Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 25
XXIV — All the love we unravel and the life I gave away




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“Minha cidade era uma terra inútil

Cheia de gaiolas, cheia de cercas

Rainhas de concursos de beleza e grandes impostores

Mas, para alguns, era o paraíso

(...)

Então, eu espiei pela janela

Um portal profundo, uma viagem no tempo

Todo o amor que desvendamos

E a vida que eu doei”

(Midnight Rain — Taylor Swift)

 ★

Miami, Flórida — julho de 1979

Valerie logo descobriu que Ivy Coleman não havia empregado eufemismos ao descrever o emprego. Com frequência, Valerie não tinha nada de muito relevante a fazer – isto é, era relevante se você levasse em consideração a importância de um café no organismo de um ser humano, muitas vezes batizado com whisky ou conhaque por alguns dólares adicionais. Porém, de restante, o que Valerie mais fazia era anotar pautas, atender telefonemas e ser cordial com os clientes. 

Era diferente do que Valerie havia imaginado. Por trabalhar num escritório de advocacia, suas expectativas pendiam mais para o que ela estava habituada na Corte Judicial. Acompanhar julgamentos, estar em dia com os processos… No entanto, ao passo que ela se sentia verdadeiramente útil na Corte, no escritório… Valerie Ortiz não passava de um rostinho bonito. Talvez devesse admitir para si mesma que sua carreira jamais teria chances de chegar aos pés de Ivy. Seus dias dourados já haviam passado. 

De qualquer maneira, ao menos Frank estava tentando cumprir com sua promessa. Desde aquela discussão, ele também cozinhava todo o jantar de tempos em tempos, trazia flores para ela e os dois tinham até mesmo voltado a relacionar-se intimamente. Por mais que às vezes a definição dele de “diversão inusitada” fosse um tanto desconfortável, Valerie esforçava-se para agradá-lo também. Não queria ser egoísta e continuar em apuros apenas por seu comodismo. Por mais que nenhuma fagulha milagrosa tivesse dado as caras, o corpo dela parecia saber como reagir. Era quase como uma dança que ela tivesse aprendido os passos uma vez, porém o ritmo era descompassado. Ou isso, ou… 

Era esse o pensamento que Valerie sempre reprimia. O ritmo era descompassado ou o parceiro era o culpado pela inadequação. Com um suspiro, Valerie sorriu para o próprio reflexo e tentou não notar o quanto de força era preciso para que o gesto saísse natural. Quando era mais nova, Valerie tinha dificuldade em recordar-se dos momentos em que não estava sorrindo, mas agora… 

Uma vez por mês, Frank viajava a trabalho. Para onde ele ia, era um mistério. Segundo ele, o Estado pagava as passagens e a estadia, portanto Valerie jamais via sinal algum do passaporte ou das passagens. Valerie detestava admitir, contudo o momento mais agitado do mês era quando Frank passava os finais de semana mensais longe de Little Havana. Era quando ela podia limpar a casa, fazer a comida a hora que quisesse e visitar o túmulo de seu pai e de Clara. 

A lápide de John Bowman era meramente decorativa. Tudo o que tinham além das lembranças e fotografias eram os livros, seu uniforme e a medalha. Era Clara quem realmente descansava ali. Todos os meses, Valerie decorava o local com um buquê de lírios brancos. Valerie sempre via rosas brancas distribuídas pelas lápides, porém elas jamais poderiam significar qualquer forma de luto para ela.

Sempre que estava ali, Valerie se questionava se o que sentia poderia ser chamado de luto. Há muito tempo não chorava - era como se todas as suas lágrimas tivessem secado. Valerie já tinha ouvido dizer que havia quem chorasse a morte de alguém amado até o último dia de suas vidas, porém aquela não era sua realidade.

Sentia-se desajeitada. Deslocada, como se não tivesse o direito de estar ali. Ainda assim, Valerie continuava voltando. Veronica dizia que era algum tipo de tortura autoinfligida, mas ela não era muito adepta dessa teoria, tampouco. Não era doloroso visitar os túmulos. Não lhe provocava tristeza, ou raiva, ou tensão, era só… 

Alguém tinha que mantê-los vivos em sua memória. 

— Oi, pai — Valerie sentou-se na grama, tomando cuidado para não atrapalhar os arranjos florais dos túmulos bem cuidados ou para não esmagar o musgo dos esquecidos. — Oi, Clara… É, pelo visto, chegou aquele dia do mês de novo. Hoje está bem quente, mas, ei, estamos na Flórida, não é? Aqui tem um sol pra cada um, e tudo bem. O problema mesmo são os crocodilos nos pântanos, é o que eu digo.

Valerie ergueu os olhos para a fileira de liquidambares que margeava o corredor daquela sessão. Era verão, e as folhas exibiam seu melhor tom de verde folha. Havia algo de belo e subestimado nas folhagens do verão - não tão características quanto as de outono, não tão revitalizantes quanto as da primavera, mas vívidas e presentes. Necessárias.

— O dia está injustamente bonito, hoje. Não deveria estar bonito dessa maneira, não quando vocês não estão aqui, mas… Acho que essa é mais uma das formas que a natureza encontrou para me dizer que a vida continua e que não precisamos congelar no tempo. Ainda assim, é injusto.

Valerie engoliu em seco, tapando o sol com as costas da mão. Através de seus dedos, a luz produzia novas constelações entre as sardas em suas bochechas.

— Acho que esse discurso está ficando batido… E o pior é que eu sei que não tem ninguém ouvindo, mas… Eu sinto falta das nossas conversas, papai. O senhor sempre sabia o que dizer. Eu queria ter aprendido bem mais com o senhor. Queria que você continuasse escrevendo e queria continuar a ler escondida porque o senhor era tímido demais para aceitar um elogio. Queria ter ignorado isso e o elogiado mais. Queria ouvir a sua voz de novo, porque… Acho que eu me esqueci de como ela soava.

Os pássaros pararam de cantar, atentos às palavras dela.

— Queria poder sonhar com você. Quem sabe isso fizesse com que eu me lembrasse, apesar de que eu já não tenha sonhos há tempos… Dizem que todo mundo sonha, só não se lembra. É que eu tenho dormido tão pouco que provavelmente o problema é que talvez nem reste tempo para sonhar. Enfim, eu… Queria que soubesse. Que a minha memória anda uma merda, mas eu ainda amo você, papai. Sempre vou amar.

Decepcionados, os pássaros voltaram a seus afazeres. Valerie checou o horário no relógio de pulso, suspirando.

— Queria ser boa com palavras como você era. Era. Isso ainda é estranho de falar. Sabe uma coisa bonita que ouvi? Que quando alguém querido morre, a pessoa não partiu, só está indo na frente. Porque ainda estão ocupados, mas é uma garantia de que vão se encontrar novamente. Então… Até breve, papai. O senhor sabe que eu não sou fã de corridas, então me espere sentado. Da próxima vez, vou anotar os tópicos de conversa. Se é que vai ter algo relevante, né? Bom… Até mês que vem. 

Valerie levantou-se e bateu a terra das roupas. Missão cumprida. Ah, não. Não era uma obrigação, porém alguns dias eram melhores do que outros.

— Tchau, pai. Tchau, Clara. 

Após alguns instantes, Valerie reuniu forças para se movimentar. Quando estava quase pronta para pegar suas coisas e partir, uma voz amigável abordou-a:

— Eu também não consigo falar com a minha filha. Com a minha esposa, é uma coisa. Com a minha filha… Não sei. A garganta fecha. Acredito ter desenvolvido uma reação alérgica ao luto. É curioso, não é?

Valerie olhou por cima do ombro, permitindo que o senhor Gerard se postasse ao lado dela. Surpreendentemente, aquele grande homem curvou seu corpo sobre o túmulo e depositou um buquê de mosquitinhos ao lado dos lírios. Valerie olhou-o de esguelha, sem fôlego.

— Você… O senhor…? 

— Sim, madame Ortiz. Boa tarde.

— Senhor Gerard — ela ofegou, indo abraçá-lo de supetão. Se ele ficou surpreso, seus braços ao redor do corpo dela em retribuição não deixaram transparecer. — Eu não fazia ideia de que o senhor frequentava… 

— Não frequento. Venho de tempos em tempos. Mas eu a vejo aqui, de tempos em tempos. 

Valerie assentiu com a cabeça, desvencilhando-se dos braços dele com cuidado. Ele entendeu a brusquidão do gesto, indicando o banco de jardim mais próximo. Valerie acompanhou-o em silêncio, num misto de um silêncio confortável e de outro repleto de espanto.

— Eu não fazia ideia de que o senhor já foi esposo e pai, senhor Gerard. 

— Eu fui. Eu sou. Não são títulos que morrem. 

— Minha mãe diz a mesma coisa. Que eu não iria deixar de ser mãe só porque a Clara não tenha tido a oportunidade de ter sido minha filha. 

— Sua mãe é uma mulher sábia. 

— Ela é mesmo. Sábia e calejada pelo tempo. 

O senhor Gerard sorriu de lado, apoiando a bengala no chão. Por uns instantes, ambos partilharam a dor fantasma. Valerie se pegou imaginando cenários onde o gigante gentil faria parte ativa de sua vida. Durante todos aqueles anos, ele tinha estado nos bastidores - um vizinho excêntrico, antissocial, recluso e pouco confiável, segundo a opinião popular. No entanto, Valerie se dava conta de que o senhor Gerard seria outro acréscimo à sua lista de arrependimentos da década. 

— E o Kurt?

— Fazendo xixi em alguma árvore por aí, espero. 

— Desde que não sejam os pneus do meu carro… 

Daí, ele riu. Valerie não resistiu à tentação de também sorrir, mesmo que o ambiente não inspirasse nada do gênero. 

Morte e vida. Uma lua e um sol. Outro ciclo se aproximava. Agora entendia o que Veronica queria dizer com sentir nos ossos

— Catherine era uma mulher excepcional — ele começou, ajustando os óculos. Quantos anos ele deveria ter, cinquenta? Sessenta? De alguma forma, o senhor Gerard pareceu ter envelhecido ainda mais durante aqueles minutos em que estiveram conversando. — Era o oposto do que sou. Ela era… Geniosa, bastante inflamada e criativa. Aprendi a ficar acordado à noite com ela. Catherine podia passar o dia inteiro e a noite inteira dedicando-se à arte. Seu cabelo era preto, quase azul, e seus olhos eram da cor do céu límpido no auge do verão. 

Como os de Alex, Valerie refletiu com uma ironia amarga.

— Nos casamos aos dezessete anos, em 1938, numa capela familiar em Carcassonne. É uma pequena cidadezinha ao sul da França, repleta de lagos e castelos medievais. Eu e Catherine nos conhecíamos desde os treze anos, e ela dizia que Carcassonne poderia ser o paraíso para alguns, mas para ela… Era uma cidade pequena demais, cheia de cercas. “Para um artista, é como ser um passarinho enjaulado. Por maior que seja a gaiola, ainda é uma gaiola”.

— E o que fizeram depois? 

— Nós nos mudamos para Paris no ano seguinte. Tínhamos uma pequena economia, não o suficiente para ficar no centro, mas o suficiente para ficar num cômodo pequeno nos arredores. Eu e Catherine mal éramos capazes de andar sem esbarrar em algo no chão ou nas paredes, porém… 

O senhor Gerard suspirou, olhando para os próprios pés.

— Vocês dois jamais foram tão felizes — Valerie deduziu, obtendo um meio sorriso como resposta. — Porque tinham um ao outro.

— E você entende bem como o amor funciona, garotinha.

Valerie girou sua pulseira, dolorosamente consciente do presente. Era mais uma daquelas ocasiões onde a passagem do tempo se mostrava ao vivo e em cores. Um espetáculo em que, se estivesse assistindo à televisão, seria em canal aberto e sem comerciais, apenas para obrigá-la a assistir ou ficar numa sala em silêncio.

— Eu gosto de pensar que sim — Valerie sussurrou. — Mas é algo que requer pesquisa de campo e aperfeiçoamento constante. Por favor, continue a história.

— Muito bem. Sim, nós éramos os melhores. O sorriso dela era meu principal objetivo, madame Ortiz. Eu a seguiria até o fim do mundo, se isso fosse fazê-la feliz. Eu faria isso porque Catherine já era brilhante sozinha, contudo me pediu tão gentilmente para acompanhá-la que não tive outra opção além de aceitar. 

— O amor faz isso? 

— O amor, não. Somente minha Catherine.

— Como foi a vida de artista dela?

— Nunca vendeu um quadro sequer. Disse que não eram bons o suficiente. Emoldurei todos na minha sala de estar, aqui na Flórida.

— E como vieram parar aqui depois da França?

Ele negou com a cabeça, apoiando-se na bengala para poder se levantar. Valerie sustentou-o em auxílio, recebendo um grunhido como retribuição. Ele certamente deveria sentir dores; um homem com o físico do senhor Gerard e uma simples bengala era como Atlas tentando sustentar o peso do céu.

— Desculpe — Valerie murmurou, sentindo as bochechas pegarem fogo. — Não deveria ter sido tão curiosa. É uma coisa que preciso melhorar. 

— Oh, não, menina. Só estou prolongando a conversa. Imagino que seu tempo seja curto. Não quero alugá-la por mais tempo do que deveria.

— Senhor Gerard, essa foi a melhor tarde que tive em anos. Por favor, se estiver aqui no mês que vem, ficarei mais do que feliz em ouvi-lo.

Ele assentiu com a cabeça, sorrindo com brandura. Valerie acompanhou o olhar dele até encontrar o dachshund correndo em um misto de felicidade e cansaço. Em dez anos, o pequeno filhote Kurt havia se tornado um Kurt de meia-idade, ainda em pleno vigor. 

— Olha ele aí. Kurt, minha nêmesis. Ele cresceu! 

— Para os lados? Sim, cresceu mesmo. 

Valerie gargalhou, abaixando-se para afagar o ponto atrás das orelhas de Kurt. Mesmo desconfiado, Kurt deu-se por vencido e abanou o rabinho, contente. Se pudesse, Valerie teria uma fazenda repleta de cachorros, gatos, coelhos, vacas e tudo mais que aparecesse em sua frente para amar.

— Talvez possamos fazer disso um hábito — Valerie ecoou as palavras que tanto significaram antes com um sorriso tímido. — O que o senhor acha? 

— Essa é uma excelente sugestão, madame Ortiz.

Madame Ortiz. Valerie mordeu o lábio, desconfortável. 

Há mais de duas décadas conhecia o vizinho, porém até aquele dia sequer sabia qual era seu sobrenome.


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Notas finais do capítulo

Hoje o capítulo saiu atrasado porque eu simplesmente me esqueci de programar a postagem KKKKKKKKKKKKKK mil perdões, galera.
Estou com uma tonelada de comentários para responder, mas prometo me adequar nas respostas até o dia 01/05. Muito obrigada por todo o carinho, eu não mereço vocês ♥



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