Alma escrita por Taigo Leão


Capítulo 2
II




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Quando estava com um livro que o instigasse em mãos, o rapaz não se importava se haviam outras pessoas em volta. Dentro da biblioteca, envolto de um novo ar e cheio de livros ao redor, ele não se importava com as pessoas lá fora. Para ele, esse era o seu mundo. Um mundo cheio de livros, onde a luz era suave e todos os transeuntes que o visitavam falavam em voz baixa. Se todos que estivessem fora da biblioteca desaparecessem, ele não daria a mínima. Apenas passaria o resto de sua vida enfurnado entre os livros, talvez sem nem se dar conta do que existe lá fora. Não por maldade ou desprezo, apenas estaria tão concentrado que não se importaria com mais nada.
— Você devolvendo um livro antes do prazo. Isso é raro de se ver.
A mulher que falava com o rapaz caminhava para lá e pra cá, organizando alguns livros nas prateleiras. Ela caminhava ora com livros nos braços, ora com eles em uma pequena cesta. Seu cabelo escuro como a noite estava preso em um rabo de cavalo. Seu nariz pontudo combinava com o formato fino de seu rosto.
— Alexsandra... Sendo bem sincero, temi que não conseguisse devolvê-lo a tempo.
— Sempre com as mesmas desculpas, Ethan... Deixe-me imaginar, por acaso o perdeu em algum lugar?
— Não precisamos falar sobre isso. Apenas guarde-o e registre na folha que o devolvi a tempo, pois isso é o que importa.
Alexsandra concordou e pegou o livro das mãos do rapaz. Após analisar detalhadamente seu estado, como que se sucintamente estivesse desconfiada do rapaz, ela logo se sentiu satisfeita com o que viu e colocou-o em cima de um pequeno amontoado que havia por trás de um dos balcões.
Ethan deu de ombros e focou sua atenção em outro amontoado de livros. Não para organizá-los, ele apenas via suas capas enquanto Alexsandra subia a escada central da biblioteca com uma pequena cesta cheia de livros.
Ele começou a caminhar pelo andar inferior do local.
A biblioteca, embora possuísse dois andares, não era tão luxuosa quanto poderia ser e nem tão grande, mas era um lugar deveras aconchegante. Seu piso de madeira combinava com as paredes, que eram todas em um tom meio marrom meio vinho, e suas estantes de verniz ou de aço davam um bom volume aos montes de livros que haviam ali, separados alguns em ordem de gêneros, outros em ordem alfabética pelo nome do autor. A parte inferior possuía poucas estantes, mas era onde ficava o balcão principal, de onde as pessoas poderiam pagar pelos livros ou acertar a locação dos mesmos.
O primeiro tipo de livros, os que estavam à venda, ficavam na parte superior, para onde Alexsandra havia ido, enquanto os para locação ficavam na parte inferior, onde Ethan estava. Havia certa burocracia para alugar um livro ou tomá-lo emprestado. Uma burocracia que Ethan evitava, sempre deixando o serviço para Alexsandra.
— Pois então, como anda de saúde agora? – Alexsandra disse, descendo as escadas.– Imaginei que estava piorando, mas se está aqui agora, então creio que está melhor.
— Tenho por estar em uma corda bamba como você bem sabe. Hoje estou bem, mas a dois dias me parecia ser impossível apenas levantar da minha cama. Tenho sofrido de uma forma anormal, mas está tudo bem.
— Está tomando seus remédios? Espero que sim.
— Onde está o velho?
— Não está aqui. Foi resolver alguns negócios do outro lado da cidade e não volta antes do fim desta semana. Foi o que me disse, ao menos.
— E lhe deixou sozinha!
— Ao contrário do que você imagina, já sou uma adulta. Não preciso da ajuda dele ou da de outra pessoa para fazer qualquer coisa. Na realidade sua viagem me agrada e muito, pois bem sabe que não há mais ninguém que sabe administrar essa biblioteca como eu.
Ethan não ousaria contrariar a afirmação, pois de fato, Alexsandra tinha pelos livros o mesmo apego e carinho que uma mãe tem por seus filhos. Quando ela estava ali o lugar era mais aconchegante; mais acolhedor. Sem ela a biblioteca possuía apenas um ar cinza e monótono, e não havia nada que pudesse fazer com que Ethan permanecesse ali por muito tempo. Quando Alexsandra não estava, ele pensava que até mesmo os clientes não ficavam por muito tempo.
—...Mas eu não recusaria uma ajuda. Ao menos não por hoje. Estou sozinha aqui e chegaram algumas reposições, como você pode ver. Se está mesmo se sentindo melhor, me ajude.
Alexsandra se apressou para atender um cliente que se aproximava do balcão.
— Essa pilha que você estava olhando a pouco. Leve-a até o depósito, por favor. São reposições que chegaram hoje, mas ainda possuem cópias que estão nas prateleiras.
Ethan pegou os três primeiros e subiu as escadas, indo em direção à sessão de romance e fantasia. Quando Alexsandra veio atrás dele, ele havia acabado de perceber que estava errado.
— Ajude-me a recordar... A quanto tempo não vem aqui? Se eu lhe disse que estão nas prateleiras, então eles estão, como você pode ver.
— Da última vez em que estive aqui eles não estavam.
— Pois isso já tem uns cinco dias. Agora faça apenas o que eu mandei.
Alexsandra sorriu para Ethan de uma forma que ele não poderia recusar o seu pedido. Então, envergonhado pelo erro, desceu as escadas, pegou todos os livros e os levou até o depósito, os colocando em um lugar específico.
Quando subiu as escadas, Alexsandra já estava cuidando de outra pilha de livros, enquanto havia ainda mais algumas por trás do balcão principal.
A pedido da moça, Ethan organizou mais alguns livros. Ora alguns que retornaram de empréstimos ou alguns largados pela biblioteca, principalmente na sessão mais infantil, que embora fosse minúscula, era a mais desorganizada do local, o que podia parecer estranho, dado o incessante esforço de Alexsandra para deixar tudo em ordem.
Quando o trabalho havia terminado, já era noite.
— Bem... Já está na hora de fechar.
— Precisas de mim pra mais alguma coisa?
— Bom, Ethan... Agora você não me é mais útil. Porém, bem... há uma coisa, sim. Deixe-me recompensá-lo. Me acompanhe. Vamos comer alguma coisa.
Ethan recusou com firmeza. Ele não possuía dinheiro para isso. Caso aceitasse e, por ventura, fosse até um lugar muito caro, não conseguiria pagar o aluguel, que sempre pagou exatamente no dia em que deveria, para que o velho Reiss não tivesse do que reclamar.
—...Mas este bairro anda muito perigoso quando a lua está no céu – Disse, compensando a recusa do convite –, principalmente para alguém como você. Me deixe ao menos acompanhá-la, assim me sentirei melhor.
Minuciosamente, Alexsandra nada disse enquanto retirava o avental e terminava de fechar as portas do comércio, mas logo ponderou, aceitando a proposta.
Embora a lua estivesse no céu, essa não era uma noite estrelada. Haviam várias nuvens que preenchiam o vasto espaço ao redor da lua cheia, mas as pequenas estrelas, tímidas, se escondiam por detrás dessas nuvens.
À noite o bairro estava mais movimentado. Haviam muitos comércios abertos – em sua maioria, bares –, e alguns possuíam tanta iluminação que poderia cegar uma pessoa que observasse por muito tempo, enquanto outros, mais despojados, possuíam uma iluminação fraca e falha. Alguns dos comércios noturnos não possuíam iluminação alguma e não pareciam ser muito receptivos, como se estivessem abandonados. Estes comércios, mais assombrosos, eram únicos, e pareciam ter um tipo de clientela específica. Estes não pareciam ser lugares dos quais uma pessoa entraria sem saber exatamente o que acontece lá dentro.
— Está muito calado, Ethan. Quase não dirigiu a palavra a mim hoje. Quero dizer, não é como se eu aceitasse de bom grado escutar tua voz, mas não pude deixar de notar a diferença.
— Se não lhe conhecesse bem, diria que estava com saudades de mim.
— Saudades? Ora, sei bem onde você mora. Se, porventura, sentisse um mínimo de vontade de te ver, iria até lá, tenha a certeza disso. Apenas me preocupei com o livro, pois no estado em que tua saúde consegue chegar às vezes, não sei se o veria novamente.
— O livro já foi devolvido, se é isso que lhe importa.
— ...Acho que tu que sentiu minha falta, já que até mesmo se voluntariou para me acompanhar de volta, sendo que faço esse caminho por mim mesma a muito tempo e nunca nada de ruim me aconteceu.
— Talvez tenha razão...
Alexsandra sorriu, satisfeita com a confissão e continuou caminhando. Eles passaram por uma pequena praça para cortar caminho, onde contornaram um pequeno lago que havia ali.
— Presumo que esteja melhor. Me diga então, o que fará da sua vida? Você planeja sair daqui? Ou planeja continuar vivendo de bicos, com nada concreto para chamar de seu? Tu realmente vive, possui ao menos um sonho?
— Sei que lhe parece pouco, mas é o que tenho. Por ora, estou satisfeito. Se tenho algo que posso chamar de sonho hoje, seria ter minha saúde 100% novamente. Então lentamente transformo este sonho em objetivo e o objetivo em um passo, mas lhe confesso, Alexsandra, que a cada passo que dou, me sinto mais desesperado, pois nunca saberei qual passo será maior que minha perna, ou até mesmo qual será o meu último passo, principalmente dada minha condição. Então caminho assim, perdido, mas isso não me é ruim, pois se em algum momento, caminho sem esperança, então ali sim me sinto confortável, pois em uma mente sem esperança não há planejamento de vitórias ou de derrotas. Não há decepções, assim me sinto bem. Então caminho, sem saber ao certo onde vou parar. Apenas vou.
— Vejo que continua tendo talento para os discursos.– Alexsandra sorriu.– Mas não vai me fazer sentir pena de você. Não por sua condição, talvez eu sinta por sua mente fraca. Não há necessidade de tanto niilismo. Precisa se lembrar de que o mundo não é apenas preto e branco. Um passo de cada vez, sim. Mas não culpe sua condição por sua fraca disposição para viver. Lhe conheço há um bom tempo, e você sempre foi assim.
Já faziam alguns dias que Ethan não caminhava pelas ruas noturnas, de forma que ele até mesmo sentia falta disso. Tanto das ruas quanto de Alexsandra e suas provocações. Ele sabia que ela não era uma pessoa ruim, mas sua personalidade a impelia a infernizar Ethan com comentários sarcásticos e contrários a tudo que ele dissesse, a fim de realmente irritá-lo, pois isso a divertia.
Quando alguns homens passaram pelos dois, Alexsandra se aproximou mais do corpo de Ethan, mas assim que estes se foram, ela se afastou novamente. Quando finalmente chegaram à porta do edifício onde Alexsandra vivia, Ethan notou uma estrela cadente no céu – as nuvens já não estavam tão presentes –, e a mostrou para Alexsandra.
— Fez algum pedido? – Ele perguntou.
— Fiz, mas caso conte, ele não se realizará.
Alexsandra caminhou até a porta do edifício e a fechou lentamente, sorrindo para Ethan.
O homem se apressou na volta para seu cubículo, com um sentimento confuso. Ele não sabia se estava feliz ou triste, apenas podia dizer que estava confuso. Ele tentava afugentar a idéia de tê-la para si, pois tinha plena ciência de que nunca poderia merecer algo assim dentro de sua vida medíocre. Ele nem ao menos teria a coragem suficiente para perguntar sua opinião sobre, embora, nas entrelinhas, já tenha demonstrado o que sente. Ele sentia algo, mas reprimia esse sentimento. Para além de tudo isso, ele havia chegado a uma única conclusão: A esperança é uma coisa perigosa.


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