Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 7
— Uma antiga rixa




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— Uma antiga rixa

A reunião do conselho de Órion com o de Bellatrix começou há quase vinte minutos. Kin estava atrasada, mas deixou avisado que isso aconteceria, teve um problema e precisou ficar no reino para resolver. Lire pediu licença e disse que ficaria do lado de fora da sala até ela chegar. Ninguém a contradisse. Tinham assuntos que não poderiam tratar sem a presença de Kin, Lire só estava ali por causa desses mesmos assuntos, a ausência da sucessora de Hayate tornava supérflua sua permanência na sala. Isso aqui só vai começar a ter graça depois que você chegar, pensou consigo mesma a primeira ministra de Bellatrix.

Tinha dezesseis anos quando Kin a derrotou num torneio mundial pela bandeira da Terra de Áries, Kin tinha somente oito. Lire nunca se esqueceu dessa humilhação. Na frente de todos os seus colegas de treino, de seus líderes, mentores. Decepcionou todo mundo. Prometeu se vingar um dia, fazê-la sentir o peso de falhar em proteger algo que lhe confiaram. Por isso ficou feliz quando soube que Kin foi escolhida para chefiar o Reino de Órion. Sua grande oportunidade de ter o que queria. Tudo o que teve que fazer, depois disso, foi se mostrar a melhor opção para comandar o Reino de Bellatrix. Isso não foi lá tão difícil.

De pé ao lado da grande porta amarela de madeira que dava para a sala da reunião, Lire admirava o céu azul claro daquela fresca manhã. Um belo início de dia. No corredor em que ela aguardava não havia ninguém além dela mesma e de um potente ventilador de teto que, no entanto, nem fazia barulho. Estava só, com seus pensamentos.

Meditava animada sobre o valor daquela data para seus planos. Tudo convergia para o seu sucesso, nunca esteve tão bem humorada. Suas roupas refletiam esse seu estado de espírito, retirou do armário um de seus vestidos favoritos, ele tinha listras douradas, era justo, nem curto e nem longo, preto com mangas caídas e decote nas costas. Aprisionou para trás com duas pequenas presilhas os cabelos castanhos. Tudo pensando em ficar o mais elegante possível para aquela ocasião. Saber do atraso de Kin quase a tirou do sério, precisava admitir.

Antes mesmo de colocar o pé no último degrau para aquele corredor, Kin soube que Lire a esperava do lado de fora. Sentiu a energia dela. Reconheceria aquele poder asqueroso em qualquer lugar. Ótimo, pensou quando olhou para a porta e viu que tinha razão. Hoje eu vou me estressar antes de entrar na sala. Queria ter tomado mais suco de maracujá, mais calmantes, ou ter trazido o frasco inteiro consigo. Respirou fundo, escalou o último degrau e andou. Lire a percebeu e abriu um enorme sorriso fingido.

Como quem dava uma bronca numa aluna, parou as mãos na cintura, meneou com a cabeça e falou com Kin:

— Atrasada e vestida que nem uma retalhadora de elite... Queremos ajudar Órion com esse projeto, Kin, mas você tem que facilitar pra gente!

A loira ignorou esse comentário.

— O que é que cê tá fazendo aqui do lado de fora?

— Eu só tava esperando a dona da festa. A responsável por tudo isso aqui. — Disse. Kin passou por ela, mas parou quando Lire falou um nome que, na opinião da orioniana, não devia ter falado: — Mari foi a autora do projeto, né? Poxa, garota, eu achei que isso fosse te fazer levar as coisas mais a sério...

Kin abaixou a cabeça, fechou os olhos e contou até cinco. Encontrou dentro de si uma calma que definitivamente não lhe era típica, que certamente vinha do do chá e dos sucos que bateu no liquidificador para beber antes de sair de casa.

— Lire, já te disseram tudo o que você precisava saber. Se não esclareceram essa parte, é porque isso... Ah, como eu digo da forma mais delicada? Esquece, vou ser direta: é porque ela não é da sua conta. — Foi o mais educada que conseguiu. — Agora, se me dá licença, vou pra reunião. Vem também!

Quando ia empurrar a porta para entrar, a líder de Bellatrix disse algo que a deteve de novo:

— Hum... acho que sei porque você se atrasou. Foi porque a nave do seu namorado foi danificada no caminho da volta pra cá pra Terra e ele ligou pedindo a instrução de um engenheiro, não foi? Tadinho do Arashi, deve ter tido uma noite tão ruim! E coitadinha de você também! Deve ter ficado tão preocupada, ele já estaria aqui se isso não tivesse acontecido! Me disseram que foi um acidente... mas será que foi um acidente mesmo?

Fula com o que ela insinuou, a retalhadora de Órion cerrou os punhos.

— Olha, Lire, se você teve alguma coisa a ver com isso, eu juro que vou-

— Ah, Kin, você não tem mesmo senso de humor! Foi só uma brincadeirinha, claro que eu não fiz nada... Mas acho melhor baixar essa bola, eu tenho certeza de que nem você e nem o Haru vão gostar de ver a ideia da Mari ser descartada depois de ter chegado tão longe... — Ameaçou, calando-a. Sabia que a irritava no fundo da alma toda vez que falava o nome de Mari, sentia um prazer funesto fazendo isso e vendo os traços de raiva na cara dela. Num gesto cínico, abriu a porta da sala da reunião para a loira. — Por favor.

Evidentemente sob os efeitos dos remédios que tomou, Kin aceitou esses desaforos calada e entrou quieta. Abaixou a cabeça, surpreendendo a rival. Lire queria testá-la, levá-la ao limite, forçá-la, quem sabe, a tomar uma atitude impensada para perder o apoio do conselho. Nunca pensou que a veria engolir sapo sem Arashi por perto para aconselhá-la. A conhecia menos do que pensava. Mas não importava. Aquelas provocações não passaram de um aperitivo, fez aquilo só para aquela reunião chata ter mais graça. Como disse ao seu irmão, não sabia como aguentaria ficar quatro horas num recinto cheio de velhos insuportáveis, com sua pior rival. Sua verdadeira vingança não tinha nada a ver com o que seria debatido ali.

Algo no pesadelo que Naomi teve a instigou, a fez desejar representá-lo numa de suas telas. Se bem que se lembrou de pouco dele depois que acordou. Recordava-se apenas de ver uma fera vermelha numa paisagem bastante escura, tudo mudando de forma o tempo todo, sem uma consistência definida.

Não saberia dizer com certeza se no sonho era apenas uma observadora ou se interagiu com a criatura, com o ambiente. O que não escapava de seu peito era o assombro causado por aquela visão. Então, para descontrair, para sentir-se livre desse sentimento por algumas horas, pegou um quadro, uma cadeira, sentou na sala e começou a pintar o que viu.

Quando deu a primeira pincelada, o dia acabava de dar as caras. Na última, ele se despedia. Só se deu conta disso porque uma corrente de ar frio invadiu a sala através da janela nas suas costas. Puxou de cima do braço do sofá bege um casaco preto de capuz de renda, o vestiu com certa pressa e tirou seus cabelos negros de baixo deles, jogou-os para atrás dos ombros.

Ia sair do banquinho onde passou a tarde toda, queria olhar de pé seu quadro, avaliar o resultado final, mas alguém tocou a campainha. Olhou a hora no relógio de pulso. Sabia que não podia ser Kin à porta, ela foi para muito longe, para o Reino de Bellatrix, não conseguiria voltar para casa tão cedo. Também não podia ser Haru, o ruivo saiu com Yue para visitar Sora no hospital há pouco mais de uma hora.

Curiosa, atendeu. Levou um susto gigantesco ao abrir a porta e ver Toshinari. Recuou um passo, cobriu as mãos de energia purpúrea e montou a guarda.

— Nossa! Você mora aqui? — O garoto também pareceu muito surpreso.

Naomi ficou confusa quanto a que resposta dar, a casa não lhe pertencia.

— Moro! — Decidiu dizer. — O que está fazendo aqui? Como me encontrou?!

Toshinari não quis dizer que quem lhe trouxe para a Terra foi Santsuki, não queria apavorá-la mais.

— Hã... um conhecido me teletransportou pra esse mundo, eu tava vagando perdido pelo espaço, não dormia há semanas. — Se explicou. — E ele me deu esse endereço e me disse para procurar uma retalhadora chamada "Kin Iminari".

Naomi apontou os punhos energizados para o rosto dele, que manteve as mãos para o alto em rendição.

— Por quê?! — Ameaçava-o.

— Não sei, ele só me disse isso! — Foi sincero. Realmente não tinha muito a contar, Santsuki de fato só o deixou ali e lhe pediu que ele procurasse por Kin.

— Você é um fugitivo da prisão interplanetária, não era pra estar aqui se justificando pra mim! — O contrariou. — Vou acionar as autoridades! — Deu as costas para ele e entrou para procurar o telefone.

Isso Toshinari não podia aceitar.

— Não! Por favor! — Pediu, em tom de súplica. Não queria machucá-la. — Só vim pra Terra porque queria viver em paz! Eu juro que não sou perigoso!

Naomi parou. Alguma coisa lhe dizia que podia acreditar nele. Conviveu com criminosos, com retalhadores perigosos, saberia reconhecer um, se visse. Não via isso em Toshinari.

— Se você não é perigoso, por que estava preso? E pior: numa prisão de segurança máxima, a mais segura da galáxia! — Quis escutá-lo.

— Eu era uma criança quando me puseram lá. — Começou seu relato. — Quando o Kaira me trancafiou lá. Sempre fui poderoso demais, perdi o controle e... ataquei ele. Nós lutamos e muitos planetas e constelações foram destruídos, pra isso não voltar a acontecer, me jogaram lá e me esqueceram.

Sim, Naomi já escutou essa história. Do Santsuki. Ele lhe contou que uma criança lutou com Kaira e quase causou a destruição da Via Láctea. "Uma criança... com muito mais poder do que eu", essa foi a descrição que Santsuki deu dele. Custava a acreditar que estava na frente dela. Pensando que Toshinari podia estar sendo franco, que não oferecia riscos, Naomi desfez as nuvens de energia que circulavam suas mãos. Mas não baixou a guarda. Desconfiada por natureza, como aprendeu a ser durante o tempo que viveu no espaço, não se convencia facilmente da inocência de ninguém, muito menos na de quem foi preso e apareceu na sua porta do nada.

— O que espera que eu faça? — Questionou-o.

Toshinari não sabia bem o que fazer, não pensou muito bem nisso, em como se viraria depois de chegar na Terra. Enfiou as mãos nos bolsos da calça, olhou perdido para um lado, para o outro e mirou a garota com quem falava.

— Me diz se tem alguma casa, algum apartamento, qualquer coisa alugando aqui perto, moça do sotaque bonito. — Foi tudo o que pediu.

Naomi concordou com ajudá-lo a encontrar um lugar para ficar, assim poderia ficar de olho nele e saberia localizá-lo caso ele causasse problemas. Mais do que por solidariedade ou para vigiá-lo, aceitou levá-lo aonde o ouviu pedir porque se identificou com a história dele. Também era apenas uma criança quando foi tirada de seu lar, quando alguém interferiu em sua vida e mudou seu destino. Se Kin, Arashi, Haru e Yue a acolheram sabendo que ela viveu debaixo do mesmo teto de Santsuki, ela podia dar essa chance a Toshinari.

Yue e Haru jogavam uma bola de tênis um para o outro numa quadra de basquete e futebol a céu aberto, na praça da esquina da casa dele. Voltaram do hospital há poucos minutos, tomaram um sorvete e pararam ali para conversar. O tempo voava quando faziam isso. Apesar de Haru ser muito novo, Yue só conseguia se abrir completamente com ele. Sabia e sentia que o ruivinho não a julgaria. Ele era mais maduro do que todos achavam e não pensava mal de ninguém. Não que ocultasse segredos assustadores, nem que fosse muito diferente do que a maioria das pessoas via, é que sempre foi muito reservada quanto ao que sentia sobre ser uma retalhadora. 

Estava preocupada com Arashi. Soube do problema que rolou com a espaçonave dele no caminho de volta para a Terra, os engenheiros que a criaram consertaram remotamente, asseguraram que tudo ficaria bem, mas antes daquele dia ouviu Naomi dizer centenas de vezes que qualquer dano em naves espaciais quase sempre queria dizer "fim de viagem" para os tripulantes. Naomi podia não ser uma engenheira tão qualificada quanto os que fabricaram o veículo, mas ela cuidava dos reparos e da manutenção da nave do Santsuki. Entendia do assunto. Tanto que Kin e os especialistas pediram sua opinião. 

Haru jogou a bola para ela com mais força para ver se a acordava.

— O Arashi vai ficar bem! — Prometeu. Ele a lia como se ela fosse um livro aberto. — Minha irmã só conseguiu trabalhar depois de saber disso porque tomou remédio pra amansar até cinco gorilas, se tu aparecer lá em casa com essa cara, vai acabar estressando ela de novo. 

Ele tinha razão. Respirou fundo, buscando paz, outra coisa em que pensar.

— Tá bem. — Concordou. Jogou a bola de volta para ele. — Eu queria ter esse seu otimismo... Como você consegue acreditar o tempo todo que tudo vai ficar bem?

Haru lançou a bola e pensou no melhor jeito de se fazer entender. 

— Conheço minha irmã e ele desde... a minha vida toda. Eles são Kin e Arashi, tudo sempre fica bem com os dois. Já passaram por coisa pior. — Falou. Temendo que o que disse não bastou, contou: — Uma vez eu vi a Kin sair de casa de madrugada e fiquei assim, do mesmo jeito que tu tá agora. A Mari disse pra mim a mesma coisa que eu te falei aqui. No final do dia eu vi que ela tava certa. Nunca mais fiquei com medo. Cê vai ver. 

Aquilo levou uma tranquilidade tão grande para o coração de Yue que, quando chegou, expulsou a pontapés todo o medo de lá de dentro. Ela sorriu. 


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