Digimon: Relics of the Sacred escrita por Yongyuan


Capítulo 2
Amizade




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Não se podia ver o fim da estrada de terra, pois ela entrelaçava-se, em curvas, pelo bosque. A vista das árvores ao redor era tão bonita que, aos cinco viajantes, parecia de pouca importância se a caminhada fosse longa, pois, com certeza, não seria tediosa. As folhas estavam todas secas, assim como as areias do chão, mas ainda assim havia cheiro de terra molhada no ambiente.

— Quê? - questionou Ian. - Ovos?

— Isso, são os Digitamas! - explicou Gabumon. Aimee riu, achando graça da conversa. - Quando a gente fica velho, é isso que acontece. Nosso corpo é desfeito em dados e ai a gente vira um digitama.

— Caramba, que melancólico. - murmurou Agnes. Caminhar pela terra sujava-lhe os sapatos, mas isso pouco lhe importava, frente ao tamanho êxtase de estar ali, num outro mundo, na companhia de um ser com o qual nunca imaginaria, nem mesmo em seus sonhos.

— Mas é verdade. - continuou o Digimon. - Aí esse ovo precisa ser tratado por alguém. Se ninguém estiver perto dele, nem cuidar dele por um dia, ele é mandado pra Cidade do Princípio.

— “Mandado”? - questionou Kepler. - Quem leva o ovo lá?

— Hmm... - resmungou Gabumon, levando a mão direita à boca e erguendo o rosto, pensativo. - A gente não sabe ao certo, mas tem algumas histórias.

— Sei.

— Alguns dizem que já viram digitamas sendo levados por alguns bichinhos brancos voadores... não se sabe se são Digimons, então eles são chamados de elfos.

— E aí nasce, desse ovo, um outro Digimon, que não tem nada a ver com o primeiro?

— É. Quer dizer... às vezes é parecido...

Ao terminar aquela frase, Gabumon baixou o olhar, demonstrando alguma preocupação. Aimee percebeu isso e, por resposta instintiva, aproximou-se do novo amigo.

— O que foi? - indagou ela.

— Sabe, a Cidade do Princípio precisa de cuidadores para os digitamas. Atualmente somos três, eu, Elecmon e Betamon. - explicou ele. - Só que, recentemente, a chegada dos ovos por lá está muito baixa, simplesmente porque a maioria da população ainda está na forma de dados, fazendo parte da energia que tem nas relíquias que Zero mencionou.

— Ou seja, enquanto essas relíquias existirem...

— Até mesmo o nascimento de novos Digimons vai continuar sendo prejudicado. - concluiu Ian.

— A gente tinha uma estimativa de um pra mil, ou seja, a cada um digitama ou Digimon bebê morando no Princípio, teríamos mil crianças ou adultos vivos pelo mundo… - disse Gabumon. - agora isso mudou muito. Falam de taxas de um pra quatrocentos, e a população está tão baixa que isso acaba significando uma Cidade do Princípio quase vazia…

Aimee engoliu seco. Teve vontade de dizer alguma coisa, mas nenhuma boa palavra lhe surgiu à mente. Decidiu, então, expressar-se numa atitude simples; levou a mão direita à cabeça do lobo e acariciou-o.

— A gente vai resolver isso - disse ela. - eu prometo.

Gabumon virou o rosto e encarou a garota. Sorriu-lhe, e então ela sorriu de volta.

— Olha! - exclamou Ian, apontando à frente. Fez isso pois viu que a estrada, pela qual caminhavam, tomava uma curva em meio à grama e jogava-se para um morro alto à esquerda.

— É, é ali! - respondeu Gabumon, disparando à frente. - Dali de cima já dá pra ver a cidade!

Aimee e Ian correram também, acompanhando o amigo Digimon. Agnes e Kepler entreolharam-se e sorriram, achando graça dos três.

Por ter sido o primeiro à avançar, Gabumon foi, também, o primeiro à chegar até o morro e subi-lo. Assim que se pôs em pé ao topo da subida, seu rosto foi infestado pela mais pura expressão de amargor.

— … Não, não…

O pequeno lobo disse aquelas palavras enquanto, novamente, avançava, escorregando pela descida do morro, de forma que não houve tempo para que Ian e Aimee, que vinham logo atrás, ter com sua companhia. Assim que os dois adolescentes terminaram de subir, tiveram visão da Cidade do Princípio, ainda a bons metros de distância, e o que viram em tanto se assemelhava à ala maternal do mais chique hospital de Vancouver. O chão era verde, dividido em incontáveis pisos quadrados, e havia balões amarelos, com desenhos cartunescos de olhos e bocas, bem como algumas casinhas de diferentes cores, espantalhos rosas, almofadas dos mais diversos tamanhos, árvores repletas de frutas e tantos tipos diferentes de brinquedos. Não foi difícil para os garotos, no entanto, entenderem o motivo do descontentamento de Gabumon: a ala oeste da cidade parecia ter passado por um furacão, pois havia árvores caídas e brinquedos quebrados, tendo eles sido, claramente, alvos de ataques.

— Nossa, que isso… - murmurou a garota, assustada. Ian, por sua vez, sequer disse alguma coisa, apenas saltou à frente puxando Aimee pela mão.

Os dois correram atrás de Gabumon por mais alguns instantes, após descerem do morro, até que juntaram-se à ele na ala oeste da cidade. O lobo estava parado frente à algumas casinhas e brinquedos destruídos. Não havia outros Digimons à vista, o que foi de estranheza, à Aimee, que lembrava ter ouvido, do amigo, que haviam bebês na Cidade do Princípio, ainda que não tantos quanto no passado.

— O que aconteceu… - murmurou, novamente, a garota.

— Você acha que ele apareceu por aqui? - indagou Ian.

— … Não - respondeu Gabumon. - Se fosse ele, a cidade toda estaria destruída…

Assim que terminou sua resposta, o Digimon ouviu um grunhido. Ele esbugalhou os olhos, realizando que o tal grunhido vinha dos escombros das casinhas destruídas mais à frente. Sem hesitação, ele disparou, gesto esse que levou, os dois adolescentes, à correrem também.

— Me ajudem aqui! - gritou Gabumon, tomando, em mãos, a primeira tora que encontrou alcançavel pelos escombros.

Aimee e Ian usaram de todas as suas forças, e, juntos, os três ergueram o pedaço de madeira e jogaram para a direita. Ergueram, em seguida, vários pedaços quebrados do material que compunha o teto das casinhas e jogaram-nos todos também à direita. Revelou-se, então, o corpo de um Digimon que estava ali, até então, enterrados nos escombros: um ser aparentemente quadrúpede, vermelho e de corpo ligeiramente gordo, enfeitado com traços azuis pelas costas, rosto e também pelas nove caudas que tinha. Tinha garras afiadas, e, com a pata dianteira vermelha, segurava um laço grosso.

— Elecmon! - gritou Gabumon, alcançando, o amigo, com as duas mãos. Chacoalhou-o, e, por felicidade, a pequena raposa respondeu aos impulsos; gemeu alguma coisa e remexeu o corpo. - O que aconteceu?

— … Onde é que ele ta? - perguntou, Elecmon, como a melhor forma de resposta que encontrou.

— E-ele quem? - questionou Aimee.

Não haveria resposta mais adequada, para a garota, do que o evento que se sucedeu logo em seguida. Repentinamente, uma outra figura surgiu, saltando por detrás dos escombros à vista e erguendo-se, em pé, acima de um galho grosso de uma das árvores próximas à esquerda do grupo. Ian, Aimee e Gabumon viraram-se e viram um ser que assemelhava-se à um coelho, de corpo bege e bípede, orelhas longas, de rosto dentuço e pelugem grossa e branca ao peito. Suas duas mãos eram cobertas por luvas de ferro que traziam, à ponta, três longas e afiadas garras vermelhas. Com as luvas, o coelho carregava um saco de pano, grande e de tecido opaco; ainda assim, foi possível, para Gabumon e os dois adolescentes, perceber que havia digitamas dentro daquele saco

— O que você está fazendo, Prairiemon!? - perguntou o lobo, distanciando-se de Elecmon e caminhando, lentamente, em direção à árvore caída.

— Hi hi… - riu o coelho.

Ian e Aimee avançaram, também, mas fizeram-no com certa hesitação por conta da imagem ambígua daquele Digimon; seu rosto parecia amigável e suas orelhas tremiam levemente, o que lhes fazia lembrar de um coelho de verdade de seu mundo, mas, ao mesmo tempo, aquelas garras vermelhas, instaladas em luvas grossas de ferro, pareciam, claramente, ferramentas brutais de morte.

— Ele “querer” servos… - continuou Prairiemon. - ele “querer” sacrifícios…

O primeiro à entender por completo o que o coelho havia dito foi Ian. Tornou-se claro, para ele, numa fração de segundo, que Prairiemon acreditava numa nova ordem daquele mundo; ele acreditava que a vitória de Armenimon era inevitável e que ele levaria para o novo mundo, consigo, aqueles que o ajudassem. Prairiemon ofereceria aqueles ovos ao seu líder como um gesto de fidelidade e, ao mesmo tempo, o sacrifício daqueles que viriam a nascer daqueles ovos tornaria Armenimon mais poderoso.

— Não… - murmurou o rapaz. Antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, no entanto, o coelho riu novamente e saltou de cima da árvore, para trás de onde estava, rumo ao norte da cidade.

— Ele vai fugir! - gritou Gabumon.

Ian acompanhou, com o olhar, enquanto o lobo disparava à esquerda, ao redor dos escombros, correndo atrás de Prairiemon. Não o seguiu, no entanto, pois lembrou-se de algo que poderia ajudar; virou-se à direita e foi até Elecmon. Encarou a corda grossa de laço que a raposa empunhava e entendeu o que é que precisava fazer. Puxou a corda para si rapidamente e saiu logo dali. Subiu no tronco caído da árvore com toda a velocidade à qual seu corpo podia atender e mirou em Prairiemon, que ainda não estava tão distante.

Eu só tenho uma chance”.

O garoto começou a girar o laço, criando tensão na corda, e, depois de gira-lo três vezes, lançou-o. Os poucos instantes que se seguiram, enquanto o laço voava pelos ares, passaram-se como longos minutos para Ian e isso aconteceu somente porque ele sentia-se estranho, de alguma forma, quanto às coisas que percebia em si; ele sentia-se estranho quanto ao desespero que teve em pegar aquele laço, em primeiro lugar, e joga-lo contra o ladrão de digitamas.

O que é que eu estou fazendo aqui?”.

Filho de um marceneiro e de uma empregada doméstica, Ian havia vivido seus dias ora para ajudar o pai, ora para ajudar a mãe, e dificilmente para qualquer outra coisa além disso. Ainda assim, seu pai, que tinha a honra da companhia do filho muito mais vezes que a mãe, sempre fazia questão de lembra-lo da importância dos estudos.

— Você ainda vai ouvir isso muitas vezes dos seus professores. - disse-lhe o pai, certa vez, enquanto trabalhava na oficina. O homem era alto, tinha cabelos negros e curtos, suas roupas de trabalhador eram sujas e seu rosto era esburacado por conta da acne que lhe fez presença durante a adolescência. - Você vai ouvir todos eles dizendo como é importante estudar pra conseguir seguir uma profissão digna e que dê dinheiro.

O homem ajeitava uma placa comprida de madeira clara em cima de sua mesa de trabalho, ajustando os ângulos para deixa-la o mais reto possível para que fosse cortada em breve. Seu filho, do outro lado da mesa, assistia pacientemente ao seu trabalho. Hora ou outra, o garoto, do alto de seus dez anos de idade, deixava de encarar o pai apenas para encarar o resto da oficina; o espaço era grande, com duas mesas dispostas para o trabalho, uma enorme série de tábuas ao fundo e duas lâmpadas amarelas que iluminavam bem todo o ambiente. Não se podia evitar sentir os cheiros de sujeira, ferrugem e madeira cortada característicos de um local como aquele.

— E isso é verdade, né? - indagou o menino.

— … É…

A resposta do pai, hesitada e acompanhada de um leve balançar de cabeça, fez Ian entender que talvez aquilo não fosse tão verdade assim.

— A questão, filho, é que toda profissão é digna… vai, me ajuda aqui. - complementou o homem, sorrindo. Levou a mão à esquerda, alcançando um lápis preto que sempre mantinha próximo à si na mesa de trabalho. Ian, por sua vez, estendeu os dois braços à frente, ajudando a segurar a placa para garantir que ela não se movesse e prejudicasse as marcações. - Veja essa cadeira que a gente tá fazendo, por exemplo. Quando dá meio dia e você quer almoçar, você vai se sentar numa cadeira como essa e comer o que estiver servido na mesa. Não importa se você é um marceneiro, como o seu pai, ou se você é um médico, um advogado ou um dono de um banco. Todo mundo vai querer se sentar numa cadeira e essa cadeira vai ter sido feita por um marceneiro. A mesa, onde estiver a comida, também vai ter sido feita por um marceneiro, não importa quanto dinheiro tenham gasto na refeição.

— Então quer dizer que eu não preciso estudar? - questionou, inocentemente, o garoto.

— Pra seguir qualquer profissão você precisa estudar essa profissão, sempre. Eu precisei estudar marcenaria pra trabalhar aqui. - respondeu o pai, finalizando as marcações e pondo o lápis de volta no lugar. - Mas eu entendo o que você quer dizer, então veja as coisas dessa forma: se você não quiser estudar, você vai poder seguir meus passos aqui nessa oficina. Se você estudar, você vai poder ser um marceneiro da mesma forma, mas vai poder ser muitas outras coisas também, se quiser, e vai ter um leque muito maior de oportunidades na vida.

Aquela resposta abriu a mente do garoto e serviu para guia-lo, no futuro, de muitas formas diferentes.

— Toda profissão se trata de resolver problemas e deixar a vida dos outros melhor e mais confortável. - continuou o pai. - Todo mundo precisa de alguém que plante e colha a comida, de alguém que faça as mesas e cadeiras pra podermos nos servir, de alguém que costure as roupas pra podermos vestir… entende?

— É, eu entendo.

O pai armou-se de um serrote, então, e mirou-o na marcação principal da madeira. Ian ajudou novamente a segurar a placa para que não houvesse erros.

— Por isso eu te digo que não precisa… se preocupar com isso… - grunhiu o homem, pausadamente, por entre a subida e a descida do serrote à madeira. - o que você… vai querer ser, de profissão… vai vir naturalmente…

Sem dizer mais nada, ele continuou serrando por alguns longos instantes até dividir a placa de madeira. O pedaço cortado caiu ao chão, derrotado, e o serrote foi adequadamente dispensado à mesa de trás.

— A única coisa com a qual você sempre precisa se preocupar, e escute bem isso que eu te falo, é com os seus amigos. - retomou ele, revirando o corpo. - Todo mundo precisa de bons amigos e a melhor maneira de fazer isso acontecer é sendo um bom amigo. Boas pessoas sempre se atraem, então você precisa ser sempre o primeiro à ser uma pessoa boa, e, desse jeito, mais gente boa vai aparecer na sua vida. Entendeu?

O garoto balançou a cabeça positivamente, baixando-se, em seguida, para tomar, em mãos, o pedaço cortado de madeira.

— E, ainda assim, amizade verdadeira é algo raro, então, quando você tiver amigos de verdade, esteja sempre com eles, pro que der e vier.

Aquelas palavras cruzavam-se pela mente do garoto agora, cinco anos depois, enquanto, pacientemente, aguardava o laço chegar até Prairiemon, sem saber sequer se conseguiria acerta-lo de primeira. “O que é que eu estou fazendo?”, questionava-se ele, percebendo que agia movido por algo além da pura e simples camada racional de sua mente. Sim: ele movia-se pelas palavras do pai, em defesa do mundo de Gabumon e Elecmon, seres esses que ainda mal havia conhecido mas sabia que podia chamar de “amigos”.

“Quando você tiver amigos de verdade, esteja sempre com eles, pro que der e vier. Lute com eles e lute por eles, sempre.”

Após cruzar-se intensamente pelos ares, o laço, pela felicidade daquele que o jogava, enfim chegou ao alvo e acertou-o com total precisão. Prairiemon foi amarrado pouco abaixo da altura dos ombros e, quando a extensão da corda chegou ao fim, seu corpo puxou Ian violentamente. O garoto jogou-se para trás, pondo-se num ângulo diagonal para com a árvore na qual pisava, e, com todas as forças de seus braços, tentou resistir, mas conseguiu fazê-lo apenas por alguns breves instantes; ele foi puxado à frente, pela força de Prairiemon, de forma que foi, também, arrastado pela extensa cama de escombros e, depois, pelos pisos verdes da Cidade do Princípio.

— Aaah!

O grito de Ian pareceu desesperançoso num primeiro momento, pois ele via que não teria forças para resistir contra o coelho. Num breve instante de folga, no entanto, ele encontrou a oportunidade de levantar-se, ainda com a corda em mãos, e puxar-se para trás, já que era tudo o que ele podia fazer. Jogou uma perna à frente e usou toda a sua força num novo embate contra Prairiemon.

— “Mim” larga!! - gritou o coelho, virando-se de frente a Ian e puxando-se de costas.

O garoto continuou puxando, confiante, já que era tudo o que lhe restava fazer. Seus pensamentos de esperança foram alimentados pelo barulho que ouvia vindo de trás de si: Aimee aproximava-se correndo, ofegante, rumo à corda que prendia o coelho. Ela a agarrou assim que a alcançou e então pôs-se a puxar.

— Você ta bem!? - questionou, ela, num tom mais elevado e desesperado do que Ian poderia antecipar.

— Ahm? - retrucou ele, virando o rosto e encarando a amiga. Ela, por sua vez, estacionava o olhar nos braços do garoto e somente então ele percebeu que havia se ralado por ter sido arrastado pelos escombros. Ele não sentia dor, tal era o efeito da adrenalina em seu sangue. - Ah, to, to sim…

A disputa naquele cabo de guerra improvisado mostrou-se apertada, mas pendia ligeiramente para Prairiemon - mesmo segurando o saco de digitamas, ele ainda tinha mais força para resistir.

— Nossa, ele é muito forte… - resmungou Aimee.

Gabumon surgiu em seguida. Devido à sua forma nada atlética, dar a volta pela esquerda dos escombros havia lhe tomado algum tempo, e, assim que chegou ali, viu os dois amigos medindo forças contra Prairiemon. Por um momento, teve certeza de que estava entendendo algo errado; seria difícil, para ele, acreditar que aqueles dois conseguiriam segurar um Digimon de nível mais avançado como era o caso. Hesitou por pouco tempo, no entanto, pois sabia o que deveria fazer: abriu a boca, sem dizer nada, e desferiu uma linha fina de fogo, de cor azul, que projetou-se contra a perna esquerda de Prairiemon, atingindo-o e fazendo-o perder levemente a força. Ian e Aimee, mantendo-se ainda firmes, assistiram aquela cena sem acreditar no que haviam visto.

— O que… - murmurou o garoto.

— Você solta fogo pela boca? - indagou, a menina, em voz alta. Gabumon, confuso, levou a mão direita ao queixo e encarou Aimee de volta.

— Ué… - resmungou ele. - Vocês não?

Fez-se ali, de imediato, a presença de Agnes e Kepler, que chegaram correndo. Antes mesmo de dizer qualquer coisa, os dois uniram-se aos amigos no cabo de guerra e agarraram a corda com todas as forças que tinham.

— O que é que ta acontecendo aqui? - questionou Kepler.

— Ficaram um minuto longe e já tão arranjando confusão… - murmurou Agnes, sorrindo. Ian observou-a de canto de olhos e sorriu também.

Gabumon uniu-se aos humanos, emprestando também suas forças, de forma que Prairiemon percebeu que não ganharia. Pouco a pouco, seus pés escorregavam pelo piso e ele acabava sendo puxado em direção ao grupo.

— Solta o saco, dentuço! - gritou Aimee.

— … “Mim” solta… - retrucou o coelho, em voz baixa. - “Mim deixar” em paz…

Elecmon foi o próximo que apareceu. Aparentemente recuperado, ele jogou-se, por de cima dos escombros, e correu até perto do grupo aliado. Resmungou alguma coisa e abriu suas nove caudas, num gesto tal qual o de um pavão. Seu corpo tremeu, levemente, produzindo uma camada de energia elétrica que lhe fez iluminar. Aquilo chamou a atenção dos quatro adolescentes e surpreendeu muito mais à Agnes e Kepler que aos outros dois.

— Nossa, que isso… - indagou, assustada, a garota.

A descarga elétrica produzida por Elecmon disparou-se rapidamente contra Prairiemon, atingindo-o próximo à cabeça e paralisando-o. Por conta disso, o coelho não mais fez forças, o que o fez soltar o saco de digitamas para o lado e ser puxado pelo grupo aliado, perdendo, então, a disputa do cabo de guerra. Caído de frente ao chão e derrotado, o coelho resmungou qualquer coisa em tom inaudível para os demais. Aimee, movida pela seriedade da situação, disparou à frente, alcançando o saco de tecido com as mãos e puxando-o para longe do Digimon e para perto de seus aliados.

Percebendo que Prairiemon não mais resistiria, Kepler acabou por soltar o laço. Ele encarou os digitamas dentro do saco que Aimee puxava consigo e acabou por lembrar-se da conversa que havia tido com Gabumon durante a viagem. Sem sequer perguntar qualquer coisa para qualquer um dos que estavam ao seu redor, ele tirou as próprias conclusões sobre o que é que havia acontecido ali em sua ausência; distanciou-se do grupo, então, caminhando até Prairiemon.

Movidos pelo gesto de Kepler, Gabumon, Ian e Agnes soltaram também a corda. O lobo sentou-se para descansar; Ian avançou, seguindo o amigo humano, e Agnes suspirou, dando um passo para trás e virando-se. Prestou muita atenção em tudo o que via e somente então é que percebeu-se num lugar que parecia-se muito com a ala maternal de um hospital - a mesma conclusão à qual Aimee havia chegado minutos atrás. Tudo era muito bonito, tanto o piso verde que formava a textura do chão e dos poucos muros baixos que formavam o inicio de passagens para dentro da cidade, quanto os brinquedos e balões. Em meio à toda aquela beleza e inocência, via-se a destruição que acometia as casinhas que haviam, até então, logo ali ao lado.

— Foi ele? - questionou a menina. - Foi ele que fez tudo isso?

— Prairiemon veio roubar digitamas. - explicou Elecmon, sentando-se. - Ele atacou, a gente se protegeu e… esse foi o resultado.

Agnes não disse mais nada. Seu punho direito, fechado, foi levado à altura do peito, enquanto seu rosto trazia, em si, um semblante honesto de preocupação.

Prairiemon, derrotado, remexeu-se, assim que teve forças para isso, pondo-se sentado. Soluçou, repentinamente, e então levou as duas mãos ao rosto, dando início à um pranto contido. Ian e Kepler aproximavam-se, pouco a pouco, e sentiam estranheza por conta da reação daquele Digimon.

— Por que você fez isso? - questionou Kepler. - Por que você quebrou os brinquedos e roubou esses ovos?

— Ele “ganhar” da gente… - respondeu o coelho, pausadamente, em meio ao choro e aos soluços.

— … Armenimon?

— É. - respondeu Ian. - Ele queria levar esses digitamas como sacrifício pra Armenimon e se aliar com ele.

— A gente não “ganhar”! - resmungou o coelho, tirando as luvas do rosto e encarando os dois garotos. Havia tristeza em seu semblante, uma tristeza sincera, em nada fingida, detalhe esse que foi percebido pelos humanos. - Não “ter” como!

A honestidade daquelas palavras preocupou Ian, que encarou Kepler, por alguns momentos, sem saber o que dizer.

— Vocês nunca “ver”… - continuou o Digimon, levando, novamente, as mãos ao rosto. - vocês nunca “ver” como ele “destruir” tudo… como ele “matar” todo mundo… meus amigos…

Agnes apareceu entre os garotos em seguida, movida pelas palavras de Prairiemon. Ela levou a mão esquerda até a cabeça do coelho, em consolo, pois percebeu que ele havia agido daquela forma porque realmente acreditava que não havia formas de vencer Armenimon - ele havia agido da forma que havia encontrado para defender a própria vida contra um mal maior.

— É por isso que a gente ta aqui - disse ela. - a gente ta aqui pra ajudar vocês.

Confuso, Prairiemon baixou as mãos e encarou Agnes, que lhe encarou de volta. Numa demonstração biológica desesperada, o olhar do coelho alternava entre os olhos da garota; não sabia se encarava o esquerdo ou o direito.

— A gente vai ganhar, eu prometo. - continuou a garota. - Mas precisamos que você não faça mais esse tipo de coisa.

— … Ah… - resmungou o coelho, engasgando. - “Mim” nunca “ver” Digimons como vocês aqui…

Kepler e Ian viraram-se, caminhando de volta até Gabumon e Elecmon, enquanto Agnes permaneceu ainda ali fazendo companhia à Prairiemon.

— Não somos Digimons, amigo. - respondeu Ian.

Num acesso de fúria inesperado, o coelho levantou-se rapidamente, assustando Agnes.

— “Mim” não “acreditar” em vocês!! - exclamou ele. Os dois rapazes interromperam seus passos e viraram-se de lado, encarando Prairiemon, confusos com aquela reação. - Vocês vão morrer numa luta inútil! Além de morrer, vocês ainda “tirar” minha chance de ficar vivo! “Mim ir” embora daqui!

De imediato, o Digimon saltou para o lado e disparou, saltando, em movimentos perfeitamente similares ao do animal que, aparentemente, lhe servia de origem.

— “Mim ir” embora e nunca mais “voltar”! - gritou, ele, uma última vez.

Coube, à todo membro do grupo aliado, perder algum tempo observando Prairiemon distanciar-se.

— Ta tudo bem deixar ele ir assim? - perguntou Aimee. Gabumon, em pé novamente, aproximou-se dela, a fim de tomar o saco de digitamas em mãos e leva-lo para onde os ovos deveriam estar.

— Bom… - resmungou Agnes. - Eu não alcanço ele não.

— Ele não era alguém mau, ele só… tava com medo. - disse Kepler. - mas provavelmente vai voltar alguma outra hora pra tentar roubar os ovos quando a gente não estiver aqui.

— É, nesse caso… - murmurou Elecmon, erguendo o corpo. Sua fala atraiu a atenção de todos ali presentes. - vamos precisar chamar alguns amigos.

— … Ei, falando nisso!… - disse Agnes, caminhando em direção à Elecmon. - O que foi que você fez aquela hora? … você solta choque?

O Digimon, por um momento, acreditou ter ouvido algo errado naquela pergunta. Ele ajeitou a postura e encarou, de volta, a garota. Antes de falar qualquer coisa, encarou os outros humanos, e, por último, devolveu o olhar à Agnes.

— Ué… - disse ele, levando a mão direita até perto da boca. - Vocês não?

Ian e Aimee encararam-se, achando graça um do outro. Tomaram caminhada para dentro da cidade, então, unindo-se à Kepler e Gabumon. Elecmon os acompanhou, de forma que Agnes acabou ficando ligeiramente para trás.

Assim que adentraram bem a cidade, o grupo de amigos recebeu a companhia de duas pequenas bolinhas pulantes. Uma era branca, enquanto a outra era preta; uma tinha orelhas redondas, tais quais a de um pequeno urso, bem como olhos negros e esbugalhados, enquanto a outra, de olhos pequenos e amarelos, ostentava duas folhas verdes na parte de cima de si. Agnes observava aquela cena ainda de longe, e, movida pela alegria daqueles bebês que viam que, agora, tudo estava bem, a garota sentiu-se vendo a representação mais pura da esperança - ela sentiu-se vendo a prova literal de que dias melhores estavam por vir, começando por ali.

 

 

I believe in angels,

Something good in everything I see.

I believe in angels

When I know the time is right for me.

I’ll cross the stream,

I have a dream.

 

 

Digimon: Relics of the Sacred

 


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