Jovens Afortunados escrita por Taigo Leão


Capítulo 8
VIII




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Natasha,


Oh, meu anjinho! Com muita lástima no coração lhe escrevo esta carta.
O que lhe contarei ainda me dói muito, de forma que me é necessário uma força que ainda não possuo para lhe escrever sobre. Você já consegue ver, não consegue? Como minha letra está trêmula...
Anteontem me ocorreu o pior dos pesares. Neste dia lembrei de como sou desafortunado. De como sou apenas o resto nessa sociedade. A tristeza e humilhação que senti neste dia ainda me é dolorosa, e não sei se terei coragem de pisar naquele lugar novamente como fiz nos últimos 18 meses.
Depois dos dias em que fiquei sem ir trabalhar, me recuperei e consegui voltar, sendo observado por todos, como sempre, mas, desta vez, tinha algo a mais. Senti uma certa malícia no ar, embora não consiga provar.
Estava fazendo meu trabalho como devia, meu anjinho. Como o bom operário que sempre fui, e sei que isso sempre foi claro para meus superiores, pois nunca ouvi uma insinuação sobre um mal trabalho.
Sei que os outros, com seus olhares e pensamentos maldosos, desejavam que eu falhasse! Pois eles não possuíam nada a dizer sobre mim em relação as falhas. O que eles não pensavam em suas pequenas cabeças era que eles poderiam trabalhar assim como eu, pois ao meu ver, eu trabalhava como eles. Apenas não observava tanto o trabalho dos outros.
Mas então, meu anjinho, chegou o momento. O momento tão esperado por eles. A minha queda.
Não sei bem o que fiz. Não sei se foi algo planejado. Até agora não me é claro.
Como já havia lhe dito anteriormente, nós usávamos as máquinas que vieram do exterior na base da sorte, e embora fosse arriscado, não possuíamos tempo para questionar os meios ou para errar, até que ele, o fatídico momento, chegou.
Talvez tenha apertado algum botão errado, ou a máquina estava no modo errado, o que posso dizer é que a destruí. Me disseram que o idioma dos manuais era chinês ou árabe. Era algo distante de nós.
Após fazer o que sempre faço – ou que pensava saber fazer –, a máquina parou de funcionar. Mas não em um desligamento discreto e silencioso. Não. Todos o viram e ouviram. Os lamentos e tremores da máquina e os gritos do metal, que anunciavam minha desgraça e selavam meu destino, mostrando à todos a bobagem que o pobre homem havia cometido.
O barulho cortante das engrenagens se movendo loucamente. O som do apitar e até mesmo a fumaça que saiu daquela grande e complicada máquina. Era como um show de horrores, onde eu, desesperadamente, suplicava pelo encerramento, enquanto alguns, poucos dos quais, ao ouvir o show, pararam o que estavam fazendo para olhar, se divertiam às minhas custas. Oh, meu anjinho, como sofri neste dia! Mas este não foi, nem de longe, o pior dos pesares. Não. Não foi.
Após a máquina finalmente se acalmar, após os olhares maliciosos e malvados. Após todo o julgamento, escutei alto e em bom som. Uma voz grave e firme, vinda de cima, chamando pelo meu nome. Pela luz que emitia da janela, não conseguia ver o seu rosto, apenas a silhueta daquele que me chamava.
Fui chamado até a sala do executivo. Ali me encontrei frente um dos homens que manda em todos nós. Meu patrão. Na realidade, era o filho mais velho, que às vezes, quase nunca, aparecia no lugar do pai. Um homem alto e magro, com um terno escuro e com o cabelo em um corte e penteado impecáveis, com seus olhos escuros como a noite. Ele me olhou com firmeza. Eu via o poder em seus olhos.
Na sala estávamos apenas eu e ele. Um frente o outro, até que, desesperadamente, eu não sabia o que fazer. Era como se ali fosse o meu julgamento, e ele, o juiz, aguardava pacientemente minha tentativa de defesa. Naquela sala tão poderosa e tão bela, onde estava presente um homem de negócios tão importante como ele. Um homem do qual apenas consigo admirar, pois sei bem que nunca poderei ter o poderio que ele possui.
Aquele homem tão bondoso, decerto enviado por Deus – só podia ser um anjo! –, estava frente a mim e me olhava não com raiva ou desdém, mas com humanidade. Me olhava com coerência! Com amparo! Me olhava como se fosse um igual à ele, até que, em suas próprias palavras, me mostrou que estava esperando que eu falasse.
Mas eu estava tão aflito e tão afobado, que tudo que consegui soltar foram grunhidos, até que caí no chão, de joelhos, aos seus pés. Suplicando para que não me demitisse! Expliquei toda minha situação e expus a forma como era complicado controlar aquela máquina exótica e estranha, da qual não recebemos treinamento e apenas devíamos usá-la da forma certa, sem chance para errar e sem ter a ciência de qual forma é essa. Se Deus havia enviado verdadeiramente este homem em meu caminho, então ele há de me dar outra chance!
Eu me derramava em lágrimas e meu nariz também estava sujo, como se eu fosse uma criança ranhenta.
Não gostava muito do meu emprego naquele lugar, mas tinha completa noção de que não podia perdê-lo, já que era meu único ganha pão. Eu, que já sou um miserável, de família pobre, como bem sabe, sem isso não poderia ser mais nada. Talvez até mesmo seja expulso de casa. Deus queira que não! Tudo isso, meu anjinho, passou pela minha cabeça, mas o que me deu esperanças foi o olhar daquele homem, que solenemente não havia parado de prestar atenção em mim por um minuto sequer. Era como se ele nem piscasse!
Mas tuas palavras, que interromperam minhas súplicas, foram dolorosas demais para mim.
"Alego, meu amigo.", Ele me disse, colocando a mão em meu ombro e me ajudando a se levantar. Então me guiou até uma das cadeiras de visita e se sentou não na do chefe, mas na que havia ao lado da minha. Ele estava como um igual, e não do outro lado da mesa como o patrão que era. E amigo! Ele me chamou de amigo!
"Lamento muito pelo ocorrido. Sei como é o trabalho de meu pai. Sei como ele lida com as coisas e lamento muito por isso. Se lhe posso revelar algo, meu amigo, é que lhe conheço. Você é como a mim, mas apenas por destino, possuo mais recursos do que você. Sei que andas sozinho por esta fábrica. Sei como zombam de ti e não hesitaria – até mesmo me atreveria –, a dizer que possivelmente essa falha mecânica não foi causada por ti ou por defeito da máquina, mas por uma mão humana. Foi influenciada por terceiros. Mas o que vou lhe dizer, meu amigo, é que apesar disto, não posso permitir que você continue aqui, pois esse é o desejo de meu pai. Sei como as máquinas eram perigosas e como se empenhaste para trabalhar com zelo. Mas agora, Alego, lhe digo que se continuar aqui, meu pai pode lhe matar. A máquina, como bem sabe, veio de fora, e custou caro, como deves imaginar, então lhe manter aqui agora seria a pior coisa que eu poderia fazer com você. Ainda mais depois do tempo que ficara fora por não estar bem de saúde – sinto muito pela morte de seu amigo –, esse tempo em que se afastou foi a gota d'água para meu pai e para teus colegas de trabalho."
"Aqui encerro teu ciclo nesta fábrica. E, oh, por favor, não volte a chorar. Levante tua cabeça e seja um homem. Não demonstre tuas fraquezas em público, ao menos não na frente daqueles em que você não confia. Seja forte e resista."
Eu lhe agradeci pelas palavras e, por algum motivo, continuei a chorar. Dessa vez, chorava de tristeza. Eu havia perdido tudo.
"Mas eu irei lhe ajudar. Veja. Terá os teus direitos! E além disso, lhe ofereço algo que aprendi lá fora. Eles chamam de seguro. Não sei bem como funciona, pois há muita burocracia por trás disso, mas aqui, eu irei lhe ajudar."
O homem então me entregou um cheque. O cheque não estava no nome da fábrica ou do dono. Estava no nome do filho, que deve ser pouco mais velho do que eu. E aqui estava ele, me ajudando com sua benevolência, como se fosse um pai ou algo do tipo.
Quanto ao cheque, meu anjinho, não lhe revelarei o valor por não achar necessário. Mas lhe revelo a angústia que senti naquele momento.
Lhe revelo a pobreza. Lhe revelo a infelicidade. Pro inferno com esse cheque! Isso seria algum tipo de esmola? Eu não queria, em hipótese alguma, aceitá-lo. Então ao ver o cheque, coloquei-o de volta sobre a mesa e levantei, me afastando, mas me lembrei de minha pobre realidade. O homem apenas me olhava, sem dizer uma única palavra.
Talvez receber este dinheiro tenha sido uma das piores coisas que tive que fazer na vida. Rejeitar e reprimir meu orgulho e minhas palavras. Acabar com tudo que eu acredito, pelo bem maior. Eu precisava deste dinheiro, isso era um fato. Ainda mais porque, como ele me disse: "São tempos difíceis para conseguir um novo emprego." O homem disse que eu poderia descansar e resfriar minha cabeça. Talvez até mesmo visitar Jonathan, mas aqui estou eu, desde então, sem sair de casa. Agora possuo todo o dinheiro em minha conta e poderei viver bem por um tempo. Mas ainda me é doloroso saber como ganhei essa maldita esmola. Ainda me dói ter o orgulho reprimido, mas penso que essa é a vida: precisamos engolir muitos sapos, embora isso nos doa. Por quê viver dói tanto assim, Natasha? Estou fazendo algo errado, ou sou apenas um desgraçado desafortunado?
A realidade é que, no fim, sou apenas um tolo, pois possuo recursos, embora não precise mais trabalhar por ora. A situação ainda me é dolorosa, mas no fim, ainda acho que aquele homem é um anjo e deve ter enfrentado a ira de seu pai, ou até mesmo escondido isso dele, pois sei que com o patrão, isso nunca, em hipótese alguma, teria acontecido. Eu sairia de lá sem nada, e disso tenho certeza.
Hoje meu orgulho dói, mas minha alma está mais leve, pois aquele homem tão importante, acredita em mim, e verdadeiramente prestou atenção em minhas palavras, me tratando como um igual. No fim, todos somos iguais.
Confesso que agora não consigo distinguir "vazio" de "existir". Pra mim são a mesma coisa.


Com amor,
Alego.

~~~~~


Alego.


Meu amigo. Sinto muito por tudo que tem passado. Não posso falar que não escutei sobre, pois sabe bem como as pessoas são, e, inevitavelmente, esse tipo de notícia corre rápido.
Sei como era infeliz naquele lugar e sei que encontrará seu caminho. Imagino bem o que tem passado e peço que mantenha a calma e relaxe sua mente. Sabe, faça coisas que lhe agradam. Vá ao parque, olhe as estrelas. Compre um livro novo.
As pessoas gostam de falar sobre o que não lhes diz respeito, meu amigo, e não se importam como isso vai ser visto pelos protagonistas destes assuntos. Penso que as pessoas gostam de falar sobre a vida dos outros para que assim não falem sobre suas próprias. Isso porque a vida dos outros é mais interessante do que suas vidas cinzas e vazias. Mas não pense que o que é dito muda a forma como te vejo.
Cuide de si próprio e encontre novas aptidões, meu amigo, sei que podes! E se possível, venha até minha casa. Quero lhe ver. Lhe mostrar o que tenho desenhado e tomar um chá em sua companhia. Por favor, meu amigo, trate de afugentar essa tristeza e essa lástima. Se soubesse como me preocupo com você ou como tua tristeza me afeta, deixaria de sofrer tanto pelas coisas.

Com amor,
Natasha.

~~~~~


Natasha,

Minha querida. Como pode me chamar para ir até a sua casa, quando você mesma não vem até a minha? Não sabe como isso me machuca? Entendo bem o que pensas. Sei que, uma moça de sua classe, indo até a casa de um rapaz, causaria um alvoroço grande demais para esse bairro. Sei como isso seria uma indecência e como todos os outros falariam picuinhas a teu respeito. Pois, usando de teu ponto de vista, acredito que nenhuma vida aqui seja mais interessante para essas pessoas do que a vida de uma família afortunada como a sua. Acredito que todos os moradores deste bairro são abutres esperando por apenas um erro de famílias como a tua para poderem comentar por aí. Nada é mais gracioso para a língua e para o ego destes infelizes do que apontar ações "indecentes" desse tipo de gente.
Para os pobres, nada é melhor do que criar histórias sobre os ricos, dizendo, distorcidamente, que eles fazem exatamente as mesmas coisas que nós, desafortunados, fazemos, mas por estarmos abaixo na escala social, não há problema em nos limitarmos a isso. Para os pobres, a indecência é banal. Para os ricos, é uma transgressão moral. Entendo como são essas coisas.
E embora não cometa nenhuma transgressão. Sei como tua família reagiria a todo esse falatório, embora seja tudo uma grande mentira inventada pelos outros, afinal não há nada de indecente em velhos amigos se revendo para falar sobre a vida.
Sei como esse assunto chatearia tua mãe. Mas da mesma forma em que seria uma transgressão para tu, seria um pecado de minha parte. Não sou digno, meu anjinho, de ir até sua casa. Sei que as picuinhas também seriam criadas nessa situação. Sei bem que tipo de coisas essas pessoas falam sobre pessoas como eu, e por tudo que me é sagrado, não posso permitir, de forma alguma, que falem essas coisas à seu respeito, pois sei que não deve se ligar a essas atrocidades.
Não deves me visitar e não tenho certeza se posso ir até ti. Entenda que não é como se não quisesse, pois quero te ver mais que tudo. Apenas quero evitar todos os conflitos. Faço esse sacrifício para lhe proteger, meu anjinho. Para proteger a tua imagem.
Agora sinto que mesmo mais perto do que nos últimos anos, estamos mais longes um do outro.
Hoje sinto uma tristeza imensurável. Um grande vazio, que nem livros conseguem preencher, ao menos não hoje, que me sinto mais vazio do que nunca. Tomei teu conselho e fui até uma pequena loja que vende livros, mas nenhum me causou um interesse genuíno, então voltei para casa, desanimado.
Sei bem o quanto preza por mim, e sei que não devo te entristecer. Mas hoje, meu anjinho, é um dia doloroso demais para que continue a escrever.
Hoje me sinto triste e vazio, então encerrarei essa carta por aqui.


Vazio,
Alego.


P.S. Ontem as estrelas estavam lindas, mas hoje me pergunto por quê ainda estou vivo, observando as estrelas. Me pergunto o motivo de tantas aflições e coisas que me deixam extremamente triste. Espero que tudo isso seja momentâneo.


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