The Wall escrita por Taigo Leão


Capítulo 1
Capítulo 1




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Agora que fique registrado, logo no início, que estes são apenas os registros de um homem que precisou escrever, pois se falasse ninguém acreditaria. Como era necessário relatar, este homem escreveu. Isso porque em sua mente, por mais difícil e irreal que fosse, ele sabia que, se tardasse, em algum momento não poderia mais tocar neste assunto. A escrita o auxiliou durante esse período, pois o fazia esquecer sua real situação. Quando escrevia, era como se o universo estivesse paralisado; era como estar dentro de uma caixa, em um universo paralelo.
Este homem - que poderia ser qualquer um - discretamente se fechou dentro de si até virar algo concreto, deixando todos os outros para o lado de fora. Espero que você entenda que não há nada mais solitário do que esse tipo de condição, pois embora ainda pudesse ver tudo que estava ao seu alcance, nada mais podia fazer. Estou dizendo que esse homem poderia ter virado um fantasma, um animal, ou até mesmo outra pessoa, mas, infelizmente, se tornou em algo mais solitário do que todas as outras opções.
Estes são os registros de uma parede, feitos por um homem parede.

"Deste mundo quebrado para você, além das noites onde parece que tudo vai acabar de alguma forma."

Embora pareça ser um assunto ficcional, como as coisas que soam completamente irreal para o mundo que conhecemos, aqui explicarei como ser um homem parede, baseado no que aprendi e nas coisas que vivenciei:

Para se tornar um homem parede, não é necessário nada de muito complicado, porém, os requisitos são tão vitais como bisturis e anestesias para médicos cirurgiões. Digo isso porque assim que você se torna um homem parede, é muito difícil conseguir voltar para a condição anterior. Note que usei "se tornar" ao invés de "escolher", porque você, assim como eu, não pode escolher ser ou não ser um homem parede; acredito que ninguém tenha essa escolha. No momento em que você o vê, você se torna um. É dispensável toda e qualquer revolta perante isso, pois embora seja uma revolta árdua, não trará resultados.
Nada podemos mudar em relação as coisas que não estão ao nosso alcance, nos resta apenas aceitar, então aqui vai um pequeno manual para ajudá-lo caso se encontre na mesma situação que eu:

Tudo que você precisará é de determinação, paciência e frieza.

Você deve ser muito frio para não se importar com as coisas que acontece e perder suas expressões. Você também não deve ser ninguém influente, pois a "síndrome de fantasma" apenas aumentará após entrar neste mundo, e qualquer fama que pertencer a você será perdida. Um homem parede nada mais é do que um homem que consegue não se importar com o que as pessoas dizem ou fazem. é um homem que não importa se está lá ou não, um homem que não possui aberturas. um homem frio, concreto, que não se importa - ou finge não se importar. Minha vontade de ser amado me torna miserável as vezes, mas agora estou aqui, uma parede.

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No centro da cidade, torna-se extremamente banal a visão de uma multidão de pessoas, que se forma de repente, e tão já desaparece. São pessoas que caminham como formigas, com pressa, em direção a algo que não podem alcançar sozinhas. Essas pessoas se seguem nos trens, nos carros, e nas ruas, com o intuito de não caminharem sozinhas.
Durante muito tempo, foi do meu agrado caminhar entre essas pessoas. Pegava trens, ia em exposições e caminhadas apenas para me sentir parte de algo. Isso me era agradável, pois mesmo sem nos comunicar, a multidão era unida, até que cada um, de forma egoísta, nos abandonava para se juntar a outra multidão. Assim, aos poucos, íamos nos dissipando: alguns tomavam um ônibus, outros viravam em determinada esquina... não me recordo de uma única multidão que tenha durado mais do que três ou quatro quarteirões, e assim, no fim, eu estava sozinho novamente.
Aos poucos, minha multidão tornava-se um grupo. Logo um trio, uma dupla, e no fim, era apenas eu. O primeiro dos acontecimentos que descreverei aqui se dá início justamente em um destes dias, onde, por mais que eu tentasse, não poderia esquecer. Confesso que, a princípio, não foi algo relevante, mas em sequência, este fato desencadeou alguns outros fatores, como uma bola de neve, que mudaram completamente a minha vida.

Eu estava com meu grupo até o momento em que eles me deixaram. Dessa vez, eu não lamentava o abandono, pois meus interesses não estavam mais interligado com o grupo que caminhava. Eu sentia fome.
Não apenas fome, sentia também uma leve dor em meu peito, o que me fez cansar rapidamente de caminhar. Graças aos céus eu encontrei um pequeno restaurante que, embora fosse humilde, havia chamado minha atenção. Sua placa era velha e estava tão desgastada que eu não conseguia dizer bem como se chamava, e não só a placa, toda a entrada não estava tão bem conservada assim. Geralmente, costumo comer em lugares assim, pois quase nunca esse tipo de lugar se encontra cheio. (embora goste de caminhar em multidões, prefiro me alimentar sozinho. Acredito que isso seja porque um homem, por mais disciplinado que seja, não pode suportar uma vida social ativa o tempo todo. Não importa sua disciplina, este homem, hora ou outra, irá precisar de um momento a sós, e eu o encontro quando faço minhas refeições).
Como imaginei, aquele restaurante não estava cheio. Ele era pequeno e possuía apenas algumas mesas – ao todo, devia suportar cerca de 20 pessoas –, e ali estava eu, fazendo companhia para mais três ou quatro homens que estavam ali, em lugares distintos e em silêncio. Se não fosse a música que tocava no rádio, aquele lugar estaria completamente silencioso, mas isso não era um problema: eu estava com fome, apenas isso.
Parei rente ao balcão e esperei por alguns minutos, mas ninguém veio me atender. Cocei minha garganta, para ver se chamava a atenção de alguém, mas infelizmente ninguém pareceu notar-me. Pensei em lançar uma pergunta em alto e bom tom para todos aqueles homens, mas essa atitude profanaria a paz que havia ali, então, sucintamente, me aproximei de um deles, e perguntei-lhe baixo se havia alguém ali que pudesse me atender, mas este homem não levantou a cabeça para me olhar e nem mesmo me dirigiu um único suspiro; apenas continuou lá, imóvel, de cabeça baixa.
— Será que está dormindo? – Me perguntei, mas não podia ter qualquer tipo de certeza sobre isso, pois embora estivesse parado, seus olhos estavam abertos. Tudo o que conseguia saber é que ali estava ele, imóvel, me ignorando. Me cabia apenas me afastar, e foi o que fiz.
Nesse exato momento, uma energia vindo da entrada do local havia chamado minha atenção: Um homem estava ali – um senhor –, e me encarava, com um olhar malicioso.
A princípio, questionei-me sobre a permanência daquele senhor no recinto, pois ele vestia apenas calças jeans, estando nu da cintura para cima, mas não era como se tivesse alguém ali pronto para expulsá-lo – Sendo sincero, parecia que, assim como eu, aquele senhor não fora visto por ninguém ali. - E era magro, muito magro; com cabelos brancos e olhos profundos, que me olhavam de uma forma arrepiante. Era como se quisesse dizer algo, mas nada dizia.
Embora ele fosse o único a me notar, por algum motivo senti ódio e repulsa sobre sua presença, o que me fez relutar sobre falar com ele, então apenas tentei ignorar sua presença, que naquelas condições, era absoluta e dominante, o que alimentava ainda mais meu ódio.
Aquele senhor devia estar parado ali a algum tempo, e o que mais me assustava era o fato de não ter notado quando entrei. Decerto ele estava ali, pois o único som que ecoava dentro daquele local era de meus passos. Não houve um único som além destes depois que entrei ali. Com toda certeza ele sempre esteve ali, olhando para mim, de uma forma até mesmo... Bizarra. Por mais que eu caminhasse um pouco, saindo de sua frente, eu ainda era o foco de seu olhar, mesmo que ele não movesse sua cabeça. Isso me fez odiá-lo ainda mais. Foi como se ele se achasse superior a mim, apenas por ter me pregado esse susto. Como um senhor de idade consegue andar em tais condições, nu da cintura por cima, sem se importar com o que os outros irão falar? Com certeza já deve estar caducando, e por isso o ignoravam ali, mas o fato de nós dois sermos ignorados naquele lugar alimentava ainda mais o meu ódio, pois queria dizer que, na visão de todos os outros presentes, eu e esse senhor estávamos no mesmo patamar.
Enquanto o odiava, ele permanecia imóvel, isso é um fato. Não movia sua cabeça nem um pouco, mas continuava a me olhar, movendo apenas os seus olhos. Em determinado momento, não fazia mais sentido permanecer ali dentro: ninguém se movia; ninguém me dava atenção. Tudo que havia era o ódio. Permanecer ali revelou-se como uma brincadeira de criança, onde o velho me encarava e eu tentava fugir de seu olhar. Quando pensei isso, pareceu que ele leu meu sentimento, pois sua expressão plena mudou para algo um pouco triste, como se estivesse realmente chateado, mas tirando essa sutil mudança de expressão, ele não se moveu nem um centímetro. E por falar nisso, eu não teria notado essa mudança se não estivesse olhando fixamente para seu rosto.
Sinceramente, além do ódio, senti uma espécie de medo daquele senhor. Embora ele fosse muito magro e um homem de idade, sua presença ali era forte e única. Era como se, depois de notá-lo, fosse impossível esquecer que ele estava ali. Além disso, ninguém parecia estar disposto a me atender, e aqueles clientes estranhos não emitiam um único som; eles nem mesmo olhavam para mim. Era como se, assim como o senhor, eu não estivesse ali. Era como se ninguém estivesse realmente ali.
Zangado, achei melhor sair daquele lugar. A princípio relutei um pouco sobre isso, pois seria necessário passar pela zona de alcance daquele senhor, e seu olhar malicioso continuava a me perseguir, trazendo calafrios. Por mais que eu ansiasse me aproximar da porta – e consequentemente, dele -, eu temia que o senhor fizesse algo. Era um medo irracional, como sentir medo de ser agredido por um sem-teto ou por um idoso – Essas eram as duas definições que aquele homem tinha nesse momento - E embora ele fosse tudo que eu temia agora, para ele, eu não devia passar de um objeto de observação, pois desde que o notei, ele se mantinha estático, sem mover um único músculo - em minha concepção, ele nem mesmo piscava.
Ele apenas me olhava, sem nem mesmo mover sua cabeça para isso. Com certeza ele estava se divertindo com meu misto de sentimentos.
Essa situação me fez recordar de uma cena que vi em um documentário a um tempo atrás, onde um cervo tentava fugir de um leão. No documentário, acontecia exatamente da mesma forma: O cervo ficava imóvel, esperando o leão dar o bote, e o leão também ficava imóvel, cauteloso, aguardando o momento certo para isso. Esse tipo de situação pode ser decidida em um milésimo de segundo. Um milésimo de segundo pode, literalmente, mudar o rumo de qualquer coisa no mundo: Uma bola importante de um campeonato, um cientista fazendo uma descoberta crucial em uma experiência de laboratório, ou uma caça perfeita. Eu imaginei que, qualquer passo em falso poderia significar o meu fim, pois aquele senhor me atacaria, pulando em cima de mim.
Como qualquer medo irracional, quando passei por ele, nada ocorreu. Apenas respirei fundo e passei rapidamente para não chamar muita atenção, de punhos fechados, pronto para me defender. E, indo contra todas as ideias que minha mente me pregava, nada ocorreu, ele nem mesmo olhou para mim quando passei.

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O ódio continuou forte em meu peito até eu chegar ao meu apartamento, onde posso me sentir em paz.
Como é um apartamento pequeno, não há muito o que fazer por aqui, então, sempre que posso, tento observar os outros pela janela que dá na área comum do prédio. Sendo sincero, existe algo nesse apartamento que me faz ficar; algo que não me deixa ir embora: Aqui sinto certo conforto e uma nostalgia peculiar, mas não sei explicar o real motivo por trás disso. Além de todo o mofo, infiltrações e a falta de privacidade, me sinto em casa. Sei que existem lugares melhores lá fora, mas não sei bem se mereço lugares como esses. A verdade é que nós nos adequamos aos lugares que achamos merecer, por isso não vou embora.
Aparentemente, este edifício foi construído de uma forma que obstruísse completamente a privacidade de seus inquilinos. Este velho prédio não possui apartamentos grandes, as paredes são finas, os corredores são pequenos, e as janelas do primeiro andar – o qual moro -, levam para a área comum do prédio, que, em alguns dias, acaba sendo "dominada” pelos transeuntes que nem mesmo moram aqui. Estes apenas veem os portões abertos e entram. Para explicar melhor: da calçada existe um portão que leva para a área comum do prédio. Atravessando essa área, há o portão para o interior do edifício que vivo. Ou seja, para entrar no edifício, é necessário passar por essa área comum, mas nem todos que entram na área comum moram no edifício. Ao menos temos um porteiro para cuidar da segurança de tudo. Digo segurança, mas não vejo por que um ladrão invadiria esse local. Tudo que me preocupa são bêbados e sem-teto (ou uma mistura dos dois).
Em meu apartamento, há duas janelas que são importantes para mim. A primeira se encontra em meu quarto, e através dela, posso ver tudo que acontece na área comum. A outra, menor, se encontra em minha cozinha, e através dela é possível ver o pequeno beco que fica atrás do apartamento. Eu não gosto muito dessa, mas me é importante.
A área comum do edifício não passa de uma pequena praça. Pelo design do prédio, daqui é possível ver outras janelas. Quando me mudei para cá, essa era uma praça bonita. Nela havia um pequeno lago, mas hoje há apenas a cavidade onde ficava o lago, além dos transeuntes que vem e vão, mesmo sem morar.
Enquanto estava na janela maior observando a paisagem, senti uma espécie de incômodo, como uma ansiedade. Foi como um arrepio, e deduzi que algo estava errado. Essa sensação me fez ir até a cozinha, como se algo ali me atraísse, e minha dedução estava certa: algo na janela menor me chamava atenção. Era como se alguém estivesse ali, por trás da cortina e do vidro, e me olhasse através de tudo que havia entre nós. Por um momento, juro que pude ver sua silhueta, mas ao levantar a cortina, vi que não havia nada ali. Essa janela não trazia perigo, pois além de não ser tão grande para alguém conseguir passar tranquilamente, havia as grades. Atravessá-la realmente exigiria muito esforço e força de vontade.
Mesmo após ver com meus próprios olhos que não havia ninguém se escondendo, ainda me sentia observado, e acredito que essa pode ser uma das piores sensações que uma pessoa pode sentir. Acho isso curioso, pois gostamos de observar, mas não é qualquer um que pode ser alguém que é observado. Quando observamos, nos sentimos bem, mas quando somos observados, ainda mais pelo desconhecido, sentimos certo incômodo.

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Após um dia e meio, ainda me sentia incomodado por aquela maldita janela.
Não sei bem o que estava acontecendo. Eu estava perdendo completamente a noção lógica: já havia me certificado mais de uma vez que não havia ninguém ali, mas, mesmo assim, sentia esse medo irracional, essa sensação esquisita, que me dava vontade de sair o mais rápido possível daquele lugar. Mas, onde mais eu poderia pertencer, além deste lugar esquisito?
Esse medo irracional fez com que eu comprasse cortinas mais grossas, a fim de tentar fazer com que aquela silhueta desaparecesse. Essa silhueta brincava comigo e estava sempre alerta: Com a cortina fechada, ela surgia, mas assim que eu a abria, então a mesma desaparecia. Seria apenas um fruto de minha imaginação? Eu poderia estar ficando louco, mas me sinto completamente são. Tenho a certeza absoluta de que há algo aqui, e isso está me dando nos nervos.
Quando desisti de escondê-lo, passei a deixar a cortina aberta. Se havia algo ali, que se mostrasse rápido, para apaziguar esse sofrimento. E como se entendesse a mensagem que eu tentava passar, não demorou muito para que aquilo se revelasse: eu estava no quarto e novamente tive aquela sensação. Não era dentro do cômodo, mas daquele maldito lugar, então me apressei para ir até a cozinha e o vi: no canto da janela, tímido, como se tentasse se esconder, mas, ao mesmo tempo, olhar. Sim, aquele senhor estava parado do lado de fora de minha casa. De início todo aquele ódio voltou para mim, e pensei que, se o evitasse, ele iria embora, mas lá no fundo eu sabia que, firme como era, ele não se deixaria levar pelo desdém. Embora eu pudesse fingir que ele não estava ali ou fosse invisível, ele tinha completa certeza que estava ali, então permaneceria, imóvel, me olhando, como fez no restaurante, pois não havia nada que o impediria de fazer o que queria.
Ele me observava do lado de fora, com um olhar profundo, sem expressão alguma. Era como se quisesse dizer algo, mas, para dizer a verdade, agora esse homem me causava ainda mais ódio do que antes. Ele havia me seguido, e sabe-se lá o que seria capaz de fazer. Agora que sabia onde eu moro, será que ele poderia, de repente, tentar entrar aqui? Se este homem sente vontade de falar comigo, ele poderia vir pela área comum, e não pelos fundos. Mas eu não gostaria de falar com ele. Embora ele não passasse emoção alguma e nem falasse nada, internamente eu senti que deveria odiá-lo, e foi o que me propus a fazer: desde o momento em que o vi naquele restaurante, até agora, eu definitivamente estava odiando aquele homem, ainda mais pela brincadeira que havia feito comigo – sabe-se lá como -, fazendo-me perseguir e temer sua silhueta. Nessas condições, eu o odiava mais do que tudo. Ele havia me seguido, isso é certo. E embora não tivesse o porte físico de quem poderia me fazer mal, eu poderia fazer a ele.
Devido a sua aparência, provavelmente é um sem-teto. Seu corpo magro fez com que eu me questionasse sobre o motivo pelo qual ele estava ali - Será que queria comida? -, mas... Basta! Sentir compaixão por este senhor anulava completamente o que eu me propus a sentir por ele: quando se odeia, não se deve ter compaixão, o que eu queria fazer era retirá-lo dali com minhas próprias mãos.
Com medo de perder meu ódio, resolvi sair de casa.


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Notas finais do capítulo

Espero que vocês possam apoiar essa história e a simbologia por trás dela!