Flamma Amoris escrita por Karla Vieira


Capítulo 3
Pesadelos




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Marie Jean POV – 28 de Fevereiro de 2012

Uma semana se passou e eu estava profundamente enojada com a população daquela cidade. Antes de tudo acontecer, ninguém parecia notar a minha existência; eu era uma completa Maria Ninguém perdida naquele lugar. Agora, pareciam todos conhecerem-me, e isso não era o pior de tudo. O pior de tudo eram os olhares de pena que eu recebia onde quer que eu fosse. Eu não precisava de pena, não precisava de compreensão ou consideração daquelas pessoas que sequer davam-me bom dia quando me encontravam nas ruas.

Como se isso já não me bastasse, algumas pessoas começaram a se afastar de mim (ou eu que me afastei delas?). Por exemplo, Anne e Sara mal me olhavam na cara, quem dirá falar comigo. Teria eu feito alguma coisa para elas? Que eu saiba, não. Peter e Lisa continuavam junto comigo da mesma maneira que antes, tentando-me fazer voltar a ser a Marie Jean de antigamente. E Matt era um meio termo entre os dois. Era namorado de Sara, e ele ficava dividido entre estar na minha companhia ou ficar junto da namorada que me evitava completamente.

A biblioteca mais do que nunca passou a ser meu refúgio. Lá eu não era perseguida pelos olhares de pena de pessoas que realmente não sentiam nada por mim, não era perturbada pelos meus “amigos” que se afastaram de mim... Era simplesmente eu e o silêncio, eu e os milhares de livros daquele prédio; se bem que não era somente eu... Ethan ficava por lá também. Por mais que sempre chegássemos juntos ao prédio, não permanecíamos juntos nem trocávamos palavras. Cada um ia atrás do livro que queria e nada mais – eu sentava na minha antiga mesa e ele se sentava mais adiante.

Certa tarde, como de costume fui até o meu refúgio. Peguei um livro na prateleira e me dirigi para a minha amada mesinha no canto, reparando que Ethan hoje sentara mais perto de mim (ainda continuava a três mesas de distância, porém não cinco ou seis). Comecei a ler e o sono começou a apoderar-se de mim. Minhas pálpebras foram ficando cada vez mais pesadas e as letras ficavam turvas nas páginas, incompreensíveis...


Eu estava presa em uma sala de estar. Na minha sala de estar. O fogo espalhava-se ao meu redor, mas não me queimava; eu sentia apenas leves cócegas. Um sentimento ruim tomava conta de meu coração, apertando-o, dilacerando-o. Estava eu a procura de alguém, porém sem sucesso.

– Jean! Jean! – Gritou uma voz muito familiar. A voz de minha mãe. – Jean!

– Mãe, onde você está? – Gritei de volta. A porta da sala se abriu e eu pude sair, encontrando a casa inteira tomada pelas chamas. Vi minha mãe no final do corredor, e comecei a correr em direção à ela, porém o corredor era infindável – eu só podia ficar olhando-a queimar no fim do corredor, e correndo, correndo, sem conseguir chegar nela...

– Jean? Jean? – Uma voz masculina me chamou. Levantei a cabeça e abri os olhos, com a visão embaçada por um momento. Um vulto loiro estava a minha frente, e meus olhos demoraram um pouco para focalizarem quem estava na minha frente. Ethan estava parado de pé, com uma mão em meu ombro e olhar preocupado. – Você está bem?

– Sim, eu estou... Eu acho... – Respondi sonolenta. – Só estava dormindo.

– Não, você estava perguntando “Mãe, onde você está?” e estava se debatendo. Era um pesadelo?

– Acho que talvez isso não seja da sua conta. – Respondi rude. Ele franziu a testa e puxou a cadeira na minha frente, sentando-se.

– Sei que não começamos com o pé direito. – Disse ele, olhando nos meus olhos. – Mas eu quero recomeçar. O que você acha?

– Por mim tudo bem. – Peguei-me dizendo. Ele sorriu de canto, e estendeu a mão.

– Prazer, eu sou Ethan Williams e tenho dezoito anos. E você?

Apertei sua mão e sorri.

– Sou a Marie Jean e estou quase completando dezessete. Veio de onde, Ethan?

– Da Irlanda.

Começamos a conversar, fazendo quase que um joguinho de perguntas e respostas. Ethan, apesar daquela primeira impressão de rude, durão e introvertido, era um garoto legal. Divertido. Era totalmente o contrário do que parecia ser. E também tínhamos alguns pontos em comum, como gosto literário e musical. E novamente, não vi o tempo passar, mas desta vez não por causa dos livros, e sim por causa do garoto dos olhos azuis misteriosos que estava na minha frente.

Quando vi que o céu escurecia, percebi que já estava mais do que na hora de retornar para casa. Peguei minhas coisas e Ethan pegou as dele, e continuamos conversando enquanto íamos juntos para casa – e por um acaso, a casa dele ficava ao lado da minha. Chegamos diante da minha casa e nos despedimos, e antes de entrar, olhei-o atrapalhar-se com as chaves de casa. Sorri e abri a porta.

– Marie Jean? – Chamou minha tia em algum lugar da casa.

– Sim. – Respondi, largando minha mochila em cima do sofá.

– Venha cá, por favor. Na cozinha.

Fui até lá e a encontrei picando verduras para o jantar.

– Oi.

– Oi querida. – Disse ela. – Sente-se. Precisamos conversar.

Intrigada, puxei uma cadeira e me sentei, enquanto minha tia se sentava a minha frente.

– O que houve? – Perguntei.

– Saiu o resultado da perícia, sobre o incêndio.

Gelei. Arrumei-me na cadeira enquanto tia Denise continuava a falar.

– Não conseguiram descobrir a causa do incêndio, porém descobriram uma coisa muito intrigante.

– O quê? – Perguntei. Isso estava ficando cada vez mais angustiante.

– Não encontraram vestígios de sua mãe.

– Como é?! – Exclamei. Isso não faz sentido.

– Não encontraram o corpo carbonizado da sua mãe. Nada. A deram, então, como desaparecida, já que ela não apareceu nessa uma semana que se passou desde o acidente.

– Isso não faz sentido... Por que ela sumiria? Por que não daria sinal de vida?

– São perguntas aparentemente sem resposta, querida. Só Deus sabe. Vá tomar um banho enquanto eu preparo o jantar.

– Tudo bem... – Murmurei quase que automático. Eu não conseguia assimilar o que tia Denise me dissera; nada fazia sentido, nada se encaixava. Alguma coisa estava estranhamente errada. Saí da cozinha e subi as escadas ainda com a mente perturbada dos pensamentos que não se encaixavam. Entrei no meu quarto e meu olhar foi direto para a janela – na frente desta, havia a janela da casa ao lado, da casa de Ethan. E aparentemente a janela do quarto dele, também. Lá estava ele, trocando de roupa. “Não olha, Marie Jean, não olha...” pensei, tentando advertir a mim mesma. Desviei o olhar e fui até meu guarda-roupa, que ainda ficava no campo de visão da janela. Olhei mais uma vez, sem querer (ou por querer) e ele estava colocando uma camisa. Ethan se virou e me encontrou olhando-o, e acenou. Acenei de volta e ele sinalizou para que eu esperasse. Fui até a janela enquanto ele pegava alguma coisa no quarto e escrevia nela. Ele ergueu a placa improvisada e eu pude ler: “Tudo bem com você?”.

Fiz o mesmo sinal e peguei um caderno jogado na minha escrivaninha e uma caneta. Escrevi um “Mais ou menos... E você?” e mostrei para ele. Ethan respondeu “O que houve?” e expressou preocupação. Eu suspirei e escrevi “Muita coisa para ser contada por bilhetes. Amanhã eu te conto, eu prometo”. Mostrei e ele assentiu, dando de ombros. Acenei um tchau para ele, peguei minhas roupas e fui tomar o banho.

Horas mais tarde, eu me preparava para dormir. Botei meu pijama, apaguei a luz e deitei na cama, olhando para o teto que tinha colado nele vários adesivos que brilham no escuro: planetas, estrelas, naves espaciais, sol e a lua. Sem sono, comecei a imaginar aquelas peças se mexendo, formando uma pequena história na minha mente: as duas naves voando uma atrás da outra, por entre as estrelas e planetas, travando uma furiosa perseguição estelar. A nave maior perseguindo a menor, lançando lasers vermelhos, enquanto a menor fugia e fazia manobras arriscadas para atirar lasers azuis.

Comecei a ver as imagens se mexendo, aproximando-se como se fossem um filme 3D. Achei isso completamente estranho – nunca acontecera antes – sacudi a cabeça, virei para o lado e fechei os olhos.


Ethan Williams POV – Madrugada de 29 de Fevereiro


Alguém deveria ter me dito que ela era assim, tão linda, tão incomum. Não se assemelhava de nenhuma forma com as garotas que eu já conheci na minha miserável vida; Marie Jean era diferente. Não que isso vá me atrapalhar na minha missão. Vou enganá-la, conseguir sua confiança – quem sabe, até algo mais do que apenas confiança – e no fim, levá-la para o lugar onde ela deve morrer. É assim que tem que ser, e é assim que será. Ela sequer imagina o futuro que a aguarda. Ela sequer faz ideia de quem ela é de verdade.

A verdade?

Ela é uma bruxa. Poderosa, muito poderosa. Perigosa também.

E é por isso que ela deve ser morta antes de completar dezessete anos. Pessoas da linhagem dela nunca sequer deveriam ter existido. Se não houvessem existido, os meus problemas também não existiriam. Eu seria apenas um “garoto normal”. Eu ainda teria a minha família, porque meu mestre também não existiria e não os mandaria para uma missão que ele já sabia ser falha e me deixar órfão. Eu nunca seria o que eu sou agora.

O que eu sou?

Um caçador de bruxas.



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