A viagem de carro até que não foi tão mal, como Alexander era o único maior de idade entre nós fora ele quem dirigira. Richard insistira em ir na frente e como eu ainda não estou pronto para ser “Melody” fui atrás. Meus primos ficaram o tempo todo implicando um com o outro sobre coisas completamente banais, enquanto que eu apenas insisti em ficar quietinho no meu canto, rindo quando eles agiam como crianças de cinco anos e preocupando-me quando as discussões acabavam se tornando brigadas físicas e o carro quase batia. Não sei como meu primo conseguiu a carteira de motorista, tenho certeza que o cara que lhe deu a carteira não sabia da existência de Richard.

 A casa de meus primos era extremamente grande. Quantas pessoas será que caberiam lá dentro? Cem? Duzentas? Parecia aquelas mansões de filmes antigos, irrevogavelmente encantadora!

 -Meu sobrinho!

 Minha tia veio receber-me assim que cheguei na porta da casa. Ela tinha cabelos negros, deixando claro de quem meus primos haviam puxado a genética do cabelo negro. Seus olhos eram castanhos claros, demonstrando tanta gentileza... Ela tinha um porte pequeno, mas mesmo assim era mais alta do que eu.

 -Na verdade mãe, sobrinha. Melody. – fora Richard quem fez a correção.

 Minha tia deu dois passos para trás, soltando-me e olhando-me de um modo estranho. O pavor tomou conta de mim, será que ela não iria engolir que sou um garoto...? O medo trasbordou de mim quando percebi o que estava fazendo...

 Eu estava mentindo para minha tia...

 Quando eu abri a boca para contar a verdade, fui interrompido pelo sorriso radiante que surgiu no rosto de minha tia, que começou a rodopiar de um modo e estranho e me abraçou com muito mais força do que antes, quase me esmagando.

 -Que bom, que bom! Eu finalmente terei uma filha menina! – ela gritou de um modo tão alegre que acabou me cativando por completo.

 Pela primeira vez em toda minha vida, eu queria ser uma garota.

 -Melody, você não tem noção do quanto eu estou feliz em finalmente poder ter uma filha! Eu sempre quis ter uma menina, poder enfeitar com tantas roupas diferentes, acessórios, dar dicas sobre garotos, ajudar a conquistar aquele garoto especial...

 Minha tia continuou falando sem parar para respirar todos os benefícios de ter uma filha. Eu apenas sorri encabulado e tentei disfarçar o fato de que eu não tinha os dotes necessários para ser uma garota, apenas algo masculino, se é que me entendem.

 -Eu havia arranjado um quarto para você, mas eu achei que era um garoto. Como você é uma menina precisará de um quarto bem maior, para caber bastante espelhos, roupas, maquiagem... Richard! Tire suas coisas de seu quarto e escolha outro, sua prima precisa de muito mais espaço.

 Arregalei os olhos assustado, eu já estava começando a causar problemas.

 -Não é necessário um quarto muito grande. Eu prefiro algo pequeno e aconchegante. – eu disse envergonhado, tentando contornar a situação. –Você não precisa sair de seu quarto Richard, não quero causar problemas.

 -Oh Mel, você é tão meiga e sensível! Meu Marido falou que você se importava muito com o sentimento dos outros, mas ele também disse que você é um garoto... Como será que ele conseguiu enganar-se de modo tão feio? Mel nem se parece com um garoto, tirando a falta de curvinhas...

 Ela estava secando o meu corpo! Droga, ainda bem que estou com calças largas...

 -Papai disse que Melody é um garoto porque o nosso tio sempre quis ter um garoto, lembra? Ele sempre dizia o quanto queria um garoto e que queria ensiná-lo esportes e conquistar garotas... Sabe, essas coisas de homem. Como ele morreu sem ter um filho, apenas uma menina, papai quis tornar o desejo dele real.

 Quanto tempo será que Richard passou pensando em todas as mentiras que diria para sustentar a farsa de que sou garota? E ele falava com tanta convicção! Quantas pessoas eu magoaria com isso...? Bem, pelo menos minha tia estava feliz pensando em mim como a filha que ela nunca teve.

 -Talvez você esteja certo, lembro o quanto seu tio estava animado contando a todos que teria um menino e quanto desejava ele.

 Isso era verdade. Papai sempre quis ter um filho bem masculino, nem preciso comentar a decepção dele em me ter...

 -Quanto ao problema de seu quarto Mel, não se preocupe com isso! Eu conheço o quarto perfeito para você! Ele é grande e tem closet, ou seja, você pode ter muitas roupas sem precisar de um monte de guarda-roupas ocupando espaço. Ah, os quartos com banheiro não tem closet, mas este quarto tem um banheiro bem ao lado do seu quarto que será só seu, assim terá espaço para você colocar todos os seus produtos para cabelo, pele...

 Quando me dei por mim já estava sendo arrastado pela mão escada acima, procurando pelos corredores um quarto na qual eu não faço a mínima de onde fica.

 -Alexander, traga as malas da Mel!

 É muito estranho ouvir eles falando sempre “Melody, Mel...” ao invés de Michel. Claro que no colégio sempre tinha aqueles que zoavam comigo me chamando de Melody, mas era de vez em quando, meu nome sempre fora Michel, nome de garoto.

 Acho que não tenho mais saída: Terei de ser uma garota. Minha tia está feliz com isso, meus primos são meus amigos assim. Eu tenho a impressão de que se Alexander descobrir que sou um garoto ele não vai gostar de mim, pelo contrário, vai me querer o mais longe possível e eu não conseguiria viver na casa dele contra sua vontade.

 Então, para fazer os outros felizes, mesmo eu achando isso muito ruim e repugnante, para poder fazer minha família feliz eu iria agir como uma garota e não como realmente sou. Só de pensar nisso faz eu me sentir muito mal, eu estaria infeliz comigo mesmo, vivendo uma farsa, mas tudo bem se isto fizesse o que agora eu chamo de família feliz...

 ...Não é...?

 -O quarto que você terá aqui tem até uma sacada só para você! A sacada também tem vista para toda a rua, você poderá ter vários amigos e quem sabe até um namorado? Ahh, com certeza eu vou ajudá-la a conquistá-lo! Você verá filha...

 -Filha?

Olhei assustado para minha tia que parecia estar com a cabeça nas nuvens, quando repeti sua última palavra ela desceu de volta para a Terra e parou no meio do corredor, encarando-me sem graça, ficando com as bochechas rosadas instantaneamente.

 -Ah Mel, desculpe. É que eu sempre quis ter uma menina, tentei duas vezes, mas acabei tendo dois garotos. Sei que nunca fomos próximas já que você morava em uma cidade tão longe daqui, mas assim que eu soube que você é uma garota apaixonei-me por você com um amor o qual apenas uma mãe tem por uma filha! Eu queria que você sentisse por mim este mesmo amor que eu sinto por você. Mas eu entendo como você se sente Melody, você tinha sua própria mãe e eu...

 Eu estava me sentindo um verdadeiro lixo com tudo aquilo que ela dizia, afinal, eu não sou uma garota nem gostaria de ser uma, eu estava mentindo e assim que ela descobrisse a verdade... Antes que ela continuasse a falar eu a interrompi.

 -Na verdade tia, eu não cheguei a conhecer minha mãe e sempre quis ter uma. Eu... Não sei se me acostumarei tão rápido em ser sua filha, mas... Se você realmente quiser... Eu com certeza irei gostar muito.

 Eu sorri tímido, sentindo-me péssimo. Eu estava tornando minha vida uma farsa. Minha tia não me queria como seu filho, queria Melody. Esse pensamento triste me fez desejar poder voltar no tempo e nunca ouvir Richard, eu não sou uma garota, eu odiaria ter nascido uma garota e eu odeio ter feições femininas, apenas tentei aceitar isso e tirar proveito de minha constrangedora situação.

 Minha tia estava empolgada, me envolveu em seus braços e quase me sufocou. Ela estava emocionada, mas de um jeito feliz. Eu estava emocionado, pensando em como em tão pouco tempo eu consegui destruir minha vida...