Destino escrita por Eve


Capítulo 21
Capítulo Vinte e Um




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XXI

 

 

Poseidon já estava acordado e sentado à mesa do pequeno salão esperando Madge servir o desjejum. Atena ainda não aparecera, mas ele já havia notado que ela na maioria das vezes chegava atrasada a qualquer compromisso que fosse agendado muito cedo na manhã. De fato, ele já estava terminando de comer quando a escutou descendo as escadas e observou pelo canto do olho enquanto adentrava o cômodo.

Atena parou e observou por um longo momento a mesa já posta. Poseidon não via nada de errado com o móvel ou com os alimentos sobre ele, mas então ela caminhou até a outra extremidade e puxou uma cadeira, posicionando-a na cabeceira oposta à que Poseidon se sentava e que um momento antes estivera vazia. Ele desviou o olhar para seu prato antes que ela percebesse que ele a encarava, fazendo o possível para esconder o canto de sua boca retorcido em um sorriso involuntário. Atena era mais teimosa do que ele pensava, e aparentemente ele estava bem longe de compreender perfeitamente suas prioridades ou o motivo pelo qual fazia qualquer coisa. Quando finalmente se permitiu olhar diretamente em seus olhos, ela o encarava com a expressão artificialmente neutra, quase inocente, mas algo em seus olhos cinzentos anunciava um desafio. Então ela pensava que ele se importava com o lugar que se sentavam? Só para provar que não, levantou-se, caminhou até sua esposa e ocupou displicentemente a cadeira ao seu lado.

Ele reparou, com alguma satisfação, que Atena não conseguiu disfarçar completamente sua surpresa frente àquele gesto. Mas seu pequeno desconforto não era nada comparado ao olhar de Madge quando a criada entrou para servir Atena e viu ambos sentados em uma posição invertida à usual: a esposa na cabeceira e o marido ao seu lado, desafiando ainda que numa pequena escala a hierarquia com a qual a pobre senhora estivera acostumada durante toda a sua vida e que determinava que o chefe da casa e da família sentasse na posição de maior prestígio da mesa. Poseidon dessa vez teve que morder o interior de sua bochecha para conter o riso, e observou Madge se retirar em silêncio. Foi com surpresa que depois de algum tempo ouviu Atena clarear a garganta e falar de um jeito quase tímido:

— Estive fazendo uma breve inspeção no castelo, e também pensando no que você me disse sobre a questão dos criados, e acho que tive uma ideia sobre isso.

Poseidon recostou-se na cadeira e a observou enquanto ela falava ao mesmo tempo em que passava geleia minuciosamente sobre um pedaço de pão torrado e evitava fazer contato visual.

— Obviamente nós não podemos continuar mantendo um castelo deste tamanho apenas com Madge, principalmente porque ela não me parece muito sã, então o que temos que fazer é trazer novos criados da cidade. – Ela continuou ainda sem olhá-lo.

— Mas esse é o problema. - Poseidon interrompeu. - Durante todo o tempo em que meu tio governou, ele nunca se importou muito com a cidade, então ela se desenvolveu quase que independente do castelo. Eles nos pagam os impostos que devem, mas isso é tudo. Quando Lorde Oceano morreu, os criados que ainda viviam aqui pelo simples medo de serem punidos caso fossem embora voltaram para a cidade sem pestanejar. 

— Eu entendi quando você falou da primeira vez. – Ela o cortou em tom severo, obviamente irritada por ter sido interrompida, o encarando finalmente – O que eu quero propor é que melhoremos as condições para os criados, de modo a ser atrativo para a população tornar-se um. Nós podemos liberar todo o setor leste para que sejam suas moradias. Há três salas disponíveis lá, eu mesma conferi. Uma pode ser o dormitório masculino, outra o feminino, e a terceira, que fica ligada à cozinha, seria onde eles fariam as refeições.

Poseidon não falou nada, tendo aprendido sua lição com o olhar cortante que ela havia lançado quando fora atrapalhada pela primeira vez, mas considerou o que ela dizia, acenando para que continuasse. Atena prosseguiu:

— Se ter uma moradia com lareira sempre acesa e comida à mesa não for o suficiente, podemos oferecer algo mais. Uma vez ao mês, as famílias que possuírem membros vivendo no castelo poderão usar o moinho sem pagar nenhuma taxa.

Bem, isso era quase radical. As banalidades* eram algumas das fontes de renda mais substanciais do castelo, e abrir mão disso parecia arriscado. Ele a encarou, um pouco surpreso, e ela sorriu ao perceber a dúvida no seu olhar.

— Pense. Eles vão se degladiar para colocar gente aqui. Toda família de camponeses vai desejar um abatimento nas taxas que nos pagam, além da chance de abrigar uma parte de seus filhos sob a nossa supervisão. Os benefícios não seriam o mesmo para todos, é claro. Uma aia vale mais do que um ajudante de estrebaria, mas todos seriam auxiliados de algum modo.

— Essa é uma ideia maravilhosa. – Ele concedeu o elogio, ainda que hesitante. – Mas como você mesma disse, desse modo todos vão querer ter um lugar entre os servos do castelo. Como poderemos escolher apenas alguns?

Atena dispensou sua preocupação com um gesto displicente e um revirar de olhos. A animação e a confiança que ela depositava naquele plano eram visíveis em sua linguagem corporal.

— Eu já pensei nisso, é claro. Faremos uma espécie de concurso. As melhores cozinheiras, as melhores criadas, os melhores servos... Eu só preciso da sua autorização para começar a organizar tudo.

Foi a vez de Poseidon dispensar aquela linha de pensamento com um gesto.

— Você não precisa de minha autorização para nada. Tem total liberdade para tratar dos assuntos do castelo como achar melhor. Ele é sua responsabilidade, afinal.

Uma parte dele supôs que ela ficaria irritada com a imposição, mas Atena apenas sorriu e rapidamente se levantou da mesa, certamente já planejando tudo o que teria de organizar. Poseidon a observou dar-lhe as costas e sair, ainda um pouco atônito pela rapidez com a qual ela desenvolvera uma solução tão simples e eficiente para aquele primeiro problema que eles enfrentavam como senhores de Atlântida. Não estava nem um pouco mais perto de compreender como funcionava a mente afiada de sua esposa, mas estava certamente cada vez mais encantado pela sua personalidade singular.

 Logo ele também deixou o salão. Caminhou para seu novo escritório, onde uma papelada de problemas atrasados de um feudo enorme o esperava para ser resolvida. Pela primeira vez, entretanto, a perspectiva de guiar algo sozinho não o amedrontava, porque talvez ele não estivesse sozinho. Mesmo com a ainda evidente distância entre eles, talvez Poseidon e Atena pudessem se tornar aliados e conduzir tudo aquilo juntos. Só de pensar na possibilidade, se sentia muito mais aliviado e - mesmo contra sua vontade - mais esperançoso.


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Notas finais do capítulo

*banalidade: imposto cobrado pelo uso dos fornos e moinhos que o senhor feudal controlava