Halael levara Becca até o apartamento onde morava. O lugar era pequeno e bastante bagunçado. Ele vai até uma geladeira velha, dela tira duas latas de refrigerante e entrega uma a Becca. A garota se senta num sofá rasgado e fala.

   - Acho que já estou bem segura agora... Pode começar a explicar quem é você, por que tentou me matar e por que decidiu me salvar?

   - Bem, eu tinha sido contratado por Valente Gray para te matar. Tentei fazer isso, mas falhei. Descobri depois que esse assassinato acarretaria graves consequências e resolvi salvá-la. – explica Halael – Minha história basicamente é a seguinte. Eu era um dos anjos mais poderosos e respeitados do paraíso. Daí notei que os humanos ofertavam uma vida muito mais emocionante. Alimentei a partir de então o desejo de ser um deles. E caí!

   - Como você caiu? O que fez? – pergunta Becca, se aproximando.

   - Além deste desejo de ser humano, acabei me apaixonando por uma mulher da Terra. Foi durante uma missão na qual eu devia salvar uma cidade do ataque de anjos caídos...

   Seis mil a.C. Próximo a Enoque.

   Os que mais odiavam os homens agora estavam mais próximos deles do que nunca. E dentre eles, estava o arcanjo Azrael. Reuniram-se num vilarejo próximo a maior cidade daquele tempo, onde residiam três quartos da população do planeta.

   Azrael era um dos arcanjos mais poderosos, atrás apenas de Miguel, Lúcifer e Gabriel, superando até mesmo Rafael. Liderava, ao lado de Lúcifer, os hashmalins. Seus poderes iam desde a manipulação mental ao controle da natureza. Era um oponente invencível para os humanos. Diante disso, Miguel, que presidia o Conselho dos Arcanjos, aconselhado por Gabriel, enviou seu mais imbatível soldado, o Primeiro General para defender Enoque.

   Halael chegou a Enoque e foi muito bem recebido pelo ancião e líder religioso da cidade, embora não tenha sentido o mesmo em relação aos demais moradores de Enoque, acostumados a venerar os antepassados e não criaturas aladas.

   O anjo sentia a aproximação de Azrael e os demais anjos caídos. Era a hora do combate... Enoque estava representada por seu exercito de 100 mil homens liderados por um enviado dos céus.

   De longe já era possível avistar os poucos, mas poderosos oponentes, levantando a cada passo mais e mais poeira. Ao avistá-los, os soldados enoquianos tomaram aquilo como um estímulo e se lançaram aos gritos em sua direção. Halael abriu a boca para detê-los, mas nem ele próprio pode ouvir sua voz em meio aos descomunais gritos.

   O deserto tremeu, levantou-se uma tempestade de areia. Os pilares e muros de Enoque sacudiram. Azrael usava seu poder para criar obstáculos naturais contra o exercito humano. Uma imensa rachadura abriu-se, sepultando milhares de soldados e ferindo outros tantos.

   Os anjos caídos atravessam a rachadura num único pulo e iniciaram o ataque brutal. Era fácil para eles destroçar os frágeis humanos. Apenas três ou quatro caídos sucumbiram, vítimas de espadas afiadas.

   Mais da metade do imponente exercito enoquiano já sucumbira quando ficam frente a frente.

   - Porque tanto ódio? – pergunta Halael – Lembre-se de que somos apenas instrumentos do pai para salvaguardar seu legado.

   - Não me venha com essa conversa... Yaweh nos abandonou depois de tudo o que fizemos. Por bilhões de anos fecundamos estrelas e galáxias, exploramos os mais distantes recantos do universo, lançamos nos mares do Éden a matéria-prima da vida que resultou nos odiosos humanos... O livre-arbítrio era para ser nosso. Seria nossa recompensa. Mas Ele nos traiu e deu a alma a estes macacos.

   - Inveja... Ciúmes... Não percebe que é tão humano quanto eles? Partilham dos mesmos sentimentos, as mesmas ambições, os mesmos sonhos...

   - Nunca!

   - Não vê? Ambos sonham em ter um final feliz nos braços do Pai. Isso tudo é manha do caçulinha de Deus, saudades de Yaweh!

   Nessa hora Azrael tomou consciência de que aquilo era verdade. Ele sentia saudades de seu pai e tudo o que queria era contemplá-lo uma única vez. De repente os magos de Enoque entram em ação, lançando feitiços sobre Azrael. O arcanjo caído não consegue se defender. A espada de Halael atravessou seu peito. As pupilas de Azrael se contraíram e ele caiu numa poça de sangue. Olhos abertos, expressão de dor, contemplando o vazio, ouviu uma voz doce, amável, jamais ouvida por ele antes: “Durma em paz meu filho!”. Escuridão.

   Halael deixou de lado o corpo inerte da Azrael e continuou o embate, arrancando duas cabeças num único golpe. Viu-se cercado por anjos caídos. Notou que os últimos soldados humanos em batalha sucumbiriam em instantes Olhou de relance os portões de Enoque. A cidade foi invadida e logo estaria em chamas.

   Era o fim. Falhara.

   As laminas afiadas de várias espadas o transpassaram. Dor. Entregou-se ao inevitável...

  - Demônios? – perguntou Becca, despertando Halael de suas lembranças.

   - Ãhn? Ah não! São anjos expulsos e jogados na Terra, que consumidos por ciúmes dos humanos desafiaram os arcanjos.

   - E a mulher? – quis saber Becca, se aproximando ainda mais perto dele.

   - Envelheceu e morreu! – responde – Vivemos juntos por anos após minha queda, mas é óbvio que ela sucumbiria ao tempo...

   Quando percebem, Halael e Becca estão tão próximos que podiam sentir a respiração do outro. Olham-se olhos nos olhos. Beijam-se.