A Outra Face escrita por Taigo Leão


Capítulo 10
Capítulo 10




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Você pode me tomar como um fraco, ou dizer que me acovardei perante as circunstâncias adversas, mas há muito tempo estava pensando nisso. Na verdade, acredito que sempre pensei nisso, antes mesmo de me tornar um novo “eu”. Essa ideia sempre passou por minha mente, sutilmente tomando seu espaço, começando como uma piada, até que me fez acreditar e ponderar realmente sobre isso, fantasiando com isso ao longe, bem longe, quando na verdade estava tão perto.

Aquele rio não era muito grande, mas era um pouco fundo. Embora eu não saiba nadar, me lembro vagamente da sensação - foi como estar nadando no vazio; perdido no vazio -. eu me senti como o reflexo de uma estrela sem brilho, e dentro de toda aquela água, parecia estar realmente em um céu não estrelado; parecia que eu estava dentro de mim, onde não havia mais nada além disso.

Sentia que nada poderia mudar. Me sentia como um pássaro preso em uma gaiola, que era minha própria mente. Me sentia sozinho em um mundo estreito, onde não havia futuro. “Por favor, desapareça”, foi a última coisa que passou em minha mente.

Quando abri os olhos, não estava no céu, muito menos no inferno. Eu não estava morto. Estava em uma cama estreita, em um quarto de hospital, e ali, na minha frente, estava o doutor.

Novamente ele me olhava com aquele olhar complacente de doutor. Novamente senti ódio, muito ódio, pois aquele rosto demonstrava dó e uma superioridade sobre mim, como se me subjugasse, mas eu não estava apto para contrariar tudo isso. Depois de tudo, agradeço por ele estar aqui.

— Já se passou uma semana. Você bateu a cabeça e ficou inconsciente, perdendo até mesmo sangue. É um milagre não ter morrido.

— Milagre...

— Sim, pude te salvar... pensei que você não sobreviveria, e imagino que estar aqui, agora, faça você se lamentar muito. Me desculpe se o trouxe de volta para a vida.

— Eu devo lhe agradecer, imagino...

— Apenas fiz o meu trabalho.

O doutor se aproximou da porta do quarto, que estava entreabaerta, e a fechou, então voltou para perto de mim.

— A última conversa que tivemos me deixou muito pensativo. Máscaras, muitas máscaras vendidas. Acho que seria um apocalipse passivo para os homens.

— Então você vai me matar para impedir que isso se espalhe?

— Não seja tolo. Se fosse para te matar, teria negligenciado teu corpo. Eu imaginei que algo assim poderia acontecer, então pedi para minha assistente lhe seguir naquele dia, quando saiu daqui. Ela que lhe encontrou, e não eu... Às vezes me pergunto, será que você realmente mudou de rosto, ou apenas mudou de pensamento? Digo, todos nós, a cada dia que passa, nos tornamos uma nova pessoa e assumimos uma nova identidade. Uma mais evoluída. Será que você apenas não evoluiu ao ponto de não reconhecer a si próprio? Quero dizer, todos nós, quando descobrimos quem somos, já viramos uma nova pessoa, e precisamos, novamente, passar por todo esse processo. Mas, para você, de uma forma mais radical. Você chegou a ver sua irmã ou algum conhecido depois de tudo que ocorreu? Talvez você mesmo se tenha convencido de que não era desse jeito, e aceitou isso porque lhe parecia ser a forma mais lúcida de pensar. Mas talvez seja apenas a sua realidade, dentro de sua loucura, e não o que realmente é. Talvez tudo não tenha passado de uma questão de perspectiva.

— Então agora acredita que estou delirando?

— Não necessariamente. Apenas tenho tentado ver as coisas por todas as perspectivas. Todas as vezes que você veio até mim, era uma pessoa nova, não estou certo? A cada dia novos pensamentos, novas ideias; novos fundamentos. Hoje você é uma pessoa, ontem, foi outra.

— O que você vê quando olha para mim, doutor?

— Não vejo nada de especial. Vejo um homem buscando respostas que me propus a auxiliá-lo. Não há mal algum em perguntar, então. E vejo um homem tentando fugir de sua própria depressão e de seus demônios.

— ...

— Um novo você surgiu?

— A princípio, pensei que não era nada, mas, capciosamente, esse “eu” foi tomando seu espaço. Ele possui uma visão mais central de tudo que está me acontecendo, e sente uma grande tristeza e vazio: ele é um ermitão, ranzinza, como se tivesse um universo inteiro dentro dele, se expandindo e se tornando cada vez mais vazio.

— Acho que apenas você pode fazer algo, agora.

— O que quer dizer?

— Apenas você se conhece, então apenas você pode achar a verdadeira natureza de tudo isso.

— Está desistindo de mim, doutor?

— Eu não posso ter esperança por você. Posso tê-la com você, mas sozinho, sou ineficaz. Essa não é a minha vida. Eu salvei o seu corpo para que você possa lutar. Apenas lhe dei uma segunda chance. Você perdeu uma luta, mas a guerra é sua. Essa pode ser a sua vitória, se você quiser.

— Eu apenas quero ter uma vida normal...

— E sua mente está impedindo que isso aconteça. De todo jeito, você está bem agora. Quando quiser, pode partir. Se quiser ficar, fique o quanto quiser, até se sentir totalmente recuperado. Possuo outras pessoas para atender agora, então se precisar de mim, é só chamar.

Pouco depois do doutor ter me abandonado ali, decidi abandonar aquele quarto, que parecia me sufocar a cada minuto que passei ali. Saí sem me despedir e sem pagar um único centavo naquele maldito lugar; apenas queria me ver longe dali o mais breve possível.

Passei a tarde toda perambulando pelas ruas, sentindo uma vontade de ir até o lugar de onde pulei, mas ao mesmo tempo temendo estar ali novamente. Mais uma vez, estava a ter um conflito interno, sem saber bem que caminho deveria seguir.

Embora estivesse confuso, me sentia muito, mas muito triste e vazio, de forma que não tinha mais nada a dizer, eu apenas aceitei meu destino de uma forma passiva, mas hostil para meu “eu” interior. Quem eu era, ou quem viria a ser, não tinha importância alguma. O que valia era estar aqui, vivo, mas isso também não tinha importância.

Nós somos feitos para mudar, mas eu não consigo me parar, embora tente ao máximo evitar pensar em tudo isso, existem certas coisas que não podemos ignorar para sempre; elas sempre voltam para nós, assim como fantasmas na neve, é assim que a fatalidade se parece: como fantasmas na neve, e ela sempre, sempre mesmo, virá atrás de todos nós, com consequências e divagações confusas.

Acreditar ser capaz de ignorar esse tipo de coisa exige muita coragem.

Quando me sentia melhor, então me dei conta de que havia perdido tudo. Quando pulei naquele lago, dei cabo de tudo que me pertencia. Agora tudo deveria estar no fundo daquele rio.

Mas, senti um pequeno incômodo, do qual pouco tardei a ceder. Era como se estivesse esquecendo de algo de suma importância para a conclusão, e essa sensação me fez caminhar por mais algum tempo, me guiando de forma tão passiva que nem mesmo notei, julgando caminhar sem rumo.

Então me vi em um pequeno parque reconhecível, no qual já havia adormecido anteriormente, e caminhei até aquela árvore com a grande sombra, na qual adormeci outrora.

Por alguma razão a rodeei, como um cão, então parecia ter achado o que queria, começando a cavar usando as próprias mãos.

O buraco não era tão fundo, e estava mais escondido do que cavado, me fazendo questionar como alguém não o encontrou anteriormente, mas ali estavam alguns itens importantes para mim, como um cartão, algumas notas e meu celular.

Dada as circunstâncias que enfrentei, não me senti tão incomodado como poderia me sentir outrora, afinal, um de meus “eus” interior realmente possuía um plano. O que me espantava era ter guardado aquilo ali fora da minha concepção; sem nem mesmo perceber.

Isso me faz pensar que, capciosamente, eles estão tomando conta de minha vida.

Me pergunto quanto tempo permanecerei apenas assistindo, enquanto o controle é retirado de mim de forma que não poderei tomá-lo novamente. Como se eu deixasse de ser o capitão deste navio.

Capciosamente deduzi que, ao contrário do que sempre imaginei, meus “eus” estavam unidos, pelo menos os dois antes desse que visto o rosto hoje. Talvez o primeiro e o segundo – e até os que vieram antes desses e suas variações –, estão tramando para derrubar este “eu” atual. Este eu que imaginei não ser nada demais, mas se mostrou um homem tão vazio quanto sempre fui em minha essência, mas este é corajoso, afinal, pulou daquela ponte, coisa que meu “eu” original nunca faria. Pode ser alguém fraco, mas decerto é corajoso, e isso vale de alguma coisa.

Mas do que adianta sentir coragem, se possuo receio da vida? Não sei bem o que devo fazer ou como devo viver. Eu apenas não posso esperar para sempre enquanto o doutor busca uma maneira de me fazer voltar a ser o que eu era antes. Essa maldição está dentro de mim, e o que sinto é que não sou capaz de voltar a ser eu mesmo. Sendo sincero, nem mesmo me lembro com certeza sobre como eu era, ou em quantos “eus” já me transformei. E se voltar não for o correto a se fazer? Como saberei se estou voltando para o “eu” original? Nem mesmo tenho um motivo concreto para voltar. Quero voltar porque quero, e não preciso dar motivos para querer alguma coisa.

Enquanto caminhava e divagava sobre tudo isso, senti uma raiva extrema perante minha situação. Eu me sinto doente.

Mas bem sei que o motivo de minha doença está dentro de mim, então não há nada que eu possa fazer para fugir disso, ou até mesmo me recuperar.

Nunca fui de acreditar muito em qualquer tipo de religião, mas agora consigo acreditar em algo maligno. Inevitavelmente, senti que havia algo a mais em toda essa minha situação. Senti a presença de algo maquiavelmente cômico, como se o destino estivesse a brincar comigo; era como se o próprio diabo estivesse a brincar comigo.

De alguma forma, me pus a sorrir, sorrir muito mesmo. Havia chegado a uma conclusão: havia algo que poderia ser feito para melhorar.

Em comemoração a este plano, fui até uma taberna, onde me embebedei severamente. De início eu tremia, e aos poucos pude perceber sobre como meus trajes estavam sujos, mas contrário a minha percepção, eu não chamava a atenção em lugares como esses. Poderia ser o homem mais repugnante que existe, mas enquanto não demonstrar isso, me tratarão cordialmente, da forma que a etiqueta e as boas normas ordenam.

Haviam muitos beberrões naquele lugar, e um, em específico, havia me chamado a atenção. Era baixo e magro, muito magro. Seu cabelo era castanho, e ele vestia roupas simples, como uma blusa de lã. O que me chamava a atenção neste homem não era seu físico ou suas vestes, era seu estado: quando algum alguém passava por ele e o notava, ou quando falavam com ele, ele sorria e se enturmava, mas entre o tempo em que estes saíam e outros se aproximavam, ele mantinha um rosto e olhar tão solitário, como se se sentisse como eu. Talvez tudo o que ele desejava era nunca, nunca mesmo, ficar sozinho.

Quando notou que eu o olhava, veio em minha direção, mas não de forma hostil, como eu imaginava. Na realidade, se aproximou para me oferecer outra bebida: ele trabalhava nesta taberna.

Talvez por isso notei que todos aqueles que por ali passavam, falavam com ele, ou ao menos faziam um gesto de cumprimento em sua direção. Todos o notavam ali, isso era algo inerente. Mas se era tão notado, por que parecia ter um rosto tão triste? Essa pergunta permaneceu em minha mente até eu sair daquele lugar, o que não demorou muito, dado a vergonha que senti quando ele percebeu que eu o encarava de forma tranquila.

Saí às pressas, mas já estava meio alegre. Não sei bem quantos copos havia bebido, mas em minha mente, estava completamente são. Apenas era incapaz de caminhar perfeitamente, mas isso era culpa da gravidade, e não minha. De repente, a gravidade se tornou algo muito complicado para se lidar, como se tivesse se tornado mais densa, me deixando até mesmo um pouco tonto. Mas não deixarei que isso tome conta de mim, não. Eu seguirei meu caminho, até finalmente alcançar o que almejo.

Enquanto bebia, não consegui fugir de algo que parecia inevitável. Eu gostaria de desaparecer mais do que tudo, assim como o mar, mas ainda há um vestígio de meu antigo eu, um vestígio que não posso simplesmente deixar para trás.

Eu preciso enfrentá-lo e encerrar isso de uma vez por todas. Somente assim posso desaparecer, sem deixar nada para trás. Posso desaparecer com paz em minha alma; finalmente poderei apaziguar o que sinto, mas talvez mesmo essa situação seja ineficaz perante o tormento que sinto. De toda forma, eu preciso tentar. Prefiro saber que estava errado, do que pensar que essa poderia ter sido a solução, sem nunca experimentar algo parecido com isso. Talvez essa seja a dádiva pela qual tanto esperei; talvez seja a chave de tudo. Quem sabe assim, finalmente, poderei tolerar minha condição.

O engraçado era que eu estava tremendo. Estava tão certo disso, e tão empolgado, que nem mesmo saberia por onde começar. Eu não sabia como poderia colocar esse plano em prática, mesmo julgando-o algo tão simples, e de mesma forma, tão importante.

— E você realmente acha que isso colocará um fim em tudo?

— Estou completamente certo disso, inclusive, não sei como não o pensei anteriormente. Mas entenda que, o fim que menciono não significa necessariamente voltar a ser eu mesmo. Seria um fim em minha existência, onde abraçarei meu novo “eu” e todos que vierem depois desse. Será onde me entregarei por inteiro, esquecendo tudo que já se passou.

— Você é um tolo! Acredita mesmo ser capaz de apaziguar tudo que há dentro de você? Acredita mesmo ser capaz de silenciar todas as versões que existem?

— Não foi o que eu disse. Não silenciarei ninguém, na verdade, deixarei que falem, cada vez mais alto. O que será silenciado será essa minha consciência, que tanto pensa e que tanto lamenta. Meus “eus” estão aqui, reunidos. Eles possuem uns aos outros. Quanto a mim, que questiono, não possuo ninguém. E se não possuo mais nada a dizer, deixarei que assumam. Apenas quero ficar em um canto qualquer que me seja confortável, onde poderei me apertar e divagar sem ser incomodado.

— E a única forma de conseguir isso...

— ...É acabando com todos os vestígios.

A voz que falava comigo se pôs a gargalhar, e então cessou. Olhei em volta, mas nada vi, então me dei conta de que não havia mais ninguém ali: eu estava falando sozinho.

Então me dei conta de onde estava: próximo de um bairro conhecido. Já que estava ali, caminhei até aquele pequeno condomínio, para encerrar isso. Eu poderia falar com aquela mulher e explicar minha situação. Quero que ela me faça livre; quero que me deixe ir.

Eu baterei em sua porta e contarei tudo. Que se dane se o doutor está comigo ou não, serei isento dessas complicações relacionadas a minha situação. E ela, assim como eu, deveria estar a par de tudo isso desde o início.

Me sentia tonto, e um pouco febril, e, de certa forma, alegre. A bebida ainda estava em meu anterior, me corroendo por dentro, e talvez ela fizesse eu acreditar que estava em posse de todas minhas faculdades mentais. Naquele momento essa me pareceu a melhor ideia que eu poderia ter, por esse motivo eu estava ali. Depois disso, eu iria para longe, muito longe.

Subi as escadas daquele condomínio e parei frente a quinta porta, que era a da casa daquela mulher, que vivia sozinha.

Com um fogo em meu peito, preparei todo um discurso, eu sabia exatamente o que iria dizer, e estava preparado para todo tipo de resposta. Porém, embora estivesse tão certo disso, não conseguia fazer nada. Senti um grande remorso, que me segurava e me impedia de bater naquela porta. Aliás, por um momento, eu nem mesmo me lembrava do nome daquela mulher. Eu poderia simplesmente derrubar aquela porta e fazê-la me ouvir. Sim, eu poderia fazer isso. Apenas ela pode me ceder minha redenção, é por isso que estou aqui.

Me perguntei se, caso entrasse normalmente, ela me reconheceria, de algum modo, então, por um momento, toquei a maçaneta daquela porta.

— Ei, quem é você?!

A voz era de um homem, e vinha de mais a frente, nesse mesmo corredor em que estava. Eu nada disse: havia sido pego em flagrante.

— Me responda, quem é você?! Se afaste dessa porta ou ligarei para a polícia!

O homem então se pôs a correr em minha direção. Sem ter o que fazer, desisti de meu plano e também corri, mas quão lamentável foi quando caí daquela escada, rolando até chegar ao chão. Talvez o pior para mim não foi nem mesmo a dor que senti naquele momento, mas sim a que senti quando olhei para cima e vi aquele homem, no topo da escada, me olhando com desdém. Me olhando como se eu fosse um bêbado qualquer, que não poderia em hipótese alguma estar em um lugar como aquele.

Ele nem mesmo se sujeitou a descer e me esbofetear, ou me repreender para longe daquele lugar. Quando me viu ali, de cima, pareceu ter sentido pena, e logo deu meia volta sem dizer uma única palavra, como se tivesse visto em meu olhar que eu havia encontrado meu lugar, ao chão, e não ousaria repetir aquela dose de adrenalina de poucos instantes atrás. Ele sabia sobre como eu conhecia minha situação, e isso fez eu sentir raiva, muita raiva, e sair dali às pressas, ignorando minhas dores.

A raiva que senti me colocou em um ultimato, onde eu não possuía outra escolha: se não podia me aproximar novamente daquele castelo por bem, eu haveria de achar outra forma para invadi-lo!

Fui até um pequeno bar e comecei a beber novamente, e assim permaneci, bebendo, até que anoiteceu.

No período em que bebia, tive cada visão, e ouvi cada coisa, que sinto calafrios só de pensar sobre isso, mas eu estava certo de algo: essa noite colocaria um fim em tudo.

E talvez, desde o início, eu estivesse certo sobre meu plano, o que me levaria a penúltima questão: como executá-lo, e essa me levaria a uma última questão, e talvez a mais difícil de todas: executá-lo. Criar um plano ou ter uma ideia é algo simples, o difícil é colocá-la em prática, ainda mais quando se é tão importante quanto parece. Mas se sinto que meus olhos se enchem apenas em pensar nisso, então me parece ser realmente o melhor caminho, pois os caminhos certos sempre são os mais duvidosos; os mais doloridos.

Por mais que me doa, essa é minha única opção. Eu estou desesperado.

Então me pus a caminhar, sabendo exatamente para onde estava indo. Estava convicto de algo, e nada poderia tirar isso de mim.

Com os nervos a flor da pele, caminhava, em direção a algo que havia abandonado a muito tempo, algo do qual realmente tentei me afastar, mas pelo visto, está fora de meu alcance. O mais cômico de tudo isso era a forma como eu tremia; a forma como sentia medo, e um certo desespero. Eu estava a um passo de encarar a realidade, depois de tudo que aconteceu comigo.

Quando cheguei naquele bairro, por pouco não me pus a chorar. Sabia que poderia ser a última vez em que pisarei nesse lugar, e sentia minha barriga congelar.

Como deve estar claro, o último vestígio dessa vida, deste antigo “eu” é aquela mulher, que outrora julguei como minha irmã. Agora ela não é nada além de um problema para este “eu”, que não pode se dissipar sabendo que ela ainda está aí fora. Sem nem mesmo se lembrar do seu nome.

Após sair do bar, me pus a caminhar pelas ruas, até perceber que elas ficavam cada vez mais vazias, e sentir que já era hora de executar o meu plano. Eu estava com uma garrafa de bebida em minhas mãos. Uma garrafa de vidro. E caminhei até chegar aquela maldita casa.

Já era madrugada, pois tudo estava em absoluto silêncio. As pessoas dormiam, tranquilas, enquanto eu arquitetava um plano maléfico, que me permitiria me dissipar completamente e ir, ir para bem longe. Assim todos teríamos paz. E seria bem melhor dessa maneira.

Tentei abrir aquela porta, mas não consegui. Forcei-a mais um pouco, com um pouco de sutileza, temendo acordar quem estava do outro lado. Como novamente não obtive êxito, uma vaga lembrança veio em minha mente, e me fez dirigir a atenção até um pequeno vaso que havia entre essa porta e a próxima, e quando me aproximei dele, encontrei: era uma cópia da chave, que meu antigo “eu” e essa mulher guardávamos, para caso um de nós perdesse aquela chave. Mas não acredito que após todo esse tempo, ela ainda manteve a chave ali, na esperança de que eu voltasse para casa.

Embora estivesse tão certo do que deveria fazer, eu tremia tanto, mas tanto, e sentia tanta dor em meu peito, que poderia morrer ali mesmo. Mas eu precisava continuar, eu precisava ser forte. Então abri a porta, torcendo para que aquela mulher esteja dormindo. Eu seria rápido, muito rápido.

Mas apenas olhar me desbloqueou muitas memórias, me fazendo sentir até mesmo certa dor de cabeça. Eu estive zonzo por um momento, e acabei por cair de joelhos ali mesmo, na entrada. Aquele pequeno apartamento parecia vazio, e a distância entre mim e a porta do quarto daquela mulher parecia muito longa, talvez longa o bastante para que eu atravessasse. A pessoa que morava ali, decerto estava dormindo, com um sono muito pesado, ao ponto de nem mesmo escutar o invasor, que fazia um barulho maior do que devia.

Ali, prostrado, meus olhos se encheram de lágrimas, e chorei como a tempos não chorava. Como pude, em sã consciência, pensar em matar outra pessoa?

Por um lado, sentia muita raiva de mim mesmo, por querer fazer aquilo, e por outro lado, eu queria matá-la mais que tudo no mundo, para que eu pudesse desaparecer para sempre. Eu queria acabar com tudo que pudesse me remeter a minha antiga vida, então eu poderia abraçar de vez esse novo “eu”.

Não sei quanto tempo fiquei ali, prostrado, só sei que quando percebi, uma nova silhueta havia surgido, vinda de uma terceira pessoa, que havia se juntado a mim naquele local.

 

 

 

 


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