos e de melhoria. Quando enfim chegaram às portas do salão principal, ele percebeu que havia conseguido cruzar boa parte do castelo sem pronunciar uma palavra sequer.

Atena parou antes que abrissem as portas e anunciassem a chegada deles. 

— Está tudo bem? - Ela questionou hesitantemente, mirando-o com um olhar curioso e um tanto preocupado. - Aconteceu algo na caçada? Parece distraído.

Eles estavam lado a lado, braços entrelaçados, ombros quase unidos. Dali, ele conseguia observar sem ressalvas o desenho de seu rosto, as curvas dos seus lábios, seus profundos olhos da cor das cinzas de uma lareira apagada. Estava definitivamente distraído.

— Não. Está tudo bem - Conseguiu balbuciar, sua voz mal projetando-se. - Apenas nervosismo. 

Atena assentiu como se o compreendesse. Ela jamais perceberia o verdadeiro motivo de seu nervosismo naquele momento.

— Os vassalos irão apoiar nossa causa. - Ela declarou, como que para confirmar sua teoria. Por uma fração de segundo Poseidon sentiu-se culpado por não estar com a mente nas preocupações corretas.

— Você não parecia tão certa disso há alguns dias. - Ele falou, esforçando-se para manter um diálogo. O canto direito dos lábios dela curvaram-se muito brevemente num sorriso que tentava suprimir. Poseidon sentiu como se alguém tivesse atravessado seu peito com a mão e apertasse seus órgãos. 

— Mas estou agora. 

— Posso saber por quê? - Ele perguntou, mas tão logo proferiu o questionamento percebeu pessoas aproximando-se de onde estavam. Eram seus convidados chegando para o baile. Atena fez um sinal com a cabeça para que os criados abrissem as portas e o arauto anunciasse suas chegadas. 

O casal de senhores de Atlântida atravessou o salão e dirigiu-se à mesa que encontrava-se ao fundo do longo cômodo, centralizada e sobre um estrado, duas poltronas idênticas dispostas lado a lado. Tomaram seus lugares e dali receberam os cumprimentos de cada um dos convidados, vassalos e agregados, que chegavam à celebração. 

Músicos trazidos da cidade haviam iniciado seus trabalhos, e algumas bebidas e aperitivos já estavam sendo servidos aos convidados que reuniam-se em pequenos círculos em pé, ou nas longas mesas dispostas nas duas laterais do salão. De onde estavam, tinham uma vista privilegiada de todo o ambiente. 

— E então? - Poseidon perguntou, aproveitando-se da distração promovida pelo som da música e das conversas. - Como está tão segura do apoio dos vassalos?

Atena ergueu uma das mãos para a travessa de frutas a sua frente, arrancou de lá uma uva e levou até sua boca, mastigando lentamente. Poseidon observou cuidadosamente cada movimento, como quem tem medo de sobressaltar uma presa com uma respiração ou passo em falso.

— Fiz um acordo com Lady Baignard. - Ela enfim falou, ainda olhando em frente para o movimento do salão, aparentemente sem importar-se com ele a encarando. - Ela me deu todas as informações necessárias para negociar com as demais senhoras o apoio de seus maridos à causa de Atlântida. 

— E em troca…? - Ele questionou, interrompendo-se involuntariamente quando ela voltou o olhar em sua direção. De alguma forma, ela conseguia ficar ainda mais bela ali, sob a luz cálida das grandes lareiras e candelabros. Agora estavam de frente um para o outro, separados apenas pelo espaço irrisório dos dois braços de suas poltronas gêmeas. Poseidon estava com o corpo totalmente virado em sua direção, e ela espelhou, talvez involuntariamente, sua posição. 

— Em troca prometi a mão de nossa primeira filha em casamento ao herdeiro que ela espera. 

Poseidon quase engasgou-se com a própria respiração. 

— A mão da filha que não temos? - Foi o questionamento que conseguiu elaborar.

— Ainda. 

Ele desmaiaria ali mesmo. Atena o encarou como se o desafiasse a questionar o que dizia. Por fim, quando ele nada proferiu, ela apenas balançou a cabeça e completou:

— Foi o que ela pediu em troca, eu não pude contestar. Ainda mais agora que eles acreditam que estou grávida. 

— E como ela pode saber que eles terão um herdeiro varão, ou que nós teremos uma filha para desposá-lo?

Atena deu de ombros.

— Talvez ela seja uma bruxa. 

Poseidon não conseguia sequer formular as tantas questões que o atravessavam. Mas no fundo, sabia que Atena não afirmaria algo tão categoricamente se não tivesse plena certeza do que dizia. Então, se certificava-se que os vassalos declarariam apoio, só lhe restava aceitar, quaisquer que tivessem sido as artimanhas que levaram a tal garantia. 

— Acho que já estão todos aqui. - Ela falou, enquanto ele ainda permanecia mudo e incrédulo. - Proponha um brinde. 

Ela tinha razão. O salão agora estava cheio. Poseidon acenou para que um dos criados enchesse sua taça e ergueu-se. A música parou imediatamente. Ele pigarreou antes de inciar, reservando alguns segundos para que todos se acomodassem em seus respectivos assentos.

— Meus nobres amigos. - Ele iniciou, e agradeceu silenciosamente por sua voz soar firme e clara, ecoando facilmente por todo o ambiente. - Que prazer é recebê-los nos saguões de Atlântida. Eu e minha esposa - Ele acenou na direção em que ela se sentava com sua mão livre, e antes que a trouxesse de volta para perto de seu corpo, sentiu Atena segurá-la, entrelaçando seus dedos e dando-lhe um aperto de leve. Poseidon conteve o sorriso. 

— Estamos imensamente satisfeitos por enfim conhecê-los pessoalmente, e esperamos que a recepção esteja à altura de vossas graças. 

Sons de concordância e de aclamação irromperam discretamente. 

— O objetivo desta noite é celebrar velhas, novas e duradouras alianças. Após nosso banquete, teremos a honra de aceitar os juramentos e as renovações dos votos de vassalagem de tão estimados senhores. Por enquanto, desejo brindar à prosperidade e longevidade dos nossos estimados aliados - Ergueu a taça à sua frente. - E à nossa inabalável amizade. 

Todos os convidados ergueram suas taças e as levaram aos lábios em seguida, em uníssono com os movimentos de Poseidon. Uma salva de palmas irrompeu, a música voltou a tocar, e Poseidon retomou seu assento. Antes que pudesse voltar sua atenção à esposa, entretanto, notou Dionísio Beauchamp erguendo-se de seu lugar, taça em mãos. 

— Desejo também fazer um brinde a nossos jovens suseranos. - Ele declarou em alto e bom tom, fazendo a música cessar mais uma vez. - Que o governo de vocês seja próspero e pacífico. Em homenagem a tão auspiciosa reunião, gostaria de oferecer um presente - E gesticulou para uma das portas laterais, de onde começaram a sair seus criados pessoais, trazendo grandes barris. Pela mão de Atena na sua, Poseidon sentiu que ela havia se retesado. 

— Todos aqui sabem que eu mais do que ninguém sou um verdadeiro amante de um bom vinho. Mas esse elixir é típico de nossas terras altas - Ele explicou enquanto os servos abriam os barris e serviam vários copos, distribuindo-os a todos os presentes, inclusive a ele e Atena. - E arrisco dizer que a maioria irá apreciar. Se chama whisky - a água da vida!

Murmúrios satisfeitos irromperam pelo salão. Atena parecia cada vez mais tensa, e então ele se lembrou: ela havia proibido terminantemente a entrada de bebidas ou comidas que não tivessem sido produzidas ou adquiridas diretamente por Atlântida. 

Uma troca de olhares e ele compreendou exatamente a preocupação que ela nutria: algumas gotas de veneno e a guerra estaria acabada antes de começar. Como poderiam ter certeza que aquela não era uma tentativa insidiosa de Cronos de atingi-los, ou a seus aliados, sem precisar movimentar nenhum aparato bélico?

Dionísio estava com sua nova taça erguida, a expressão um tanto lunática, como se entendesse exatamente as implicações de seu gesto. Por outro lado, Poseidon não poderia desprezar o brinde ou o presente, sob ameaça de ofender irremediavelmente seus hóspedes e a amizade que acabara de proclamar, por haver sequer conjecturado a possibilidade de que houvesse um traidor entre eles. 

Então, quando Dionísio levou a taça até os lábios e todos os demais convidados o imitaram, Poseidon não teve alternativa além de fazer o mesmo. Longos segundos se passaram, enquanto Poseidon observava apreensivamente as reações à bebida: a maioria esboçou surpresa pelo quão forte ela era, alguns manifestaram apreciação. 

Quando tempo suficiente para a ocorrência de reações adversas já havia transcorrido, a música havia voltado a tocar e o momento dissipado-se, Poseidon respirou aliviado. Trocou olhares com Dionísio e ele lhe deu uma piscadela, como quem sabia exatamente o teste que havia acabado de passar. 

Aquela seria uma longa noite, foi só o que conseguiu concluir. 

 


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Notas finais do capítulo

Não tenho nem o que dizer mesmo, galera. Tudo bem com vocês? Quanto tempo? Alguém ainda usa esse site? Alguém ainda quer saber dessa história? Muitas questões. Caso vocês também tenham perguntas, podem deixar aí que responderei o que for possível.



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