A Pequena Coleção de Memórias escrita por Scila


Capítulo 5
O Conto da Abertura da Loja




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O Conto da Abertura da Loja


Fred e ele tinham planejado aquele momento por tanto tempo que parecia surreal finalmente presenciá-lo. Naquela época, por mais tempo que tinham passado se preparando, abrir aquela loja não era nada além do primeiro passo para algo maior. Porém agora significava manter Fred com ele de alguma forma.

Olhava para as prateleiras vazias, encarava as caixas com produtos novos em folha apenas esperando para serem vendidos e não conseguia entender a razão. Você cresce com alguém que, em essência, é você e depois essa pessoa morre. O que você faz? O que você pode fazer? O que você se torna depois disso?

Crescer em uma família grande pode se dizer que você não se acostuma com a solidão, simplesmente não faz parte da vida. Acorda, come, vive, respira, dorme companhia. Solidão parece mais uma alegria do que um vazio imenso no coração, porque solidão nada mais é, para você, do que uma ilusão distante. E aquilo que não temos, quase sempre vira a explicação e solução para todos os problemas de sua mísera existência.

Uma família grande cria uma redoma protetora. Agora multiplique isso por mil e poderá imaginar o que significa ter um irmão gêmeo. Alguém que pode confiar absolutamente em tudo e para todos os momentos. Não é a mesma coisa que família porque até mesmo escondemos coisas de pais, tios, avós e irmãos. Fred era alguém com quem ele podia ser sincero em todos os aspectos, porque Fred era Jorge. E Jorge era Fred.

Diferenças existiam: de personalidade, sutilezas físicas quase invisivéis, gostos (Fred preferia as ruivas, Jorge as loiras), opiniões (Jorge era afavor das piadas clássicas como banana na cara, Fred gostava das mais cruéis). Mas nada daquilo realmente mudava o simples fato que jamais teria alguém tão próximo, tão essencial e especial em sua vida.

O que você faz quando a sua razão de viver, aquela pessoa que o empurra para frente atrás de algum sonho e ambição, morre? Desaparece com uma meia-piada formada?

Todos eles tentaram animá-lo, participar de sua vida. Pai e mãe vieram ajudá-lo com a mudanças dos móveis, o balcão, as cadeiras, as prateleiras... Ele tentava ingressar Jorge em uma conversa sobre produtos novos, ela queria saber como Jorge cuidaria das finanças e contabilidade. Mas ambos evitavam o olhar dele. Claro, ele era Fred. Quem iria querer se lembrar do filho morto toda vez que olha para outro?

Fred o provocou no espelho... "Volte para a entrada e finja que sou eu. Vai ser hilário."

Jorge o ignorou. Não tinha graça. Havia piadas melhores a serem feitas.

Carlinhos o ajudou a levitar a enorme quantidade de caixas de produto para dentro do estoque. Falou pouco e trabalhou o dobro para compensar. Bateu nas costas de Jorge, com um sorriso encorajador meio-desanimado, meio-carinhoso. Estranho como o gesto só deixou Jorge mais solitário. Quantas vezes ele e Fred se trancavam no quarto, ignorando o resto da família, favorecendo um dia inteiro de invenções e explosões? Eram uma família unida, mas Jorge descobria aos poucos que Fred sempre fora o principal, o mais importante.

Gui e a esposa vieram com a filha no colo para lhe dar apoio moral. Não fizeram muita coisa, e falaram o triplo. Queriam levá-lo para uma viagem até a França, falando que havia uma loja que poderia virar concorrência para ele. Jorge recusou prontamete, já tinha dificuldade enorme para levantar da cama todo dia, nem queria imaginar o esforço para sair do país.

Lino Jordan apareceu no fim da tarde, quando a vitrine estava quase pronta. Ofereceu para cuidar da loja sempre que Jorge precisasse. Parou o trabalho e foi tomar uma bebida no pub mais próximo com o amigo. Riram muito por um bom tempo, lembrando de todas as piadas e confusões que causaram, principalmente nas partidas de Quadribol. Jorge não era de ficar bêbado, parava justamente no momento certo. Fred? Fazia questão de exagerar até o ponto de cair.

Naquela noite, Jorge foi Fred. E teve que ser carregado de volta para a loja por Lino. Jorge começava a tentar ser Fred. Até teve um encontro com a ex do irmão, Angelina. Parecia mais fácil assim, parecia ser o que Angelina queria pelo menos. Rever Fred. Não Jorge.

Será que alguma vez foram algo que não fosse uma única voz? Pensar nos dois separados parecia ser dificil para todos. Era uma peça faltando, um brinquedo quebrado e sem concerto.

Gina o acordou com um tapa na cara e um copo d'água jogado contra sua face. Harry estava atrás dela, desviando o olhar exatamente como a mãe e o pai. Os dois ajudaram Jorge a levantar. Trouxeram café com eles, uma oferta de paz. Depois terminaram de arrumar o balcão e as prateleiras.

Toda vez que ele saia de perto dos dois, podia ouvir sussuros e Gina o encarando pelo canto dos olhos. Talvez esperassem que ele começasse a chorar a qualquer minuto ou então comentavam o quanto frio e distante parecia. Jorge não arranjou forças para se importar.

Percy o abraçou forte. Foi tão surpreendente que Jorge conseguiu forjar uma piada. Mas ai ele lembrou: Percy abraçava Fred. Sentia-se culpado pela morte dele e queria se desculpar. Quando alguém abraçava Jorge, era porque queria chegar perto de Fred também. Ele não ligava, Jorge era Fred.

Naquelas horas se perguntava quem realmente morrera. Fred... Ou Jorge? Aquele que fiscamente fora rasgado daquele mundo ou o outro que passava a representar o morto? Virava e revirava na cama, tentando entender quem ele era agora. O que significava viver sem o outro. E para onde poderia ir no futuro.

A lógica e o mundo o diziam para sofrer um tempo e depois seguir em frente. Mas ele não via razão. Qual era a razão? Por que Fred e não ele, morrera? O que Jorge tinha a oferecer no mundo, agora que metade dele tinha partido? O que Jorge era a não ser uma extensão de Fred?

Quem virou a placa na porta de "Fechado" para "Aberto" foi o último irmão. Rony chegou carregando uma caixa meio velha e desgastada. Abriu sem cerimônias e dela tirou um porta-retrato com uma foto, o colocando numa das prateleiras mais altas. Jorge encarou a imagem e depois riu. Pobre Ronald Billius, tentando mas sempre falhando.

- Rony, esse não é o Fred. Sou eu.

O irmão o encarou sério.

- Eu sei.

Foi simples assim. "Eu existo ainda, sem você, mas existo."


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