Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 23
XXII — I am afraid I have no purpose here




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/810659/chapter/23

“Mundo, eu quero te deixar melhor

Eu quero que minha vida importe

Receio que eu não tenha nenhum propósito aqui”

(Courage to Change — Sia)

 ★

Miami, Flórida — junho de 1979

— Como se sente no primeiro dia, Valerie?

Ivy Coleman e ela caminhavam pelos corredores do escritório, e Valerie lamentava não ter a mesma graça que ela ao andar. Há anos não usava sapatos de salto alto e, apesar de ter treinado em casa, Valerie ainda achava que tinha melhorias a fazer. 

A parte mais difícil já havia passado. E os saltos sequer eram um problema. Porém, no momento em que começou a conhecer os colegas de trabalho, Valerie começou a suspeitar que sua rápida aprovação era um sinal de desespero. Ivy não tinha mentido ao deixar subentendido que os homens dali eram um tanto porcos. Não no sentido de sujeira física. 

Em menos de três horas, Valerie já tinha recebido duas cantadas e uma erguida de sobrancelha condescendente ao ser apresentada à diretoria. O mais espirituoso tinha sido o do advogado queridinho do escritório: "E quando sai o café?". Era uma pergunta que Valerie se fazia não ironicamente. As revistas de Veronica diziam que secretárias tinham de ser bonitas, mas não demais. Se fosse o caso de ter de servir cafés, que sorte a dela não ser lá tudo isso. Talvez aquela fosse a primeira vez que ela não se importava em não ter os olhos azuis como os da irmã. 

Como ela se sentia? Uma resposta com apenas duas alternativas não deveria ser tão complicada de responder, deveria?

— Um primeiro dia como qualquer outro, suponho — ela engoliu em seco, sentando-se à mesa ao lado da de Ivy. — Bom, dentro dos parâmetros. Muito promissor.

Ivy soprou um riso, assentiu com a cabeça e fez um gesto com a mão para que Valerie pegasse sua agenda. Enquanto Valerie encontrava o dia correspondente no papel, Ivy replicou:

— Promissor? Muito me admira alguém estar animada com esse cargo. Você realmente deve viver uma vidinha chata. Graças a Deus que não casei, não iria conseguir viver para os homens. Sem ofensa.

— Não ofendeu — ainda assim, Valerie franziu a testa. — Ele estava falando sério sobre o café?

— Estava. É uma das atribuições. Você vai ver que está até incluso no contracheque. Um escritório de Direito Civil com problema de desvio de função não teria uma boa reputação, teria?

Valerie negou com a cabeça, um tanto incomodada pela frieza dela. Ao notar o silêncio da nova colega, Ivy abriu um sorriso maldoso.

— O quê, você achou que seria mais do que fazer anotações e levar café de sala em sala?

— A senhora me deu a entender que… 

— São perguntas padrão, Valerie. Eu disse isso a você, não disse? O importante para o cargo é saber sorrir, ser ágil e não fazer anotações erradas. Ter uma letra legível, ser uma boa moça. Saber ficar quieta. Falar na hora certa, rir de piadas idiotas. Jogo de cintura, telefonemas, etc. Esse é basicamente o seu cargo. 

— É o que você fez?

Ivy ergueu uma sobrancelha, e Valerie desejou ter aplicado o princípio do "falar na hora certa". Ao lado dela, era quase impossível não se sentir inferior. Ivy Coleman era a loira modelo, magra e altiva, madura e conservada, independente e segura de si – o oposto do que Valerie era. Uma mulher como aquela dizendo o que pensava podia facilmente ser interpretada como "ousada". Mulheres como Valerie tenderiam a ouvir algo como "histérica" e afins. Dois pesos e duas medidas. Será que ela teria sido mais como Ivy Coleman se tivesse permanecido solteira? Quem poderia ser?

— Com todo respeito, Valerie, vamos deixar algo bem claro por aqui — Ivy arrumou a postura. Valerie forçou-se a fazer o mesmo. Cada palavra parecia uma sequência de golpes. — Eu conquistei esse lugar. Tive de galgar degrau a degrau, sem a ajuda de ninguém. E isso moldou todas as áreas da minha vida. Moldou meu caráter. Então, não espere que eu vá facilitar pra você. Vai ser bom pra você ter o mesmo caminho que eu. Quer dizer, se quiser estar no mesmo patamar que eu estou hoje. Não vou encurtar o seu caminho. 

Valerie franziu a testa uma vez mais. Não esperava que ela fosse tornar-se sua melhor amiga de um dia para o outro, mas também nunca imaginaria receber um afastamento logo no primeiro dia. As estenotipistas da corte eram todas unidas – por mais que Valerie não não tivesse considerado nenhuma como amiga, propriamente dito, jamais teve inimizades com nenhuma delas, tampouco. 

Era um pouco decepcionante que ela tivesse aquele posicionamento. Quer dizer… Era 1979, as mulheres não deveriam ser mais gentis umas com as outras?

— Sinto muito que pense desse jeito — Valerie murmurou, cruzando a perna para evitar o tremor que ameaçava percorrê-las. — Temo que esteja equivocada no modo em como me enxerga. Não quero criar rivalidades entre mim e você. Eu gostaria, sim, de alguma ajuda de sua parte. Não no sentido de facilitar meu trabalho, mas sim de contar com sua colaboração para um ambiente minimamente pacífico. Não sou uma adolescente despreparada para a vida, senhorita Coleman, então não me trate como se fosse uma. Se minhas atribuições incluem funções que você julga inferiores, eu as farei com excelência. Porque alguém tem de fazê-las. Não concorda?

Ivy abriu um sorriso. Quase como se estivesse satisfeita. Valerie sustentou o olhar dela – olhos gélidos com a escuridão que ela carregava nas íris –, recusando-se a baixar a guarda. 

— Muito bem. Então você é uma mulher de fibra. E fala bem — foi essa sua conclusão, e ela a fez com um suspiro. — É um começo. Talvez você se saia melhor do que o esperado. Aceito sua oferta de paz. Dentro dos limites, é claro. 

Ela deveria agradecer ou o quê? E que limites? Ivy achava que Valerie fosse segui-la para cima e para baixo feito um cachorrinho?

Talvez Valerie tivesse mesmo esperado muito dela. Ivy não passava de uma mulher prepotente escondida atrás de uma máscara de trabalhadora eficiente. Algo dizia que não era com os homens que Valerie deveria ficar atenta. 

Recompondo-se, Valerie anunciou o conteúdo da agenda com um tom pomposo que soou estranho a seus ouvidos:

— A senhora tem uma reunião com um cliente hoje. Aqui diz "H. Caine". Algo que interesse saber antes?

— Ah, sim. O senhor Caine acredita que a esposa o esteja traindo — Ivy automaticamente assumiu a posição de advogada séria. Era quase como se estivesse falando com uma versão feminina de Frank. Menos carismática, entretanto. — Quer pedir o divórcio, mas estamos recolhendo provas suficientes para anular a parte da esposa na divisão de bens.

— Uau. Isso é uma possibilidade?

Valerie não queria parecer tão leiga em questões jurídicas – principalmente não depois de todo aquele discurso de Ivy sobre o quanto Valerie estaria largada à própria sorte a partir daquele momento –, porém as leis eram algo que sempre a haviam interessado. Ela sempre se pegava pensando nas pessoas que a haviam redigido chegando em becos sem saída e imperfeições, criando emendas, dividindo as temáticas, considerando situações hipotéticas… Como amante de hipóteses, Valerie havia desenvolvido uma curiosidade natural em Direito. De qualquer forma, Ivy não pareceu reparar na gafe dela. 

— É. Além de a infidelidade configurar crime, o senhor Caine pode processar a esposa por danos morais, se quiser — Ivy deu de ombros, como se divórcio não fosse lá grande coisa. Como se processar sua esposa não fosse grande coisa. — É uma opção arriscada, mas… Ao menos a infidelidade é garantida. Com provas, eu digo.

— Entendi… O meu papel nessa reunião, então, é…?

— Ouvir e sorrir. Se precisar anotar algo, farei este gesto — então, ela simulou repousar a mão sobre a perna. Valerie assentiu, registrando o movimento na cabeça. — Seja discreta. Mesmo com nossos clientes, precisamos estar atentas. Nunca se sabe quando o seu cliente simpático pode se revelar como um mentiroso e manipulador de primeira categoria.

De dona de casa a detetive consultora extraoficial. 

A vida talvez pudesse voltar aos seus eixos, afinal. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Bom, a gente sabe agora que a Ivy não é uma girl's girl :')



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Nebulosa" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.