Contos não cantados escrita por Wi Fi


Capítulo 1
Ciclo de fogo




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Com o crepúsculo, todas as criaturas malditas saíam de seus covis, e aproveitavam a escuridão para cometer seus atos sórdidos.

Era também ao anoitecer que eu me esgueirava para fora do palácio de Odin para encontrar-me com Loki.

Naquela tarde, tínhamos tido o prazer de receber Freya em nosso salão. Ela veio em sua deslumbrante carruagem puxada por gatinhos, que miavam e espreguiçavam-se no sol enquanto eu, ela e Frigga comíamos pães recém feitos e bebíamos chá.

“Estás com ar cansado, Sigyn” comentou Freya “Andas com dificuldades para dormir?”

Eu tinha, de facto, dormido mal. Na noite anterior, em nosso passeio habitual, Loki tinha me ensinado a conjurar fogo. Eu observara maravilhada quando ele, num estalo, fizera chamas saírem de seus dedos, e fiquei ainda mais espantada quando eu consegui fazer o mesmo. Ele havia me congratulado, pondo um braço ao redor de meus ombros, e usando a mão livre para tomar as minhas, com seu típico ar de divertimento.

Na minha cama, passei horas a repetir o truque, orgulhosa de mim mesma, apaixonada pelas labaredas que agora eram minhas, e sentindo um calor subir-me da barriga ao rosto sempre que lembrava da sensação de ter Loki a tocar em minha pele.

Eu assoprava a chama, e voltava para a escuridão do meu quarto, tentando dormir. Fechava os olhos e pensava em seu cabelo, laranja como as fagulhas em minhas mãos, e no sorriso que tinha no rosto quando me dissera que sabia que eu tinha talento para a coisa. Então estalava os dedos novamente, para olhar para o fogo, e repetia o ciclo.

“Estava agitada” menti “Muito empolgada com os novos e feitiços…”

“Eu soube que você anda a ver Loki com frequência, à noite”, comentou Frigga “Não gosto disso, Sigyn. Ele não é confiável”

Suspirei.

“Eu não o acho tão mau assim. Ele é muito simpático fora da corte. Nunca me foi rude”

“Não é esse o problema. Loki é como uma cobra” Freya concordou “É traiçoeiro. Só pensa em si próprio, e ele vai te magoar algum dia”

“Como vocês têm tanta certeza de tudo?”

Freya balançou a cabeça, com pena de mim. Eu odiava quando ela fazia isso.

“Você é muito ingênua, Sigyn. Com o tempo, irá perceber”

“Perceber o quê? Nunca ninguém me diz nada. O que é suposto eu perceber?” teimei.

“As nossas vidas estão conectadas por milhares de delicados fios, menina. Como numa bela tapeçaria, eternamente cozida pelas nornas, e tudo o que fazemos é caminhar por eles” Frigga respondeu enfim, entre um gole e outro de chá “As profecias determinam quem está em cada fio, e em que direção cada um é colocado. É assim que as coisas acontecem, porque é assim que têm de acontecer. O caos nos destruiria”

“E é por causa de fios invisíveis que vocês condenam um dos seus ao ostracismo?” perguntei de novo “É por isso que criam guerras contra Valheim e capturam seus filhos?”

Freya desviou o olhar, mas eu continuei a encarar-lhe. Ela tinha sido tão domesticada quanto seus gatinhos. Mais uma criatura felpuda para o Pai de Todos ter aos seus pés, obedecendo às suas ordens. Balancei a cabeça, frustrada. Será que eu estava ficando louca? Havia ali alguma coisa que todos sabiam e eu não? Seria eu a irracional?

Quando me encontrei com Loki novamente naquela noite, recebi-o já a conjurar o fogo em minhas mãos.

“Vejo que gostou do novo truque” ele comentou, aproximando-se com seus passos lentos e o olhar brilhante.

“É deveras útil”

“Como foi o teu chá com duas das criaturas mais insuportáveis de Asgard?”

Eu ri, e nos pusemos a caminhar pela trilha lateral que se afastava do palácio.

“Queria poder te dizer que não foi assim tão ruim” respondi “E de facto não foi. Frigga me mostrou muitas pedras cheias de runas, e outros artefatos. Mas…”

“Mas?” insistiu Loki.

“Elas acham que eu sou burra. Não só elas, todo mundo em Asgard. Sou apenas a serva estrangeira tonta”

“De tonta você não tem nada” ele respondeu, para meu deleite “Não iria perder meu tempo com tal companhia, isso eu te garanto. É por isso que evito Sif como se ela fosse a praga…”

Tudo em Asgard parecia cintilar com um brilho dourado, até mesmo as árvores. Em Vanaheim, nossas florestas eram profundas, e escuras, mas os bosques que interligavam os palácios dos deuses eram tão perfeitos e místicos quanto eles próprios. As frutas tinham cheiros mais intensos, e as folhas caíam com menos ruído. Cada farfalhar, cada brisa, tudo parecia ter sido feito intencionalmente, com o cuidado de agradar a todos.

Ou quase todos.

Quando nos aproximamos de uma poça, Loki prontamente correu em sua direção e pisou-lhe, espalhando lama por todos os lados. Desviei-me a tempo e consegui evitar maiores danos ao meu belo vestido.

“Não acho que seja tonta, Sigyn. Mas você é jovem”

Revirei os olhos.

“Todos me dizem isso, mas não é verdade. Eu tenho a mesma idade que Freya e Frey. Não sou muito mais nova que você”

“Sim, mas é nova em Asgard. É necessário algum tempo para que a ordem natural do reino adentre a tua mente. Olhe só para Frey e Freya, metade da vida aqui e eles são como filhos do Pai de Todos. É quando Odin te aceita como um deles - é aí que a tua vida de aesir realmente começa”

“Então é correto eu dizer que a tua vida de aesir nunca começou?”

“Eu estava condenado mesmo antes de ser gerado” respondeu ele.

Voltamos ao silêncio. Os silêncios não eram desagradáveis. Eu sentia os olhos de Loki em mim, e quando ele não estava a me olhar, era minha vez de encará-lo, analisando cada gesto e expressão mínima em seu rosto, me perguntando o que significariam, e se algum dia seria capaz de decifrá-lo.

Eventualmente, demos a volta ao bosque, contornando os limites das muralhas, e voltamos para o palácio de Odin, onde habitualmente nos despediríamos. Entretanto, ao passarmos de braços dados pelos portões protegidos por guardas, Loki não me guiou até a divisão que me levaria ao meu quarto, e sim, para a direção oposta.

“Loki, para onde estamos indo?” perguntei, sem fazer menção de livrar-me dele.

“Para o grande salão. Acho que Frigga tem uma placa de runas que pertence a mim e que eu quero de volta”

Nós não vamos roubar da Rainha

Ele soltou meu braço.

“Não tem que vir comigo, Sigyn. Neste caso, boa noite, e até amanhã” Loki disse, com uma pequena reverência.

Eu mudei o peso de uma perna para a outra, pensativa. Estava curiosa. Não queria deixá-lo tão cedo. E não queria deixá-lo sozinho com os pertences da Rainha. Quem sabe eu poderia evitar maiores destruições da parte dele.

“Está bem, vamos” resmunguei.

Loki sorriu, como se soubesse que aquela seria minha resposta, e caminhamos silenciosamente pelo corredor, até à enorme sala, cujas paredes estavam cheias de tecidos, placas de madeira e de pedra com escritas encravadas, poções, pergaminhos e outras tralhas se espalhavam por todos os lados, seguindo uma ordem confusa, mas que eu, aos poucos aprendia, a decifrar.

Fiquei na porta, tirando uma vela de uma das mesas, e a acendendo com magia. Loki meteu-se pelos corredores, fuçando em pilhas e mais pilhas de papel, mas com o cuidado de não tirar nada de lugar.

“Se amanhã me culparem pelo sumiço de alguma coisa…” sussurrei, nervosamente “Estou morta”

“Oh, Sigyn, não se preocupe. Elas não achariam que você fosse capaz de uma coisa dessas. Além do mais, sou eu roubando, e não você”

“Mas todos sabem que eu ando em sua companhia. Não é difícil assumir que já fui corrompida pelos seus maus hábitos…”

Ele me ignorou, e passados alguns minutos, ouvi-o exclamar, alegremente.

“A-há! Aqui está ele”

Loki emergiu das sombras e veio até mim com um pedaço de madeira negra. Deixou que eu o tocasse, e logo vi que não reconhecia nenhuma de suas runas.

“Que idioma é este?”

“É a língua dos elfos negros. Não vais conseguir ler, é demasiado diferente da nossa”

“E você sabe?”

“Claro que sei”

“Pode ler para mim?”

Ele chiou.

“Está longe de ser uma história para pôr pequenas vanir a dormir, querida Sigyn. Não quero te dar pesadelos”

Revirei os olhos, e ele riu. Logo fechamos a porta atrás de nós, e desaparecemos dali. De volta ao hall central, nos despedimos como de hábito, e eu voltei para meu quarto, onde mais uma vez demorei para adormecer, pensando no trapaceiro. Mesmo sem estalar os dedos, sentia o calor do fogo consumir meu corpo todo, e eventualmente me dei conta de que a única coisa que cessaria aquele ciclo vicioso seria finalmente ter Loki ao meu lado.


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