Errar é Divino escrita por Jubs


Capítulo 2
1. Bombas, humanos e uma flechinha filha da...


Notas iniciais do capítulo

Heyoo, vamos começar!



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Benjamin Lago era um rapaz até que bem comum, obrigado.

Amava artes e música, tanto que fazia faculdade de uma, e tinha um talento invejável na outra. Morava com a tia, uma senhorinha negra e pequenininha já bem depois dos sessenta, mas que jurava mesmo ter quase a mesma idade do sobrinho – pelo menos em espírito, como ela fazia questão de dizer. E era tão grudado em seu violino que ele se tornara quase uma parte normal de seu corpo, a ponto de ser conhecido pelos vizinhos apenas como "o garoto do violino", correndo o risco até de não o reconhecerem caso o vejam na rua caminhando sem aquele grande estojo preto pendurado nas costas.

Quietinho e tranquilo, bebericando seu café aqui e acolá enquanto estuda pacificamente pintores e partituras, Benjamin Lago poderia facilmente passar desapercebido por onde quer que fosse, tamanha sua... hum... "habilidade de camuflagem", vamos dizer. Isso porque, segundo o próprio, "antissocialidade" é uma palavra meio forte demais (apesar de bem verdadeira, aqui entre a gente). Apenas um rapazinho comum, vivendo uma vidinha comum, estudando numa faculdade comum, e com um rostinho mais comum ainda. Por que é que estamos mesmo na cola dele, você me pergunta?

Simples: Benjamin Lago, senhoras e senhores, anda sendo seguido por nada mais nada menos que dois anjos.

— Eu tô te falando, Paris – Dizia um deles, exageradamente preocupado, as pontas do médio e indicador pressionadas contra o próprio pescoço ao checar seus sinais vitais pela milésima vez naquele dia – Minha pressão tá baixa, meu coração tá fraco, eu acho que vou desmaiar!

O outro anjinho, igualmente pequerrucho e gorduchinho, batia as asinhas nervosamente enquanto guiava o irmão sobre as ruas movimentadas da cidade, sem perder de vista o garoto do violino que seguia seu caminho normalmente adiante deles.

— Loukás, pela enésima vez... – Sussurrou este, massageando a testa, sem paciência – Você é um anjo. Anjos não têm problemas de pressão.

— Mas eu juro que tô sentindo que...

— É? Tipo quando você se encostou naquele tronco cheio de formigas, sentiu elas subindo pelo seu braço, achou que era um formigamento e jurou que estava tento um enfarte?

Loukás se calou, amuado. Em sua defesa, faziam muitos anos que ele não via nenhuma formiga, logo não tinha como adivinhar que eram elas que estavam fazendo seu precioso bracinho formigar. Em compensação, porém, já tinha lido livros de medicina humana o suficiente para conhecer todos os sintomas de um enfarte – e de mais umas centenas de outras enfermidades, assim, sabe, só o suficiente para ficar um pouquinho paranoico de vez em quando.

— Tudo bem, não acredite em mim então – Deu de ombros, com um biquinho de desalento – Mas depois também não me culpe se eu desmaiar bem na hora que estiver atirando essa tal flecha.

Foi surpreendido pela face enervada do mais velho subitamente próxima da sua, enquanto um par de mãozinhas gordas lhe apertavam com fúria o tecido branco da túnica.

— Mas você nem brinque com isso, tá me ouvindo?! – Rosnou Paris, entredentes – se você errar essa flecha... céus, não quero nem imaginar o que vai acontecer!

— Bom... a gente meio que já combinou tudo, na verdade. Se eu errar essa flecha, pararei de vez de tentar voltar para a artilharia dos cupidos e vou me contentar com os arquivos mesmo. E, claro, você perderá seu arco, suas flechas, e será rebaixado junto comigo.

— Oh, por Afrodite...! – Lamentou-se o pequeno ao lembrar, soltando penosamente a túnica do caçula para voltar a liderar a caçada – Loukás, você só me mete em encrencas! Por que é que eu ainda arrisco as minhas asas por você assim?

— Porque você me ama! – Ele exibiu um sorrisinho sapeca entre as bochechas fartas. Em resposta, o outro voltou a cabeça para trás, só o suficiente para lançar um olhar gelado para o irmão, que ergueu os ombros para ele. – Qual é, somos anjos do amor. – Justificou – estranho seria se você não me amasse.

— Eu estou te amando bem pouco agora.

— "Bem pouco" é mais que nada.

— Shh, cale a boca! Você está me distraindo. Assim vamos acabar perdendo o humano.

De fato, Benjamin estava já uns bons passos mais adiantado deles – mas caminhava devagar, passeando, distraindo-se aqui e acolá com alguma coisa nas vitrines nas lojas. Não foi difícil alcançá-lo novamente. E, mesmo se o perdessem, até que era fácil encontrá-lo graças ao grande estojo preto do violino que fazia as pessoas meio que abrirem um bom espaço para o rapaz passar, receosas de levarem um belo e acidental sopapo na cabeça.

Sobrevoando os humanos que transitavam pelas ruas, os dois cupidos seguiam o jovem, tranquilamente ignorados por todos. Não podiam ser vistos ou ouvidos; mas seus efeitos eram poderosos. Bastava uma única flecha e o pobre humano atingido logo sucumbia a mais doce tortura existente sobre seu mundo: o amor romântico.

Agora se ser flechado é bom ou ruim já não é problema deles. Você que lide com isso como achar melhor.

— O mundo está bem... diferente do que eu me lembrava – Loukás comentou baixinho, checando agora o próprio pulso para se certificar de que estava mesmo vivo. Não que anjos morressem, ou algo do tipo. Mas Paris já tinha meio que desistido de convencê-lo desse detalhe – Isso até que é bom. Da última vez que estive na Terra quase fui explodido por uma bomba.

Novamente, anjos não morrem por isso. Mas uma bomba explodindo bem na sua frente não deixa de ser algo no mínimo impressionante.

— Ah, sim, você já contou essa história umas quinhentas vezes – Os olhos de Paris rolaram em direção ao cérebro.

— Eu podia ter morrido.

— Não diga!

— De qualquer forma, muita gente morreu. E foi por isso que eu não consegui atirar aquela flecha – Cruzou os bracinhos, enfezado – Injusto me banirem da artilharia por isso, já que eu não ia atirar num cara que estava obviamente morrendo, a julgar pela quantidade de pedaços que voaram do corpo dele com a explosão.

E não, ele não ia mencionar que aquele caso fora apenas o cúmulo de uma loooonga lista de sucessivos fracassos – cada qual, é claro, com sua devida justificativa perfeitamente justificável ao seu ver.

— Bem, dessa vez nenhuma bomba vai explodir por aqui – Respondeu Paris, virando na mesma esquina que o humano, seguido de perto pelo irmão – Aquela guerra horrenda já acabou há anos. Algumas outras vieram, e ainda tem algumas acontecendo, mas nenhuma aqui. Fique tranquilo.

— Ah, os humanos são tão previsíveis...

— São.

— Mas pelo menos ainda assim alguma coisa mudou – Ponderou, correndo os olhinhos sobre os mortais, e notando com certa curiosidade suas roupas significativamente mais curtas e coloridas que outrora – Muita coisa, na verdade... – Um carro esporte passou veloz por eles. Loukás e Benjamin o acompanharam com os olhos, impressionados, embora por motivos diferentes – Vem cá, eu já estou delirando ou aquela moça ali está falando com uma caixinha colorida?

A caixinha colorida era, conforme Paris logo notou, apenas um inocente celular. E a moça em questão tagarelava alegremente com ele, gesticulando, sorrindo e desenhando círculos bobamente na calçada com a ponta do tênis – não era preciso ser nenhum cupido para deduzir que ela estava falando com aquele tal de "crush" que os jovens falam hoje em dia.

Porém, para o seu azar, ela não era a única tagarela por ali.

Chegava a ser impressionante a habilidade de Loukás de simplesmente não calar a boca, em especial quando ficava nervoso – E isso ele até que estava bastante, obrigado. Umas infinidades de palavras por minuto corriam de sua garganta, apressadas, meio desconexas, saltitando de um assunto para o outro, para lá e para cá. Ora falava dos carros, ora das pessoas, das luzes, da guerra, da explosão, da sua pressão, fazia mil perguntas, respondia a maioria sozinho, e voltava a checar o próprio pulso.

Paris estava convencido de que merecia uma canonização por simplesmente aguentar estar ao lado dele sem testar a tal teoria de que anjos, assim como não podem morrer, também não conseguem se matar.

— Veja, lá vai – Os dedinhos gorduchos do cupido apontaram o rapaz, que acabava de entrar na estação rodoviária. Loukás havia se distraído com uma joaninha e começava a voar abestalhadamente para acompanhá-la, até que a mão do mais velho tratou de o agarrar pela asa e puxar para perto. – Venha, vamos logo, não podemos perder o momento perfeito. Ela já vai chegar.

Batendo as asinhas o mais depressa que podiam, os anjinhos entraram na estação, ansiosos para pôr a mão na massa. Há tempos que Paris recebera a missão de flechar Benjamin – mas parecia que absolutamente ninguém à sua volta era totalmente compatível com ele! Ajudaria muito se ele fosse mais sociável, pensava o anjo, quando o via sentado à mesa da mesma cafeteria, tomando o mesmo cappuccino de sempre, totalmente alheio à garota bonita que se sentara na mesa da frente e parecia louca que ele erguesse o olhar para ela. No entanto, Benjamin nunca notava coisas assim, ou fingia não notar. Terminava o café, pagava a conta, ia embora, e deixava a pobre menina lá, frustrada.

"Mas agora não é possível, não tem como dar errado" pensava o cupido mais sensato da dupla, guiando o irmão enquanto seguiam bem de perto o garoto do violino. Estava otimista. Cada vez mais otimista. Tudo só dependia agora de Loukás não agir como um completo... Loukás.

Benjamin, por sua vez, parara próximo a um ponto de desembarque. Arregaçou um pouquinho a manga da jaqueta e olhou em seu relógio de pulso, para logo em seguida aproximar-se de uma parede e sentar no chão, apoiando as costas contra ela enquanto se preparava para esperar. Por sorte havia trazido junto seu caderninho, onde sempre tentava desenhar. Nos fones, um de seus clássicos favoritos de Vivaldi tocava bastante alto – ele detestava a poluição sonora que era os lugares com muitos carros aglomerados.

Mas sabe, apesar daquela expressão fria e de estar ali entocado num cantinho, o jovem sentia-se na verdade muito feliz.

Desde que recebera a ligação dela, avisando que em breve estaria de volta na cidade, não passava um dia em que não contava as horas para vê-la. Fazia tanto, tanto tempo! Ele mal podia acreditar que em breve estariam juntos e, mais ainda, que dessa vez ela estava vindo para ficar, já que ganhara uma boa bolsa numa faculdade lá na cidade. Quando ela disse que estaria chegando naquele dia às três da tarde após passar alguns dias na casa de uma amiga, o rapaz não hesitou em responder que a buscaria na rodoviária, o que, a julgar pela voz sorridente com que a moça confirmou do outro lado da linha, a deixou bem feliz.

Com isso, lá estava Benjamin, às duas e cinquenta e cinco, esperando no alto de sua muito invejável paciência. De suas mãos, uma criatura bizarra de boca torta e olhos esbugalhados surgia no papel.

— Uau... – Murmurou Loukás, que, olhando sobre o ombro direito do humano, observava o desenho surgir – Espero que ele nunca dependa da arte pra sobreviver.

— Ah, não seja cruel – Defendeu Paris, acompanhando sobre o ombro esquerdo – Veja, eu acho que é... é a vizinha. Sim, é, é sim, olhe! Essa bola aqui deve ser aquela verruga que ela tem no rosto.

— Isso é um rosto?!

Um ônibus prateado interrompeu aquela pergunta horrorizada. Aproximou-se do local de desembarque, atraindo a atenção das pessoas ao redor e inclusive a do próprio Benjamin, que imediatamente levantou os olhos do papel. Imitando-o, os anjinhos olharam na direção do veículo – e mal o viu, um deles imediatamente entrou em desespero.

— Ai não, é agora, é agora, é agora – Loukás balançava as mãos loucamente, voando estabanadamente para lá e para cá enquanto o humano levantava-se no auge de sua tranquilidade para pegar a alça de seu estojo.

— Loukás, espera... – Pedia Paris, mais contido.

— Por Eros, eu não posso errar, é minha última chance, quanta pressão, tá tudo girando, meu braço tá formigando, eu vou desmaiar, eu vou vomitar...

— Loukás...

— ... E eu vou voltar para os arquivos, vou ser o fracassado dos arquivos, eu odeio papelada, ataca toda a minha rini...

— Loukás! – Paris voou para cima do irmão, agarrando-o pelos ombros para fazê-lo olhar bem em seus olhos. O anjinho, assustado, obedeceu. – Não é hora de pirar, tá me ouvindo? A garota chegou, o nosso alvo está indo encontrar ela, eles vão se ver, e, pum, você precisa estar lá para atirar a flecha e fazer eles se apaixonarem no momento certo! Tá me entendendo?

Ele balançou a cabeça afirmativamente.

— Ótimo – concluiu o cupido. – Agora vamos encontrar um lugar perfeito para você se preparar. E vê se capricha nessa mira!

Benjamin, em contrapartida, estava já próximo ao ônibus, estojo pendurado nos ombros, uma mão enfiada no bolso, os olhos atentos procurando entre as pessoas que desciam do veículo por um rosto em específico. Esperou, um por um, cada passageiro descer e começar a retirar as malas do compartimento externo do transporte, aglomerando-se, alguns conversando animados entre si. Conforme o espaço ia se enchendo, ele ia erguendo mais o rosto, subindo nas pontas dos pés, procurando.

Foi só após alguns segundos que o último passageiro desceu, que a espera enfim foi compensada.

Uma jovem de cabelos curtos e lisos, com os olhinhos puxados e um sorrisão no rosto acenou para ele assim que chegou na porta. Contente, Benjamin sorriu de volta, erguendo a mão bem para o alto. No instante seguinte, a garota desceu correndo as poucas escadas do ônibus e atirou-se nos braços do moço, sufocando-o num abraço para lá de caloroso enquanto ambos caíam numa gostosa gargalhada.

— Ahh, você veio! – Comemorou ela, ainda sem soltá-lo do abraço.

— Claro que eu vim! – Respondeu o rapaz, rindo – é muito bom te ver de novo, Emi!

— É muito bom te ver também! – A moça soltou-o, observando por um momento com um sorriso de aprovação. – Wow, Benji, tá bonito, hein? Onde foi parar o minha amiga nerd-magricela-cheia-de-espinhas?

— Ah, felizmente a puberdade é passageira – Ele ergueu os ombros modestamente. – Já você continua lindíssima como sempre. E ainda pintou o cabelo!

— Gostou? – Ela mexeu a cabeça, exibindo orgulhosamente suas madeixas negras com algumas mechas azuis. – minha pai ficou louca quando viu. Mas ficou mais louca quando eu disse que ia me mudar.

— Ainda estou chocado que ele tenha te deixado vir, na real. Pensei que nunca mais vocês deixariam o Japão.

— Ah, sim, mas eu apaixonei por Brasil, não via hora de voltar. Aí eu ganhei minha bolsa, e puff! — Ela fez um movimento com as mãos – escapar!

É, sim, a propósito, Emiko Hashimoto era fluente em mais de cinco idiomas – isso, convenhamos, já é mais do que suficiente para perdoar os errinhos de gênero e concordância que ela cometia de vez em quando.

Conversa vai, conversa vem, reencontros e etc., enfim lá se foram os dois rindo, primeiro pegar as malas que já tinham sido colocadas do lado de fora, e logo em seguida caminhando em direção à saída, colocando-se à par das novidades das vidas um do outro. Porém, enquanto a dupla se afastava muito feliz, obrigado, um certo anjinho loiro e rechonchudo, parado no ar próximo a um relógio alto, observava tudo desde o começo e agora só respirava com a força do próprio ódio.

— LOUKÁS. – Exclamou ele, entredentes, pausando a cada palavra como se tentasse muito não explodir de raiva. – Por quê. Você. Não. Atirou. A FLECHA??!

Ao seu lado, com o arco nas mãos e a dita cuja já totalmente posicionada, o pequeno cupido apenas olhava para a frente, sem reação.

— Eu... uh... – Sibilou Loukás, debilmente – Eu fiquei... nervoso... não consegui atirar.

— Como assim "não conseguiu atirar"?

Ora, "Como-Assim-Não-Conseguiu-Atirar"? Não atirando, é claro. Como é que não se atira alguma coisa?

Isso, claro, o cupido respondeu apenas em pensamento porque (A) sua boca estava ridiculamente entreaberta, seca, muda, incapaz de fazer qualquer outro movimento que não fosse o de ficar entreaberta, seca e muda, e (B) ele estava envergonhado demais para admitir que seu palpite inicial de desmaios e tal não tinha acontecido, e por isso ele falhara apenas graças à sua boa e velha crise de pânico.

Patético. Ridículo. Imperdoável.

Ele sabia bem disso.

— Ah, paciência, dai-me paciência!! – Gritou Paris, erguendo os bracinhos para o céu – Você perdeu o momento. O momento perfeito, Loukás!

— Eu sei...

— E agora?

— Eu... não sei.

— Oh, céus... – Paris virou-se, massageando as têmporas ansiosamente. Não acreditava no que o irmão havia acabado de fazer. Ainda mais agora que ele tinha certeza de que era ela! Ela era a garota certa!

Loukás certamente havia sentido aquilo também – aquela conexão entre os dois jovens, genuína, intensa, que fazia as pontinhas dos dedos literalmente formigarem em busca da flecha mais próxima. Mas isso claramente o havia apavorado. O pobrezinho não estava mais acostumado com os "trabalhos de campo". Agora eles precisavam de um novo gatilho, um novo momento... E o mais breve possível, pois Paris mal via a hora de se livrar de todo o peso que era ser responsável por aquele anjo insuportável.

— Venha – Disse ele, repentinamente. Loukás o encarou – Vamos atrás deles. Você vai atirar essa flecha e dessa vez não vai falhar.

Agarrando o irmão pelo pulso, Paris voou velozmente sobre o local de desembarque, apressando-se para encontrar sua dupla de humanos que estava dando tanto trabalho. Esforçando-se para acompanhá-lo, Loukás mal conseguia bater as próprias asas, todo desajeitado enquanto tentava não deixar o arco cair. Sob seus pezinhos, várias pessoas passavam tão velozes que mal se podia distinguir suas cabeças, o que o fez pensar que iria mesmo desmaiar daquela vez.

Felizmente os humanos certos foram logo localizados e Paris soltou o seu braço para segui-los devagar e bem de perto. Procurava um momento, só unzinho, que servisse de gatilho. Qualquer um valia agora, não importava ser perfeito ou não. Ele só queria. Um. Momento.

Foi então que, quando passavam pelo caminho em frente à praça que Benjamin sempre usava para ir para a casa da tia, Emiko acabou tropeçando e deixando uma mala cair. Os olhinhos cor-de-rosa de Paris brilharam de esperança. Assim, rindo, os dois amigos se aproximaram da mala para pegá-la ao mesmo tempo.

— Vamos, vamos, é a sua chance! – Acudiu ele, empurrando o irmão para a frente, colocando outra flecha em sua mão e já de uma vez ajeitando os próprios bracinhos e postura dele na posição de mira. – Eles vão se abaixar, vão tocar as mãos, e aí pronto, você o acerta.

— Espera, assim, agora? – Loukás retrucou – que clichê!

— Os clichês sempre funcionam, né? – Paris afastou-se, deixado já tudo pronto. – Certo, agora é com você, depressa! A rua está quase vazia, não tem como errar. Atire!

— M-Mas...

— Atire!!

Ele atirou.

A flecha voou, veloz, furiosa, cortando os ventos como uma bala reluzente e dourada para acertar em cheio o peito do seu alvo – e mal encostava em sua pele, fundiu-se ao corpo esguio de Benjamin com a suavidade de uma brisa um pouco mais intensa ao acariciar gentilmente o cabelo da gente pela manhã.

— AH! – Gritou o anjinho, exultante – Papagaios, eu consegui!!

— Ainda não, falta a garota – Paris posicionou uma nova flecha entre os dedos do irmão, mais do que rápido – VAI!

E assim, pressionado, nervoso, e sem muito tempo para raciocinar, ele novamente atirou.

Bom, o que aconteceu a seguir pode ser resumido em dois adjetivos muito simples e autoexplicativos: rápido e patético. Mas muito rápido, se considerar a velocidade de uma flecha ao ser atirada; e muito patético se considerar que foi Loukás quem a atirou. E, se tratando dele, não podia mesmo ter sido de outro jeito.

Dá para visualizar perfeitamente a cena toda, visto que ela é tão rápida e tão patética que chega a ser até absurda o suficiente para os próprios humanos terem conseguido imaginá-la e recriá-la em pequenos curtas animados sobre cupidos na internet. A diferença, é claro, é que em um desses cenários ela acontecia de forma intencional. E quando Loukás atirou aquela flecha, por mais que estivesse perfeitamente ciente da sua lamentável falta de sorte, ele realmente não intencionava que Emi fosse abaixar a cabeça de forma tão brusca naquele milésimo de segundo; também não esperava que isso fosse bastar para a flecha passar de raspão pelo topo dos seus cabelos; tampouco imaginava que a isso se sucederia uma série de encontros entre a ponta da flecha e várias superfícies refletoras, incluindo uma vitrine, uma caçamba de caminhão, o espelho de maquiagem de uma idosa, e uma placa imensa de vidro que alguns vidraceiros estavam carregando no meio da rua (vai saber raios por qual motivo).

O que importa é que a flecha foi para lá e para cá, para cá e para lá, esbarrando, refletindo, quicando loucamente de uma superfície para a outra sob os olhares fixos e espantados dos cupidos, até que em seu golpe final de zombaria, ricocheteou em uma mísera latinha de refrigerante largada aos pés de uma lixeira e voltou à toda velocidade na direção de onde fora atirada.

Em choque, Loukás observou sua própria arma voltar-se contra si, tocando seu corpinho gorducho precisamente e desaparecendo como um espectro em consequência. Era como se tivesse atingido o nada, literalmente. Sem entender e sem acreditar no que tinha acabado de acontecer, o anjo olhou então instintivamente para Benjamin. Para seu enorme susto, o garoto do violino agora estava olhando diretamente em seus olhos, tão chocado quanto ele.

Será que... ele o estava vendo?

Não, não, não, não, não, isso era impossível!

— Benjamin...? – Era Emi chamando. Ela o encarava, de pé, desconfiada, sem entender o porquê de o amigo estar olhando para o nada com os olhos arregalados e a boca aberta de espanto. – Está tudo bem...?

Mudos de expectativa e com os olhinhos mais arregalados que nunca, Loukás e Paris observavam a cena, um ao lado do outro, perplexos. Nunca antes algo assim havia acontecido na história dos anjos; pelo menos não que algum deles pudesse se lembrar. Eles não faziam ideia do que aquilo significaria.

Será que a flecha de Benjamin falhara também, já que a outra não atingira a humana?

Ainda parecendo bastante desnorteado, Benjamin baixou a cabeça, encarando a calçada. Parecia buscar respostas nela, já que, procurando-as dentro de si, parecia que tudo ficava mais e mais confuso. Ele sabia que sentira algo, sim, algo novo, algo extremamente forte, vindo sabe-se lá de onde, mas... o que era?

E, o mais importante: ele estava maluco ou tinha acabado de ver um vulto de um bebê flutuante aparecer e desaparecer em questão de microssegundos, bem ali na sua frente?

— E-eu... – Murmurou ele então, levando uma mão à testa – Eu acho que estou bem...

— Você está estranho – Insistiu Emi, preocupada, começando a ajudá-lo a se levantar – Está passando mal? Quer que eu chamar ajuda?

— Não, não. Obrigado, eu tô legal. Foi só uma sensação estranha que deu assim de repente, mas já passou.

— Tem certeza?

— Tenho. – E, forçando um sorriso, entregou o cabo da mala para a amiga – Vamos? Acho que tudo que eu preciso agora é de um café bem forte.

Ainda meio desconfiada, Emiko pegou a mala da mão de Benjamin, e juntos os dois prosseguiram em sua caminhada para a casa de tia Betty na maior normalidade que conseguiram. Alguns metros mais adiante, conseguiram até voltar a conversar numa boa. Para trás é que, chocados e totalmente sem palavras diante daquilo tudo, Loukás e Paris assistiam a dupla se distanciar cada vez mais, com as bocas escancaradas e uma tensão quase palpável crescendo mais e mais entre eles.

— Loukás... – Paris conseguiu sussurrar, enfim, com muito esforço. – O que você fez...?


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Notas finais do capítulo

Te vejo semana que vem?
;D